Renata Wolff é escritora e mestranda em Escrita Criativa na PUC-RS.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Minha rotina matinal não se organiza em função da escrita em si, mas sim dos compromissos profissionais (na vida civil, trabalho na área jurídica) e de estudos (estou cursando um mestrado em escrita criativa). O meu dia começa com uma luta inglória contra o despertador do celular, um café rápido e uma saída apressada de casa para o trabalho ou para a universidade. Quase não funciono mentalmente pela manhã, então sequer tento encaixar tempo para escrever nesse período, antes de iniciar o dia propriamente dito, como outras pessoas preferemfazer.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu fico mais alerta à noite. Para mim o ideal é trabalhar desse jeito noturno, se possível avançando pela madrugada. Nadaoriginal da minha parte dizer isso, mas tem algo na quietude, no escuro, depois que o resto da cidade dorme, que dá alguma vazão às ideias criativas. Às vezes álcool ajuda. Quanto a rituais, não tenho, justamente por que não pratico a escrita como algo ritualístico (com horário fixo, com isto ou aquilo, neste ou naquele lugar). Acho um processo menos previsível e menos organizado do que isso. Talvez porque na minha vida civil eu lide com normas e protocolos e etc., na escrita criativa eu busco o oposto, para manter a graça. O Juan Carlos Onetti certa vez falou algo sobre a relação dele com a literatura ser não a rotina de um casamento, mas sim a paixão de um caso clandestino, que vem aos borbotões, depois se passam meses de afastamento, e assim vai. Comigo ocorre algo parecido: é inconstante, oscilante. Mas mesmo nessa inconstância não deixam de aparecer certas preferências. Gosto, por exemplo, de ter algum ruído de fundo enquanto escrevo: uma música leve ou o burburinho de um café ou bar. Nesse sentido, estar fora de casa e não voltar antes de terminar um texto é algo que ajuda de vez em quando, pois sou a indisciplina em pessoa. Então a preparação é basicamente coisas que me conduzam a interromper a procrastinação e de fato começar a escrever. Uma dessas coisas é calar a vozinha na minha cabeça sempre dizendo que aquela ideia é uma porcaria e o texto vai ficar uma porcaria. Nisso também o álcool ajuda.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Nunca consegui manter rotina nem meta de produção. Isso tem dois motivos: um é a caraterística do meu processo de criação, que não ocorre de um jeito muito linear, e outro é a minha indisciplina (e que se estende a tudo, não só à escrita), então preciso admitir que, para saber mesmo se a rotina funcionaria, eu teria de me dispor a de fato cumpri-la. Quem sabe um dia. Por isso, a escrita acaba vindo em períodos concentrados. Eu faço uma gestação mental bem longa antes de me sentar para de fato escrever o texto; quando chego nesse ponto é porque a história está praticamente pronta na minha cabeça. Eu considero essa gestação como parte da escrita, ou seja: mesmo quando não estou escrevendo, estou escrevendo. Bela desculpa pra dar pra editora, hein!
