Regina Celi Mendes Pereira é escritora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
De início, quero registrar meu entusiasmo com o convite para participar desse projeto sobre escrita e compartilhar minhas experiências com o ato de escrever. Ainda que não me considere uma escritora, no sentido mais usual do termo, a escrita é meu objeto de trabalho e vejo esse objeto sob três perspectivas, do ponto de vista do ato criativo em si mesmo, do processo textual-analítico e também na dimensão pedagógica. Nesse sentido, a escrita me acompanha o dia todo, seja em atividades de elaboração propriamente ditas, seja de orientação (na leitura dos textos de meus orientandos) e seja ainda no que diz respeito às ações que implicam processos de ensino-aprendizagem da escrita acadêmica, que é meu nicho de atuação por excelência. Então, falar sobre como eu escrevo está diretamente relacionado a o que escrevo e a escrita acadêmica é o que me ocupa o dia todo, e, finalmente, focando na pergunta sobre como começo o meu dia, inicio meu dia de trabalho me alongando, minhas gatinhas me (re)ensinaram isso, e fazendo café: o alongamento destrava o corpo, o cheiro do café destrava a mente, ativa insights e nessas horinhas encantadas pode surgir alguma ideia para outra modalidade de escrita que tem me fascinado ultimamente, o texto poético.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Minha prática de escrita acadêmica é guiada por prazos e demandas, nesse sentido, não há um melhor horário, o que importa mesmo é conseguir tempo, ter um horário, seja ele qual for. Já no que se refere a um ritual de escrita, diria que a escrita do texto acadêmico tem um ritual próprio que consiste em seguir um planejamento que inclui o antes, o durante e o depois da execução da pesquisa. Do ponto de vista acadêmico, não se concebe escrever de improviso, a escrita do texto é a etapa final de um processo, ainda que a partir daí se inicie o trabalho de textualização que passa a constituir um novo processo, recursivamente. Essa escrita vai sofrer, então, as influências do gênero textual que se ajusta à situação comunicativa (artigo, resenha, relatório etc), e passa a constituir a segunda etapa do “ritual”, marcado pela organização textual-discursiva que vai demandar uma constante elaboração e reelaboração. Talvez o mais difícil para o autor seja identificar quando o texto está, de fato, finalizado.
Já no que se refere à escrita do texto poético, o processo é completamente diferente e, ainda que eu esteja apenas engatinhando nessa modalidade de escrita, arrisco-me a falar um pouco sobre como compreendo essa diferença. O processo criativo do texto poético, em especial do poema, é algo que vai se constituindo de uma forma inesperada, sensorial e misteriosa, mas quase sempre, no meu caso, condicionada por um tema. O tema é meu fio condutor na escrita do poema, é por ele que avalio o que falta e o que sobra na configuração poético-discursiva. Outras vezes, mais raramente, a motivação de uma só palavra, apenas uma palavra (ou sintagma) desencadeia o processo e a partir dela, dá-se o desdobramento, algo experimental, como em um jogo de quebra-cabeças, testando a palavra que melhor se encaixa no verso, no poema. Essa epifania pode surgir em qualquer lugar, a qualquer momento, isso é muito mágico, sinestésico. Um aroma, uma imagem, gatos, sentimentos podem desencadear o ato criativo e depois, aí sim, vem o trabalho artesanal, burilando e polindo o verso, esculturando o poema. Essa etapa pode levar bastante tempo, trabalho e conduzir o poema para outra direção não prevista, quase como se o poema fosse dotado de uma energia própria e nos coubesse apenas a sensibilidade para captar essa energia e segui-la, ajustá-la à voz da autoria. Então, nesse momento inicial, tudo é imprevisível, não há ritual, mas vou confessar algo um tanto quanto “prosaico” na minha escrita “poética”, quando estou academicamente ociosa, mas exercitando o corpo na outra “academia”, costumo explorar mentalmente possíveis versos e muitos poemas que escrevi surgiram enquanto fazia esteira, musculação e abdominais. É a primeira vez que digo isso publicamente.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Sobre essa questão do fluxo de produção, acredito que já respondi isso na questão anterior, a minha escrita acadêmica é guiada por prazos e disponibilidade. Já em relação à escrita de poemas, conforme também registrei na resposta anterior, é completamente imprevisível, não há metas, não há prazos, posso passar vários dias, até semanas sem escrever um só verso.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A escrita de qualquer texto começa bem antes da primeira palavra escrita, antecedida por aspectos sociossubjetivos que circundam e condicionam a elaboração de todo e qualquer texto. Destaco também o caráter contínuo e recursivo do texto escrito, principalmente da escrita acadêmica, já que a elaboração de um artigo científico, por exemplo, começa bem antes que se inicie a sua escrita efetiva, implica a elaboração de outros textos. Inicia na escrita dos resumos de textos de consulta e na formulação de paráfrases a fim de exercitar o caráter dialógico e, ao mesmo tempo, autoral da escrita acadêmica. Por essa razão, costumo dizer aos meus alunos, ainda que eles sintam certa insegurança em começar a escrever, os primeiros passos já foram trilhados, nesse momento, então, cabe investir na planificação e organização textual. Assim, a elaboração de um sumário e de um esquema ajuda muito no percurso de expansão do texto. Na escrita de poemas, eu vivencio um movimento inverso, demorei a me dar conta disso, ainda estou em fase de aprendizagem, mas consigo avaliar como é frutífero exercitar os dois movimentos por mim definidos, na falta de um melhor conceito, de expansão e de condensação. Se na escrita acadêmica há a necessidade de ampliar, evidenciar com dados, argumentos e contra-argumentos suas assertivas, a elaboração de poemas segue um caminho oposto, onde o maior desafio é dizer pouco e sugerir muito, que o verso seja a um só tempo, contundente e impreciso, certeiro e ambíguo. Talvez seja o poema o melhor vetor para exemplificar a direção oposta das forças centrípeta e centrífuga: a primeira promove uma tal densidade na seleção e na escrita de cada verso-palavra que os puxa para o centro do poema; a segunda, devido a essa mesma densidade, faz com que os sentidos se projetem, explodindo em vários movimentos interpretativos.