Ravenna Veiga é performer e escritora, autora de “O Silêncio de Cassandra” (Mocho Edições, 2020).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu trabalho em horário comercial, home office, mas tenho um determinado horário a cumprir, normalmente acordo uma ou duas horas mais cedo do que o necessário porque geralmente a manhã é um período para pensar. Fico sentada em silêncio por um longo tempo. Não sei se organizar as ideias seria uma boa definição, mas eu sinto que pela manhã costumo pensar em coisas que não penso no restante do dia. Também não acho que seja meditação, não exatamente, é só ficar parada pensando mesmo. Basicamente eu acordo mais cedo pra não fazer nada durante algumas horas antes de começar o dia. Não faço exercício, não me alongo, não faço orações, não medito, não cumpro nenhuma lista de tarefas porque as vezes eu acho que, no mundo de hoje, só ficar parado em silêncio é muita coisa. É engraçado porque as conclusões e decisões mais importantes que tomei ultimamente vieram dessa prática. Fico mau humorada quando algo acontece e que impede que eu faça, isso, parece que meu dia não começa direito. E se meu dia for começar as 6 da manhã, acordo umas 4:30 só pra poder ficar parada pensando. Depois disso tomo banho porque acho importante lavar a cabeça pra começar um novo dia. Sou bem metódica então tenho até horário pra xícara de café. A primeira costuma ser entre 7 e 8 e a segunda as 11h.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Depende do trabalho, O Silêncio de Cassandra, meu primeiro livro, precisava ser escrito enquanto o sol estivesse visível, porque eu trabalhava muito com a energia do sol. Pra mim escrever é uma experiência do corpo, então eu geralmente crio as condições para alinhar meu corpo inteiro com aquilo que estou fazendo, eu não escreveria do mesmo jeito se tudo acontecesse nas ideias e não chegasse na pele. Cassandra era uma sacerdotisa de Apolo. Eu desenvolvi uma série de procedimentos pra esse trabalho específico, e são procedimentos parecidos com o que eu uso no teatro e na performance, onde esse processo surgiu. Tudo começou por causa de um estudo cênico a partir do ciclo troiano, e nesse estudo eu pesquisava Cassandra, estudava no corpo, na voz, procurava estados corporais alterados e certamente isso tudo foi para a escrita, porque a escrita começou na sala de ensaio.
A princípio eu terminava meu ensaio e escrevia em fluxo (costumava ensaiar das 7:30 às 13h), depois o método das derivas pela cidade entrou no processo e eu escrevia. As vezes pegava um ônibus que saia do Terminal Parque Dom Pedro II e ia até a Lapa, e nesse percurso pelo centro, eu escrevia, já escrevi no metrô e na CPTM também. Consegui uma residência artística no Centro de Referência da Dança pra ensaiar a parte performática do processo, então ensaiava células cênicas, dançava, escrevia. Ou então passeava no Vale do Anhangabaú, coletava impressões e ia anotando de forma caótica e depois organizava tudo e tratava o texto.
Acho que a experiência mais louca foi uma deriva no Shopping Light, na qual me dei a tarefa de anotar todas as frases que eu ouvia enquanto passava pelas pessoas, porque queria entrar num estado em que eu não quisesse mais ouvir nada. Fiz isso para estudar como seria esse estado em que Cassandra não consegue parar as comunicações dos deuses, mas no caso os “deuses” eram seres vivendo naquele espaço de consumo, de compulsão, desse inexorável do capitalismo. Ao final da experiência de não poder parar de anotar tudo o que eu ouvia, minha cabeça latejava de dor. Esse tipo de experiência foi fundamental para escrever.
Começou a pandemia e tive que adaptar tudo para o espaço de um apartamento. Mantive o horário e, durante o processo eu comecei a experimentar o uso do louro, da artemísia e de outras plantas. Queimava louro e aspirava a fumaça, isso alterava bastante meu estado corporal antes de escrever, em alguns momentos tomei chá de artemísia ou do próprio louro, que eu também costumava mascar, quando você masca bastante ele produz alguns estados bastante interessantes no corpo. Eu entendia que esse processo era de Apolo, então de alguma maneira precisava me alinhar com ele, fiz um altar, fazia orações a esse deus também.
