Renato Muniz B. Carvalho é escritor, professor universitário, geógrafo, mestre em Geografia e ambientalista.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Durante muitos anos fui professor e fazendeiro, ao mesmo tempo, então, de um jeito ou de outro, começava meu dia muito cedo. Em alguns dias, ia à fazenda; em outros, ia à escola. Difícil era separar as coisas: às vezes, na fazenda, eu estava planejando uma aula enquanto vacinava o gado; ou estava elaborando mentalmente uma prova enquanto consertava uma máquina agrícola. No outro lado da cadeia produtiva, estava em sala de aula preocupado com a falta de chuva e suas consequências nas pastagens ou pensando no tratamento para um bezerro doente. Essa confusão nunca atrapalhou meus insucessos, tanto num campo quanto noutro. Uma vez, alguém disse que eu deveria decidir se queria ser fazendeiro ou professor. Nunca resolvi. Hoje, não sou nem um nem outro, mas o hábito de acordar cedo pensando em mil coisas permaneceu. Acordo cedo preocupado com o clima, curioso com as últimas notícias sobre os desdobramentos políticos das decisões que foram tomadas durante a madrugada, com a cotação do dólar, com o que estão escrevendo os críticos literários a respeito dos lançamentos mais recentes, se algum vulcão explodiu, com a deriva dos continentes e se já conseguiram frear o desmatamento. Depois de tomar café, vou ao computador ler jornais. Três ou quatro todos os dias. Leio o que me interessa e o que eles querem que eu leia, porque “eles” controlam nossa vida, daí o esforço danado que tenho de fazer para não ser enrolado e garimpar nas entrelinhas o que certamente está bem escondido de nós.
Depois de ler os jornais, de consultar a previsão do clima e de verificar a agenda, vou ler os escritos que estão pendentes. Só aí decido o que vou fazer, caso não tenha nada com data marcada, como enviar uma crônica para o jornal ou um artigo para uma revista. Não há rotina possível, anos e anos correndo de um lado a outro impediram ritmos mais organizados e sequências certinhas de trabalho. Hoje, viajo muito e estar fora de casa impede qualquer rotina.
Estando em casa, as manhãs costumam ser de organização, de reunião do material necessário, de “tomar pé do mundo”, de ter certeza que a Terra ainda gira. Se der tempo, escrevo, leio, tomo decisões. O resto do dia é sempre uma incógnita. Tem dia em que tudo funciona que é uma beleza, tem dia em que o caos conspira a favor do tédio, da mesmice, da burocracia, domina a casa, impõe obstáculos entre a mesa de trabalho e eu, a cabeça se perde em divagações e aí tudo pode acontecer, inclusive sair um texto que me agrade.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Pensei muito nisso ao longo da vida, sem chegar a nenhuma conclusão até hoje. Às vezes, penso que a melhor hora para quem escreve é à noite. Por uma razão muito simples: é mais silencioso. Felizmente, à noite as pessoas dormem, com exceção de alguns que vez ou outra passam com o escapamento barulhento da moto nas avenidas ou os que querem a todo custo nos constranger com suas horríveis escolhas musicais em alto volume madrugada afora. Por volta das 23 horas, os ruídos diminuem, os ditos cidadãos de bem desligam a TV e vão pra cama, as crianças vão dormir e até os cachorros atingem a suprema compreensão de que um pobre coitado precisa se concentrar numa crônica semanal. Não sei se é o silêncio que me dá satisfação e tranquilidade para escrever e ler, mas gosto quando vou até uma ou duas horas da madrugada digitando, escrevendo, lendo um livro, fazendo uma pesquisa. Com o passar dos anos, e pelo fato de ter me desincumbido de muitas obrigações, tentei trabalhar de manhã. Ainda estou no processo de aprendizagem. À tarde, bate um sono danado, o telefone toca, uma criança chora ao longe, aparecem compromissos que impedem a concentração necessária à escrita.
Quanto aos rituais, nem os religiosos nem aqueles capazes de fazer aflorar a criatividade resolvem os travamentos. Sou um incorrigível bagunçado, avesso a qualquer interferência externa ao meu trabalho que não seja criada por mim. Se existe alguma determinação ou possibilidade mínima de sossego, o importante é estar confortável, de camiseta, bermuda e chinelo, cercado por muitos livros e em ambientes silenciosos. Se nada disso for possível e mesmo assim tiver vontade ou a necessidade de escrever, vai de qualquer jeito. Já escrevi em viagens de ônibus, em bibliotecas, em jardins, em praças, em salas de aula, em festinhas de aniversário… Só não consegui ainda escrever enquanto dirijo. Melhor não tentar!
