Renata Penzani é escritora e jornalista, autora de “A coisa brutamontes” (Companhia Editora de Pernambuco, 2018).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu gostaria de poder me descrever como alguém que acorda muito cedo, cedíssimo, e talvez em algum lugar da minha cabeça eu seja de fato esse alguém, vivendo essa outra vida formidável cheia de manhãs musicais e pães na chapa impecáveis com manteiga de verdade. Mas a verdade é que eu pulo da cama frequentemente depois das 8h, provavelmente atrasada. E, apesar dos atrasos para começar do dia, sou uma pessoa extremamente diurna, e, curiosamente, eu preciso muito do sono para escrever. É como se eu fosse dormir pensando em coisas enormes, impossíveis, e elas se realizassem um pouco durante o sonho. Não à toa, tenho um caderno em que anoto os sonhos, e às vezes gravo áudios no celular, ainda sonolenta, contando o que “vi” nos sonhos para mim mesma. É um exercício metade de loucura, metade de sensibilidade de perceber o que eles me dizem. Eu definitivamente acho que a vida sutil, essa que a acontece sem que a gente necessariamente se dê conta, tem muito insumo para a literatura. E aí que vem muito daí os meus lapsos de querer escrever. Talvez seja por isso que os meus textos que melhor comunicam alguma ideia ou que me deixam satisfeita de algum jeito tenham sido escritos tarde da noite, naquela hora em que estamos muito sonolentos para conseguir alcançar o mundo com as mãos. Mas aí eu já mudei totalmente do assunto da sua pergunta.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Gosto de trabalhar em ideias mirabolantes de manhã, e à noite revisitá-las para ver se ainda fazem sentido. É um movimento que faço frequentemente: isso de desconfiar que as coisas que eu penso têm mesmo que existir. De manhã, com a mente ainda limpa dos ruídos todos de um dia, consigo ler, organizar, criar repertório, mas nunca escrever verdadeiramente – talvez porque a minha cabeça já esteja ocupada demais com os afazeres do dia. Vida de jornalista é estar sempre no futuro, antecipando os assuntos que precisam ser notícia em um tempo muito delimitado. Isso ao mesmo tempo em que me traz uma grande inquietação por não poder viver o presente com a calma que eu gostaria, também me ajuda a colocar a escrita sempre em movimento. Domingos de manhã são certamente o meu dia e horário preferido para escrever qualquer coisa, incluindo este texto aqui.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Sou jornalista, e o dia a dia dessa minha outra profissão é uma ponte para a escrita diária. Uma escrita volumosa, rápida, objetiva. Mas uma escrita muito mais interessada em contar do que confabular, que são coisas muito diferentes. A rotina jornalística me dá uma espécie de musculatura para a palavra. Nos dias ruins, os músculos ficam exaustos e enrijecidos, só querem descansar até o próximo dia em que tudo começa de novo. Nos dias bons, por outro lado, escrever muito aquece os músculos, e eles ficam amolecidos querendo se movimentar mais e mais. É quando vou dormir mais tarde (leia-se quase não durmo), e acordo no outro dia em um misto de satisfação e ressaca de palavra. Um gosto de texto dormido na boca, já sentiu isso?
Metas? Se eu posso dizer que tenho uma, é a de nunca deixar de anotar uma coisa qualquer, seja onde for. Daí que tenho dezenas de caderninhos, blocos de nota no celular, agendas, diários disso e daquilo. Papelarias sempre me dão tremedeira, não tenho nenhuma maturidade para elas – o que não me impede, claro, de entrar em todas. Começo cadernos novos para cada nova ideia, e vou vivendo da ilusão de que vou conseguir me organizar para escrever cada coisa em seu lugar. Tenho muita necessidade de tirar da frente as ideias ruins, desejando que um dia venha uma boa me visitar, e encontre o espaço aberto para poder passar, às vezes compro cadernos propositalmente feios para não ter pena de usá-los com textos ruins.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Começar é a parte mais simples pra mim, eu acho. O que é um pouco irônico de dizer, porque muitas vezes demoro meses para começar um texto que me habita há anos. É que eu acho que o começo vem sempre desse desejo inevitável de acreditar na palavra. Escrevo para me encontrar com alguma coisa – um medo, uma dúvida, um espanto, uma percepção insuportável de beleza. E, para querer me encontrar com aquilo, eu preciso antes disso mesmo: querer. É uma vontade que vem sempre de uma pulsão de vida, o que não necessariamente quer dizer felicidade. Pelo contrário, muitas vezes vem de uma tristeza profunda e do desespero de querer me deslocar para outro lugar. Escrevo, eu acho, quando desconfio que estou ficando muito sozinha com alguma coisa, e aí preciso compartilhar. É como uma criança que passa adiante uma bola numa brincadeira de batata quente.