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Costumo dizer que a melhor forma de destravar o momento inicial da escrita é escrever o primeiro parágrafo, e devido ao caráter planejado, contínuo e recursivo da escrita acadêmica, conforme já mencionei anteriormente, os primeiros movimentos de elaboração textual já começaram: no resumo de textos teóricos que são essenciais à discussão e nas paráfrases que são feitas ao longo da pesquisa, na revisão dos trabalhos anteriores. De qualquer forma, tenho recomendado aos alunos e orientandos que a elaboração de um esquema ajuda muito na organização do texto, além disso, a definição de pequenas metas quinzenais ou mensais ajuda a controlar a ansiedade e os prazos em projetos mais longos, a exemplo de elaboração de dissertações de mestrado e teses de doutorado. Quanto ao medo de não corresponder às expectativas, sempre vai existir, até que um leitor especializado se posicione sobre o texto. Essa coisa da validação é muito importante, o próprio autor pode até avaliar positivamente seu texto, mas a validação tem de vir de outro leitor, preferencialmente, que tenha capital simbólico para isso.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
O processo de revisão e de reescrita é quase interminável, a gente sempre encontra alguma coisa ou deixa escapar outro tanto de detalhes, por essa razão, a leitura atenta de um colega é fundamental antes de considerar o texto pronto. Coordeno um projeto intitulado Ateliê de Textos Acadêmicos, temos uma página no facebook e lá divulgamos muitas orientações sobre escrita acadêmica. A nossa equipe conta com vários colaboradores, daí procuramos proporcionar a troca entre os textos quando estamos em processo de elaboração. Uma experiência muito produtiva, embora às vezes seja um tanto quanto traumática, é quando recebemos um parecer especializado sobre um artigo, no qual é pontuado tudo o que pode ser ampliado e melhorado no texto. Ainda que o parecer seja contrário à publicação, quando elaborado por um especialista atento e criterioso pode ajudar no fortalecimento do texto.
O olhar atento do outro também é valioso na elaboração de poemas, tenho alguns poucos amigos poetas com os quais compartilho os poemas em fase inicial, as impressões trocadas são muito bem-vindas e muitas vezes o poema ganha outra dimensão. Conforme bem pontua Authier Revuz, a alteridade é constitutiva, ainda que a decisão final seja sempre de responsabilidade individual, autoral. Cada poema tem um fio condutor e o poeta, melhor do que qualquer outro leitor, consegue avaliar de que modo a sugestão pode preservar esse fio, harmonizando com o seu projeto discursivo individual.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Os textos acadêmicos são iniciados sempre no computador porque já fazem parte de movimentos de leitura e reflexão anteriores. No caso dos poemas, não é assim tão sistemático. Já aconteceram coisas bem interessantes, em plena leitura de uma tese ou de um capítulo teórico, surgir um insight, uma determinada combinação de palavras que provoca a escrita de um verso que pode ou não se desdobrar em algo maior, mais consistente ou não. Então eu registro com lápis grafite na página da tese ou do livro pra não perder, pra não deixar escapar. Tenho usado também o aplicativo do celular pra registrar versos iniciais quando, no momento, não disponho de um bloco de notas ou computador, mas é na tela do computador que se desenvolve todo o trabalho de experimentação com as palavras.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Leitura e escrita sempre caminham juntas e é por meio da leitura que a gente vai se aperfeiçoando, conhecendo outras teorias, outras formas de escrever e vai aprendendo continuamente nesse processo. Em relação à poesia, é fundamental a leitura constante de poemas, todos os tipos de poemas, diferentes poetas, os clássicos, os consagrados, os vanguardistas e os desconhecidos.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Um texto acadêmico nunca está completamente acabado. Se tivéssemos tempo para retomá-los um a um, certamente, modificaríamos algum aspecto tanto referente à textualidade quanto ao conteúdo, mas boa parte são textos já publicados e essa retomada seria impraticável. No entanto, tenho pesquisado a escrita acadêmica em diferentes áreas de conhecimento e esse mergulho em distintas culturas disciplinares e modos de escrever me fez repensar a minha escrita. Tenho tentado ser menos prolixa na abordagem dos temas, procuro rever estruturas sintáticas também, avaliando a necessidade de manter determinadas perífrases verbais, modalizadores etc. Já na escrita de poemas, sou muito iniciante, não consigo me distanciar o suficiente para ter a percepção do que mudou ou do que posso mudar. No momento, procuro estudar para desenvolver essa visão metadiscursiva dos meus poemas.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
A minha expectativa é continuar exercitando a escrita poética. Uma escrita que estava adormecida desde os anos iniciais de graduação e, ainda que já tenha iniciado, lançarei meu primeiro livro de poemas, agora em março, Versos no Camarim, pela Editora Penalux, está em pleno processo de construção. Darei continuidade a esse desafio, enquanto me sentir motivada e a motivação por aprender é muito grande em minha vida. Sobre a segunda pergunta, não consigo formular uma representação sobre um livro que não existe, mas gostaria muito de ter mais tempo para ler os que já existem, muito já foram comprados e ainda não lidos.