Como tudo muda, com a idade, já estou com mais de 60, as manhãs têm se revelado mais produtivas. São mais claras, mais frescas, e o barulho não tem perturbado tanto.
Em resumo, não há preparação, melhor dizer que qualquer hora é boa para escrever, desde que eu tenha em mãos papel, caneta ou um computador. Aliás, quando estou sem minha caneta eu me sinto pelado, porque papel a gente ainda encontra com certa facilidade, canetas começam a rarear.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu costumo escrever sem ordem, sem nexo, sem nenhuma preparação ou sistemática. Às vezes, escrevo muito, de forma compulsiva, às vezes passo dias sem escrever uma linha, o que me entristece e me incomoda. O ser humano nasceu para escrever. Devo confessar que já tentei estabelecer metas, mas o mundo nos distrai com uma incrível facilidade, nos desvia do bom caminho, nos molda à sua imagem e semelhança, ou seja, o caos. Então, tem dias em que escrevo um pouquinho e tem dias em que escrevo muito, tem dias que nada aparece de novo no horizonte.
Acontece ainda que a escrita tem diferentes períodos: tem a hora da criação, da invenção da história ou das decisões sobre o que escrever, a abordagem e outras questões específicas iniciais de cada texto. Pra mim, é a hora mais tensa, mais angustiante. É a hora em que o conteúdo vem antes da forma, em que o motivo vem antes da técnica. Esse processo pode durar uma noite, um instante, como pode durar dias ou semanas. Em termos materiais, uma frase já é suficiente, dá um alívio danado. Depois, vem a escrita em si, vem a hora de organizar as ideias no papel, na tela do computador, estabelecer uma ordem, definir padrões, linguagens, a forma, e, se for o caso, redefinir o conteúdo. Finalmente, o trabalho braçal: corrigir, mudar, colorir, riscar, retirar, apagar, juntar, construir parágrafos, revisar, colocar ponto, vírgulas, interrogações, reticências…
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Para mim, escrever nunca foi fácil, nunca foi um processo tranquilo. Algum escritor já declarou que é uma coisa doída. Mas é preciso enfrentar a dor e desafiar o tempo, eu sinto que preciso fazer isso. No meu caso, decidido o que devo escrever, costumo reunir informações, faço leituras, busco exemplos, situações, artigos e opiniões até me sentir seguro para dar forma ao texto. Às vezes, começo sem saber aonde vou chegar, aonde quero chegar, e o formato vai surgindo aos poucos. Se necessário, recomeço, altero o rumo e, em situações extremas, rasgo tudo, apago e começo de novo. Já abandonei projetos por não os julgar consistentes, bons o suficiente para terem continuidade. Outros projetos ficaram abandonados por muitos anos até que eu fui lá e os ressuscitei. Outros foram enterrados definitivamente.
Ao longo da vida, o que eu mais escrevi foram textos curtos, geralmente crônicas para jornais e revistas. A crônica, na minha concepção, não exige um planejamento prévio, um projeto, basta uma ideia. Em raros momentos, tive de fazer alguma pesquisa para escrever uma crônica. Não estou desmerecendo a crônica, ela tem seus segredos, seus méritos. Acontece que a crônica é um gênero rápido, fugaz, vai ser lida num dia e na semana seguinte estará esquecida, superada, no máximo vira objeto de leitura numa sala de aula do ensino médio ou material de discussão num curso de escrita. Romances pedem maiores ajustes, endividamentos intelectuais, pelo menos com a coerência e a sucessão dos fatos, daí a necessidade de se fazer alguma pesquisa. Artigos técnicos, acadêmicos, sempre exigem pesquisas, leituras questionadoras, metodologias próprias, e costumam ser perenes, pelo menos por um tempo. Contos nunca estarão prontos, acabados, com pesquisa ou sem pesquisa.
A pesquisa é quase constante, nunca termina. A curiosidade e a observação têm de estar ali, em cima, o rigor com os dados é constante. Se aparece algo interessante, tem de agarrar logo: ler, entender, absorver, recusar, criticar e decidir se vai usar ou não. Não importa o momento, a pesquisa é algo que não para, é como se o pesquisador estivesse preso num laboratório, e muitos estão, obrigados a observar e a elaborar relatórios o tempo todo, um castigo divino.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Quando escrevo, sejam textos longos ou curtos, morro de medo, fico apavorado, mal-humorado e triste, nesse ponto sou muito humano, muito instável e inseguro. As amarras não se soltam com tranquilidade, às vezes só depois de resolver dúvidas encarniçadas, conflitos internos e duros choques com os outros, com os mais próximos e comigo mesmo, é que consigo esboçar um sorriso. Tenho de ser exigente, mas reconheço minhas deficiências e incapacidades, o suficiente para não jogar a culpa nos outros.