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Acho que é tentando perdoar os meus medos. Entender que eles vão estar sempre ali. Medo de não dizer o suficiente, de dizer do jeito errado, de dizer demais, de dizer de menos. São muitos medos na escrita se a gente fica vulnerável a eles. Também tento não pensar em quem vai ler, porque me trava imaginar uma certa criança que mora em um certo lugar e tem uma certa família. Se me vem um rosto enquanto escrevo, posso travar.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Milhares, centenas, todas as vezes. Eu nunca termino de revisar, até mesmo quando eles já estão publicados – o que, você pode imaginar, é uma fonte certeira de sofrimento, rs. A plena consciência disso não traz nenhuma garantia de que eu vou parar de fazer. Sou muito criteriosa com a palavra, questiono até onde posso qual delas diz melhor o que quero dizer. Temos que cuidar dela muito e sempre. Mas, ao mesmo tempo, tenho zero apego à porção de autoria que sobrou no texto. Uma vez escritos, os livros estão livres para ganhar pernas e braços na leitura de alguém. Dou muita importância a essa vida autônoma da palavra, que existe sem mim, apesar de mim. Ou seja, não se trata de vaidade, e sim de humildade diante da matéria-prima da literatura, tão malcuidada por aí. Mostro para poucas pessoas, e para isso tenho métodos muito pouco nobres, às vezes. Por exemplo, se um texto me preocupa por algum motivo, procuro aquela pessoa com crivo mais acirrado para me convencer de que aquilo não tem que estar no mundo. Faço ideias muito duras sobre mim e sobre os outros. O autojulgamento é algo que nunca me abandona, feito um fantasma conhecido. Mas, por outro lado, nas raríssimas vezes em que eu gosto de um texto meu, só o que eu quero é continuar gostando, então mostro para minha mãe, que seria incapaz de fazer qualquer crítica. Não me orgulho. Mas é assim que é quase sempre. Às vezes é saudável admitir que somos limitados e propensos a ouvir fantasmas, rs.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Não convém eu dizer que sou analógica, porque escrevo muito no bloco de notas do celular. E nem coordenação motora eu tenho para querer escrever à mão na velocidade que as ideias às vezes pedem. Então, se eu disser que ignoro a tecnologia para escrever vai ser uma tremenda mentira, mas é só porque eu não tenho muita escolha mesmo, rs. Até porque concordo muito com a Nilma Lacerda quando ela diz que “a palavra é tecnologia humana”. Não tem nada mais tecnológico que a linguagem. Ela cria monstros, ideologias, medos, acontecimentos e tudo isso que a gente vê acontecer no mundo. Mas, falando dessa tecnologia que liga e desliga na tomada ou na bateria, o processo da escrita pra mim é algo muito fora das telas, acontece primeiro na barriga (aquela agonia incontrolável de botar pra fora quando bate uma ideia); depois, na observação muito descompromissada da vida, do rosto das pessoas no trem, da cor que tem de repente uma luz que chega no pé quando estou deitada na cama de manhã. Além dos cadernos, tenho loucura pelo tato e pelo cheiro do livro. Tentei e-books várias vezes, mas nunca consegui me encaixar.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Arte, rua, observação, gente, paisagem, viagem, bicicleta, comida, mar, introspecção, mergulho, silêncio, barulho. A criatividade pra mim vem de um fluxo muito intenso de vida que eu preciso manter aceso para me certificar de que eu também estou viva. Um fluxo que se movimenta de dentro pra fora e de fora pra dentro, que às vezes pede quietude e às vezes pede agitação, mas sempre acontece por dentro. “Belezas são coisas acesas por dentro”, etc e tal. Uma ideia me interessa mais quando nasce na barriga, muito antes de chegar à cabeça.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O que mudou foi a maturidade de não dar importância às certezas. Fico mais à vontade assumindo que não sei, e hoje vejo que minha escrita flui muito mais nas perguntas que nas respostas. Acho que, no fim das contas, escrevo para as crianças as dúvidas que eu ainda não resolvi comigo mesma. Se estivesse resolvido, não teria livro. Acho que não cabe muita literatura no lugar onde tem muita certeza, não. Mas eu não substituiria nenhuma das minhas palavras imperativas e afirmativas do passado. Foram delas que eu saí mais certa de que não estou certa de nada. O que busco também é estar cada vez mais atenta aos excessos e me cortar muito. Ouvi isso de um amigo e levo comigo: “nenhum discurso pode ter mais importância que uma história”. Tem também aquela velha máxima do Manoel de Barros: “repetir repetir até ficar diferente”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Quero escrever um livro de poemas que não seja nada menos que um livro de poemas. Ou seja: tarefa dificílima. Mas gostoso mesmo é me colocar no caminho. Tem um trecho de um poema da Ana Martins Marques em que ela fala de um poema que reúne pessoas em volta, como em um acidente em que todos querem saber o que aconteceu.