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O processo é caótico: mais de um texto se construindo ao mesmo tempo na minha cabeça, pesquisas também misturadas, notas espalhadas aqui e ali, dúvidas enormes o tempo todo, idas e voltas nas decisões narrativas. Começar é sempre difícil justamente porque é abdicar de todos os outros textos ou formatos possíveis: começar é dizer, bem, aqui vai o texto, vai ser este, assim deste jeito, e não qualquer outro de infinitas possibilidades. Talvez seja isso o que assuste um pouco: de toda aquela massa disforme e múltipla que era a ideia inicial com todas as anotações, lembranças e pesquisas que a formaram, e que justamente por ainda não existir materialmente a gente pode considerar perfeita, sairá um fragmento miseravelmente imperfeito que tem muito mais chances de não funcionar do que de funcionar. Essa transição da pesquisa para a escrita, para mim, tem muito a ver com a personagem, que tende a ser o centro das minhas ideias para texto.Chega um momento em que já estou com aquela personagem tão viva, consistente (ao menos na minha cabeça), que quero logo colocá-la em uma cena, vê-la agir, escutá-la, contar sua história. E aí vem um processo de produção da narrativa, de escrita propriamente dita, que é para mim uma imersão total, quase. É difícil pensar em outra coisa, fico o tempo todo escrevendo e revisando, mesmo dentro da cabeça.A personagem me assombra o tempo todo. E mesmo esse processo é continuamente difícil, pois, mesmo com todo o planejamento e o acervo de ferramentas técnicas que se vai formando, aquele momento solitário de contar a história, uma frase depois da outra, é um tatear no escuro. Corda bamba sem rede de proteção. Ou, por outra: existe uma rede de proteção, que são as leituras e autoras que te formaram, os estudos para quem passou por oficina literária, etc., mas no instante do nascimento do texto a narradora-equilibrista não tem como enxergar se a rede está mesmo estendida lá embaixo ou não.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Com álcool! Falando sério: não sei selido com essas coisas, nem sei se existe meio de lidar. (Veja: não estou dizendo que não existam estratégias para tanto, certamente outras pessoas as têm, só digo que eu pessoalmente nunca encontrei uma fórmula.) Eu diria que escrevo apesar disso, em volta disso, driblando isso, às vezes ganhando terreno e às vezes perdendo, mas segue o jogo. De certa forma eu não enfrento essas questões, eu desvio delas. Porque todos esses elementos estão ali à espreita, sempre estiveram, sempre vão estar, de todo mundo que escreve. Esses e inúmeros outros, pois a verdade é que, numa sociedade capitalista de consumo, nada vai favorecer a atividade literária ou artística (tempo é dinheiro, só é trabalho o que produz bem material, o único valor é o econômico, etc.). As estruturas estão contra. E isso que falo de um lugar de extremo privilégio: sou branca de classe média; tive todo o suporte material e emocional da família; tive acesso a colégio particular e universidade pública; tenho um trabalho bem remunerado e que ainda mepermite tempo para estudos e escrita. Vou eu reclamar de travas e expectativas e de como escrever é desafiante e trabalhoso? Esses problemas não são problemas, são luxos. A Carolina Maria de Jesus chegava em casa de catar lixo, atendia os filhos, fazia tudo sozinha, passava fome, e escrevia. No meio da miséria, com todas as circunstâncias possíveis contra si, ela escrevia. O lidar é isso. O lidar é escrever, simplesmente. Ao escrever, resistimos aos entraves pessoais e políticos.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso várias vezes, especialmente depois de um bom tempo de produzido o texto, pois gera distanciamento para enxergar melhor os problemas. Mas a demanda de revisão varia com cada texto, pois alguns saem melhores, mais prontinhos, redondos, do que outros. Há um momento em que o texto está acabado — para mim é quando eu sinto que essa, assim como está, é a história que queria contar — mas, depois de pronto, a revisão é contínua: acho que reformularia ou reescreveria aspectos mesmo daqueles textos que por força da publicação adquiriram um formato “final”. E mostrar o texto para outras pessoas, no mínimo o editor, é parte do processo de publicação, aliás uma parte interessantíssima, aquele primeiro olhar alheio sobre a narrativa, que contribui muito. Também para quem está em ambiente de oficinas literárias e outros cursos de escrita criativa (e a maior parte dos meus contos foram produzidos em oficinas), a apresentação e discussão do texto previamente a uma eventual publicação é um passo essencial ao aprendizado e inerente à dinâmica do aprendizado. Para mim, ao menos, esse processo das oficinas — comecei com o Charles Kiefer e depois passei pela Léa Masina, peloJoão Gilberto Noll e outros — foi absolutamente fundamental.