Algumas passagens desse livro são de antes do próprio começo desse processo criativo. Eu trabalhei algum tempo como operadora de telemarketing, trabalhei de campanha eleitoral por telefone a venda de assinatura de revista, também trabalhei como vendedora em alguns comércios e foram experiências que me marcaram muito pela brutalidade, pelo comportamento atroz dos seres humanos com quem consideram subalterno. Eu escrevia sempre que alguém me maltratava porque sentia que, se eu respondesse perderia meu emprego, então eu precisava me vingar de alguma forma. Não tem o nome de ninguém escrito ali, mas de algum jeito essas pessoas estão marcadas lá, e a idiotice delas gerou poesia, nada pior pra uma babaca. Tem dois momentos do livro que vieram de anotações desse período, porque percebi que cabiam: um é sobre o sacrifício de Polixena e outro é sobre a morte de Astíanax, que tem relação com uma operadora de telemarketing que se atirou do prédio de uma das empresas que trabalhei. Esse especificamente também tem relação com as pessoas LGBT que trabalham nessas funções, porque elas “não podem ser vistas pelo público” e as taxas de suicídio são altas.
Agora comecei/retomei um outro processo criativo que funciona com regras e procedimentos diferentes, porque eu quero outra coisa com ele. Não vejo sentido em ter métodos gerais se cada trabalho pede uma coisa diferente, um estado corporal diferente. É um processo para um livro que, até então, vai se chamar Koré, ele tem relação com o hino homérico a Deméter e com os mistérios de Elêusis, mas transportados para os ambientes digitais. Tenho entrado em fóruns da internet, assistido e lido muitas coisas sobre a deep web, porque esses ambientes representarão o mundo dos mortos. A personagem que tem relação com Perséfone não é levada por Hades, mas tem sua imagem capturada e transportada para esse mundo. Só escrevo após as 22 horas e, como a personagem principal tem uma relação com o álcool que eu não tenho, bebo alguma coisa alcóolica para escrever – com cuidado e responsabilidade – já que não vejo sentido em agredir meu corpo para isso. Tenho uma frequência de escrita menor por causa dessa demanda, não posso entrar nesse estado todos os dias sem me agredir.
Esse trabalho é narrado por diferentes vozes em primeira pessoa, então eu falo um texto em fluxo, em voz alta, antes de escrever. Ele também tem um tom mais coloquial, então não faz muito sentido eu ficar pensando em como seria uma voz coloquial, eu falo como alguém poderia falar determinada coisa e escrevo depois.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
De jeito nenhum, passo longe de meta. Meta é uma coisa do mundo dos negócios, eu recuso a entrada desse tipo de coisa na minha criação artística, como um ato político. Tenho metas no meu trabalho, tenho metas para pagar contas e dívidas, tenho metas de obtenção de coisas materiais, metas de vida, já tenho metas demais. Não vivo numa caverna. Mas o mínimo que posso fazer é preservar a minha criação artística dessa lógica perversa. Nem mesmo quando ganhei o ProAc e que tinha um prazo de execução eu me fiz esse tipo de afronta, porque pra mim escrever é uma delícia, não é um sofrimento, não é uma tarefa a ser cumprida, é uma espécie de êxtase que só acontece, não faz nem sentido por meta, nunca senti necessidade. Gozar é gostoso, alguém tem meta de orgasmo no mês? Só falta. Escrever é a mesma coisa.
Respeito muito que algumas pessoas gostem de se educar dessa maneira, e acredito que funciona pra muita gente incrível que tem a capacidade de roubar/sugar do capitalismo as ferramentas dele pra cometer o ato de rebeldia que é criar, mas pra mim seria uma agressão, seria como se um megaempresário de uma multinacional colonizasse a minha imaginação. Alguma coisa na minha vida precisa não pertencer a eles, não?
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Pra mim são coisas simultâneas. Eu não consigo ter uma ideia que só existe no pensamento e querer transpor a ideia pra criação material de uma obra de arte. Isso eu aprendi estudando dança, pensar numa célula coreográfica e querer que ela aconteça no corpo como você pensou não funciona. Você precisa fazer, e fazendo você descobre como, e fazendo a transformação da ideia em coisa que existe acontece. Tenho um professor da faculdade que diz que uma cena ruim é melhor que uma cena que não foi feita, é sempre melhor começar na prática, escrever, experimentar, não tem problema se sair ruim, não tem ninguém vendo, é melhor do que não fazer porque você acha que não vai conseguir aplicar sua ideia perfeita, depois corrige, apura, pede opiniões porque as vezes do erro sai alguma coisa incrível. Eu sou uma artista do corpo e não acredito em corpo e mente, pra mim mente é corpo. Então respondendo a pergunta, eu me sinto movida por questões, estabeleço um fluxo que normalmente entrelaça estudos teóricos e experiências/vivências psicofísicas. Vou dar um exemplo: me senti movida pelo tema “oráculo” , é claro que eu vou ler muito sobre oráculos, mas vou ler traduzindo o que encontro num plano de ação, num programa de performance ou de treinamento corporal, a escrita aparece da experiência. Depois de tudo isso eu só organizo e apuro o material que tenho.