Com as crônicas, como sempre tive compromissos fixos, dia da semana fixo, tempo certo, dia e hora para entregar nas redações, a expectativa do acerto e do dever cumprido é sempre muito grande. Teve vez que o texto saiu no último instante, quando parecia que nada faria eu parir uma linha sequer e ela surgia na maior angústia, apavorada, chorando, desesperada. Um alívio! Raramente perdi um prazo. Algumas crônicas nascidas assim, no susto, eu considerei muito boas, outras ficaram deploráveis, ainda bem que na semana seguinte lá estava outra substituindo a coitada. Teve um caso extremo em que apareceu um ajuste comercial de última hora para resolver e isso fez com que eu pedisse ajuda à minha esposa. Eu comecei a crônica, dei o tema, ajeitei a bola e chutei pra ela. Já na porta da sala, disse a ela: “se vira, termine como puder!” E fui embora correndo. Foi publicada com os dois nomes, dupla autoria, e teve sucesso, foi bem-recebida, comentada, mas a parceria não teve seguimento — não na escrita.
O projeto longo é diferente, principalmente nos prazos. Quando não é algo para o dia seguinte, a coisa muda de figura, embora, às vezes, um prazinho seja bom para conseguirmos alguma disciplina. Não sou um bom capataz, um bom gerente, nem de mim mesmo. Aos tropeços, o trabalho sai, aparece e se encorpa. Considero importante subdividir o texto, em capítulos, em partes. Se é um texto técnico, acadêmico, abro pastas separadas para cada parte. Tenho de me policiar para não perder a concepção do todo, mas cada parte pode ganhar vida própria. O cuidado a se tomar é não deixar virar um monte de tijolos jogado num terreno baldio.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Depende do tipo de texto e do tempo que me foi dado. Por mim, eu ficaria eternamente revisando. No caso das crônicas, quando entrego uma já começo a escrever a outra e por escrever entendo como essencial o processo de rabiscar e revisar. Gosto de ler um texto que escrevi à noite, quando vou me deitar. Leio, deixo repousando perto, durmo e, quando acordo, a primeira coisa que faço é ler o texto de ontem. O novo dia pede um outro olhar, uma nova leitura. Às vezes, vou dormir com a ideia de uma mudança, penso nela, reflito, mudo mentalmente e, na manhã seguinte, altero, experimento, para recomeçar o ciclo na próxima noite.
Uma coisa é a revisão de estilo, são as tentativas de dar maior nitidez ao texto — manias de professor —, para deixar as ideias bem claras ou como eu gostaria que elas ficassem, dar a elas o sentido que eu imagino que devem ter. Outra é a revisão ortográfica e gramatical. Preferencialmente, esta deve ser feita por um profissional. Textos longos pedem esse tipo de revisão. No caso dos meus textos curtos, das minhas crônicas, eu confio nos revisores dos jornais e das revistas a quem envio meus textos.
Uma das minhas maiores frustações é não conseguir discutir mais meus textos com outras pessoas, com raras exceções, antes que estejam publicados. Sinto falta de discutir meus textos com amigos, com colegas, mas o mundo nos empurra cada vez mais para a solidão, inclusive e principalmente na literatura. O ato de escrever já foi mais coletivo, hoje me parece, cada vez mais, solitário. Ninguém tem tempo, uns se envolveram com outros dramas, outros se tornaram profissionais das letras, o que alguns chamam de vida corrida dificulta o ócio, as leituras longas — e as oportunidades, quando aparecem, se destinam à discussão de ideias prontas, acabadas. A Internet tanto pode piorar esse quadro quanto pode mudar isso. Não depende dela, mas do uso que fizermos dos seus recursos e suas infinitas possibilidades. Pode dar merda, como pode aproximar escritores e leitores.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu sou da geração imediatamente anterior ao computador pessoal, aos PCs. Faço parte da geração que, no momento em que ia aprender a usar a máquina de datilografia, se deparou com os PCs. O resultado disso é que nem aprendi a usar a máquina de datilografar nem os computadores. Antes dos computadores, eu escrevia muito à mão, e o hábito permaneceu. Desde os oito, dez anos de idade, sempre escrevi muito, em cadernos, em blocos de rascunhos, em folhetos de propaganda, até em papel de embrulhar pão, que, na década de 1960, era o papel pardo. Minha mãe guardava para fazer rascunho, para escrever bilhetes, para secar a gordura de pratos como batatinha frita ou bolinho de arroz, e eu usava para escrever. Com o tempo, percebi que minha letra era tão horrível que nem eu mesmo dava conta de ler. Devia ser dislexia, disgrafia, disortografia ou tudo ao mesmo tempo. Foi então que resolvi escrever em caixa alta e com caneta tinteiro. A pena da tinteiro, uma Parker solene, segurava minha mão, me ajudava a não correr muito e a letra melhorava. Mesmo assim, não era fácil. Minha primeira máquina de datilografia foi comprada justamente numa tentativa de ser mais bem compreendido por meus pobres professores, mas nunca quis fazer um curso de datilografia. Logo, vieram os computadores e a coisa mudou completamente. Então, eu sou mal “habilitado” em três competências: escrita à mão, em máquinas de datilografia e em teclados de computados. Nos três ramos sou autodidata. Daqui a pouco, espero me alfabetizar também em touch screen, é inevitável! Estou tentando.
