Régia Oliveira é professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tenho. Começo meu dia com um bom café coado. Após o café da manhã, acompanho meu filho nas suas tarefas escolares, quando não estamos a caminho das suas aulas de cello ou de futebol. No retorno, no metrô, quando a viagem se faz mais solitária, depois de ter deixado meu filho na escola, vejo mensagens do celular, depois leio textos diversos, que sempre carrego comigo; faço anotações ao lado dos textos, que vão desde observações daquilo que leio, reflexões que me ocorrem dessas leituras e lembretes para mim mesma de algo que me surge e que deve ser retomado ou que pode servir como indicação de leitura para alunos que oriento. A minha leitura, nesses momentos, acaba sendo quase sempre interessada, para minhas pesquisas e de meus alunos. Poucas as leituras que faço nesse percurso são mais displicentes, acaba sempre havendo um movimento de busca para as questões de pesquisa, que não para.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho melhor no período da manhã e à tarde, depois das 15h. Mas o período da manhã nem sempre é possível, dada a rotina familiar e doméstica. Não trabalho bem à noite, momento em que me sinto mais cansada e menos produtiva. Por isso, muitas vezes, trabalho também nos finais de semana. Quando necessário, tendo em vista prazos de entrega de artigos, pareceres, trabalho também de madrugada. Se estou descansada, a madrugada acaba sendo um período excelente para o trabalho de escrita, tendo em vista o silêncio da casa e a possibilidade de entrega absoluta a essa atividade.
Não tenho propriamente um ritual de preparação para a escrita, mas alguns movimentos me ajudam nesse processo. Estar escrevendo sempre, no formato de anotações como aquelas que mencionei, feitas ao lado dos textos lidos e também em cadernos de pesquisa, são para mim essenciais para iniciar a escrita de um artigo ou de um relatório de pesquisa. Reler essas anotações me ajuda também a pensar na proposição de temas para a discussão; a retomar textos já lidos, a buscar novos textos.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Sempre procuro trabalhar com metas, buscando com isso me organizar melhor. Para isso, faço cronogramas de escrita, uma vez que já tenha mais ou menos um desenho daquilo que gostaria de discutir. Nesses cronogramas, no plural mesmo, pois vou fazendo reajustes ao cronograma inicial, busco dividir, na semana, ou semanas, os itens que gostaria de discutir. Como normalmente tenho poucas horas diárias no período da tarde para me dedicar à escrita, preciso me organizar para conseguir escrever durante a semana. Essas horas da tarde dividem atividades familiares, como buscar meu filho da escola, com atividades docentes, de pesquisa, ensino e extensão, de modo que os finais de semana são muitas vezes os dias em que mais consigo me dedicar à escrita, além do período das férias escolares.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo de escrita passa necessariamente pela releitura das anotações feitas, que vão desde observações de pesquisa e apontamentos de textos lidos, a anotações de falas de colegas em congressos, ou de alunos em sala de aula, que me fazem pensar. Começar a escrever não é difícil, pois antes disso, há uma ideia, um tema, que está movendo essa escrita. O início se faz a partir desse tema e da organização provisória de tópicos dos subtemas que pretendo discutir. O artigo vai ganhando corpo, fazendo-se e se refazendo a cada vez que escrevo. Em pesquisa, anoto muito em um caderno, que chamamos em pesquisa qualitativa de caderno de campo. Anoto todas as observações que faço e aí anoto tudo, o entorno, minhas impressões, reflexões que me surgem e lembretes para mim de autores e estudos que podem me dar suporte a essas ideias; dúvidas, inquietações e tudo isso é material para a escrita. A releitura desse caderno é parte bastante importante para as reflexões que buscarei desenvolver em meus textos.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
As travas sempre podem acontecer. Nesses momentos eu me afasto do computador, vou tomar um lanche, um banho, e depois volto ao texto, nem que seja para ver a formatação e ajeitar as referências bibliográficas. Estar sempre mexendo no texto, para mim, minimiza essas travas. Eu me cobro bastante na escrita, aprendi a ser assim, tendo tido orientadoras e supervisora com esse perfil de exigência que me agradam muito. Gosto de situar bem os termos que uso, de procurar deixar a ideia clara, bem trabalhada e me dá muita satisfação quando acredito ter conseguido esses intentos. A busca é sempre essa, de desenvolver boas reflexões, a partir de determinado suporte teórico, construindo um texto fluido e articulado, também agradável de ser lido. As maiores expectativas são então as minhas. Quando acredito que o texto está bom, no caso de um artigo, faço a submissão. Não há, portanto, um medo de não corresponder a expectativas outras porque no caso de um artigo, só faço o envio se acredito que o texto está adequado, o que nem sempre é confirmado por quem o lê, havendo muitas vezes a necessidade de mais reajustes para nova submissão. Projetos longos também não me causam ansiedade, gosto muito de trabalhar em projetos longos.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso muitas vezes, não saberia dizer quantas, mas sempre releio o texto, reviso cada trecho escrito, releio, mexo, modifico. Cada vez que sento diante do computador para voltar à escrita do texto releio tudo, desde o início. Mas para que eu sinta que o texto está pronto vai um longo processo, de muitas revisões. Eu gostaria muito de mostrar meu texto para outras pessoas, para meus colegas lerem, mas acabo não fazendo isso, acredito que por considerar as muitas atribuições de todos nós docentes, pesquisadores. Mas esse diálogo fundamental de ideias e reflexões felizmente acontecem, em especial, nos encontros acadêmicos e também em escritas conjuntas, de co-autoria.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu escrevo direto no computador, mas minhas anotações e observações de leituras e de pesquisa são sempre feitas à mão, em um caderno. Essas notas são grande parte das vezes a matéria prima para a escrita. Elas não são um rascunho para a escrita, mas podem alimentar essa escrita, servindo de gatilho para reflexões que pretendo desenvolver.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias e reflexões vêm de um conjunto de fatores muito comuns ao trabalho de pesquisa: das leituras, aulas, encontros científicos, orientações e, muito especialmente, da observação e reflexão em campo, da busca de escuta atenta dos sujeitos de pesquisa e das anotações que faço depois desses encontros.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Eu diria a mim mesma para seguir em frente. Todo o processo e suas etapas, desde os primeiros escritos na graduação, foram muito importantes. Sempre trabalhamos com prazos e isso não fica diferente, apenas vamos criando mais bagagem, mais experiência, tendo mais traquejo para realizarmos várias tarefas de escrita ao mesmo tempo, como relatórios, artigos e pareceres. Eu não mudaria nada em meu processo de escrita da tese. Naquele momento, pude me dedicar integralmente a esse trabalho e o meu processo de escrita é muito parecido até hoje, desde aquele momento.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O projeto que gostaria de fazer e que ainda não comecei eu não saberia dizer, pois como pesquisadora, estou quase sempre iniciando um novo trabalho, uma nova investigação, ou envolvida com novos projetos, como orientadora. Também não saberia dizer sobre um livro que gostaria de ler e que ainda não existe. Há tantas descobertas a fazer, mesmo em textos que já lemos e que só percebemos numa ou mais releituras ou num dado momento de nossa vida em que nosso olhar e compreensão se voltam para algo ainda não visto ou que, até então, era visto de um outro modo…