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Viva a tecnologia. Escrevo direto no computador desde o primeiro esboço, com todos aqueles recursos de edição à minha disposição, e já não conseguiria de outra forma. Há uns anos me convenci de que meus textos dariam um salto de qualidade se eu os escrevesse à mão, num caderno, sentada em um café. Quase comecei a fumar só pra completar o estereótipo. Enchi dois cadernos e, quando fui passar para o computador, vi que tinham ficado uma droga. Daí lembrei que não sou uma americanaperdida em Paris em 1925 e deixei de asneira.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
De onde vêm eu não sei ao certo, mas sei como, ao menos para os contos: parto de uma imagem. Uma ou mais personagens colocadas em uma determinada cena. A partir daquela cena desenvolvo por que as personagens estão ali, ou como se movimentam ali, ou como vão chegar ou sair da cena, e no subtexto disso estará o conflito, a tensão. Por falar nesse investimento no subtexto, que acredito ser uma marca dos meus contos e dos contos que admiro, eu diria, se não fosse uma obviedade e uma generalidade, que as ideias vêm daí, de observar com constância, com minúcia, o subtexto das relações e reações humanas, no âmbito individual e no coletivo. Sobre o conjunto de hábitos, não posso dizer que, nessa minha indisciplina, cultivo algo muito definido, mas me parece que tem a ver com estar sempre dentro da minha cabeça, sempre nessa observação das pessoas e situações, na construção mental das personagens e das cenas. O hábito de pensar a narrativa, nunca me afastar dela mentalmente, acho que é o mais presente. Aliás, sendo introvertida, isso é natural na minha personalidade.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Puxa, difícil dizer, até porque não sei se tenho um conjunto de escrita que me permita avaliar mudanças ao longo de anos. Iniciei em oficinas literárias em 2006 e de lá para cá claro que há variações — já contei aqui de como tive uma fase de escrever à mão, por exemplo —, mas em geral eu acredito que o processo sempre foi esse caos semi-organizado, e a minha tendência sempre foi partir de uma cena, sempre enxerguei o conto como uma cena, um instantâneo imagético de um conflito maior que fica no subtexto. O que foi se refinando, espero, é o trato técnico com a linguagem, a complexização das personagens e conflitos, a articulação dos elementos da narrativa, o instinto sobre o que está bom ou não. Se eu fosse voltar atrás, diria algo nesse sentido: confiar nos meus instintos narrativos, pois, para a minha surpresa, muitos deles foram se confirmando, nas oficinas e agora no mestrado. Ou melhor, escutar todas — todas mesmo — as opiniões e sugestões, aproveitá-las, sempre mexer no texto e jamais vê-lo como intocável, mas ao mesmo tempo manter a confiança de que tenho em mim as ferramentas para, com esforço, construir ou reconstruir um bom texto. Também me aconselharia a perseverar e ter a consciência de que determinadas coisas que se escutam em oficina, e que em muitos momentos me frustraram profundamente, quase ao ponto de desistir, vêm de um olhar masculino branco, classe média, cis-heteronormativo que monopoliza os debates literários mas que, felizmente, está caindo sob o devido questionamento. Em 2006, as questões de privilégio, diversidade, visibilidade, representatividade, lugar de fala, etc., eram recebidas com menosprezo generalizado e rotuladas com o bicho-papão da direita que é o “politicamente correto”. Hoje, felizmente, o cenário já é outro, essas demandas estão cada vez mais em pauta, e quero acreditar que, como sociedade e como espaço literário, só vamos progredir nesse sentido, mesmo com alguns espasmos asquerosos de quase-morte do quilate do atual presidente da República.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho vários projetos, todos brigando por espaço na minha cabeça, nenhum materialmente começado ainda. Todos são resgates de histórias de mulheres que de alguma maneira ficaram em segundo plano (em histórias reais ou de ficção) e eu quero trazer ao protagonismo. E o livro que gostaria de ler e acho que ainda não existe — perdoe a minha ignorância — seria uma grande saga épica localizada no Brasil escravista e centrada em uma heroína feminina como a Dandara ou a Aqualtune, escrita por uma mulher negra; isto é, com o devido protagonismo tanto interno quanto externo à obra.