Como aprendi a escrever usando papel e caneta, carrego sempre comigo um bloquinho de anotações. Quando não os tenho, vai qualquer papel mesmo. Se há um projeto definido, uma encomenda, vou direto para o computador. A máquina de datilografia está definitivamente aposentada, guardada no fundo de um armário, esperando a hora em que a eletricidade vai pifar ou que um supervírus vai bugar todos os computadores do planeta. Por esse motivo, eu costumo imprimir todos os meus textos: além de ficar mais fácil para revisar, corrigir, modificar o que precisa ser mudado. Meu ditado predileto é: “Um cara prevenido não perde seus textos”.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As ideias vêm da observação do mundo, da realidade. Observação atenta de cada detalhe, de rostos, das posturas, das nuvens, das ondas do mar, de risos, de choros, de conversas, de roupas, cabelos, do trânsito, de prédios, das paredes, dos muros, das cores, dos jardins, dos animais… Observar e anotar. Como manter isso? Vou bagunçar um velho chavão: ler e escrever muito, escrever e ler sempre, fica difícil separar um do outro, não sei o que vem primeiro. Ler o mundo que nos cerca, ler de tudo um pouco, sem preconceitos, de gibis a literatura, filosofia de boteco, horóscopos, estudos históricos, sociologia, jornais, bulas de remédio, etc. Eu não tenho problemas com as influências que recebo e que absorvo. Tento me manter independente, mas sei que não dou conta. Então, vou tocando…
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos?
Mudamos bastante: eu e meu processo de escrita, assim como mudou meu texto. Inevitável. Ao longo do tempo, me tornei mais exigente, exigente com a língua, mas a própria língua eu enxerguei de outro modo, mais dinâmica, mais à vontade comigo e eu com ela. Ficamos mais amigos. Se eu pudesse… diria: relaxa, arranja mais tempo, escreva mais, Renato, deixa de ser besta! Devia ter começado antes, não precisava ficar tão tenso, não devia ter sido tão formal nos primeiros textos, tão receoso com as críticas. Não há muito mais a dizer, não vou mudar o passado mesmo!
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Não tenho esses pensamentos. Quando tiver de começar alguma coisa, vou lá, no começo, e mando ver, se tiver competência. Até lá, tenho é que terminar muita coisa começada, muita coisa que deixei pelo caminho.
O que eu gostaria de ler? Gostaria de ler um romance que Graciliano Ramos não escreveu, mas no qual deve ter pensado, quem sabe o S. Bernardo na ótica da Madalena? Ou um texto do Machado de Assis dizendo aos leitores como ele daria um novo final à história de Bentinho e Capitu. Um romance do Lima Barreto contando como Clara dos Anjos deu a volta por cima. Contos inéditos de Wander Piroli, a partir de uma revelação bombástica, imaginária, devaneio puro, caso achassem caixas e caixas dele, lotadas de manuscritos. E, se em Sevilha, descobrissem numa escavação arqueológica, um tesouro escondido: novos poemas de João Cabral de Mello Neto. Não seria maravilhoso? Sim, e não, tudo isso é incrível, mas também é bobagem, os livros que eu gostaria de ler serão escritos por novos escritores e novas escritoras que estão por aí com a língua afiada, dispostos a expor as entranhas da sociedade urbana brasileira nesses momentos de mudança, preparando-se para nos oferecer incontáveis surpresas. Que tragam novas ideias!