As vezes eu sou sequestrada por alguma experiência e isso vira um texto, sem planejamento. Eu frequento o Santo Daime desde o final de 2018, muitas coisas que escrevi vem de experiências com a bebida. Não costumo escrever na hora, pra não atrapalhar o fluxo do rito, mas sempre me lembro das coisas que vi e experienciei e transformo em escrita.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Tinha problemas com isso quando era adolescente, eu nunca conseguia terminar nada poque nada era bom o suficiente para tudo o que eu achava que deveria ser. É muito injusto submeter sua criação a critérios que existem antes mesmo que ela possa existir de fato, e ela só existe no contato com o mundo, com o outro. Como eu disse na outra pergunta, é muito triste sacrificar o universo que pode ser uma experiência por um julgamento, medo ou trava quando você compara o que você realmente pode fazer com aquilo que não existe e não vai existir nunca que é: aquilo que você acha que sua obra deve ser.
Eu acredito em deuses, espíritos, em vida após a morte, mas não acredito nas minhas ideias brilhantes até colocá-las a prova no ofício do artista. Eu acho que vivemos num mundo que separa tanto o trabalho intelectual dos outros tipos de trabalho que em algum momento o escritor se convence que ele é uma cabeça sem corpo e esquece que isso é um ofício, um trabalho até manual. É a lida, o fazer. Pra mim a minha ideia nem existe, nem levo em consideração até ela se feita de verdade, se ela não se põe a prova, nem merece atenção, fica na gaveta e tudo bem. Não sou um ser iluminado e especial cuja genialidade incompreendida não acontece no mundo real, só dentro da cabeça. Eu precisei dançar pra conseguir escrever, pra compreender essa dimensão. Desde que comecei a dançar e a fazer performance eu parei de sofrer por ideias que não existem no mundo e que ainda não existem para ninguém além de mim. Faço com que existam no mundo pra depois apurar, lapidar porque ai estou lidando com uma obra real e não com um fantasma intocável, inatingível.
Quanto a travar, eu prefiro travar as vezes do que escrever sempre a qualquer custo. Não tem sentido ficar querendo me forçar a isso. Pra que? A trava passa naturalmente, eu sempre sei que ela vai passar e quanto menos eu me preocupo, mais rápido ela passa, porque acontece alguma coisa, as vezes andando na rua, as vezes ouvindo alguém falar alguma coisa, dá vontade de escrever.
E sinceramente? Que mercado editorial nós temos pra exigir isso de nós mesmos? Um mercado que, com exceções (felizmente tive uma experiência muito boa e muito fora da curva publicando com a Mocho), trata o escritor iniciante ou independente como lixo. Ninguém vai te pagar pra você escrever, vão no máximo te dar um ou dois exemplares, como se um exemplar de uma revista pagasse conta de luz de alguém, como se fosse um favor de uma editora te publicar. Já vi chamada de publicação de revista literária com assinatura paga que não tem a dignidade de remunerar o escritor com dinheiro ou com uma quantidade de exemplares que valha a pena vender.
É um meio tão burguês que nem entende o escritor como um trabalhador que merece remuneração, então qual o sentido de engolir valores de produtividade de um mercado que nem te paga?! Alguém quer saber se você tem direitos, se você está comendo, se cortaram sua luz, sua internet, se você vai ter o direito de se aposentar pela sua real ocupação, se você tem acesso à saúde numa pandemia? Deve haver uma ação isolada ou outra, mas não supre tudo. Quando estivermos falando nesses termos eu penso se posso parar minha vida pra me preocupar se estou atendendo a algum critério que existe fora do meu desejo. Até segunda ordem, quem manda é o tesão por fazer, e ai as ansiedades, medos e travas atrapalham, não dou essa moral pra essas coisas.
Isso me faz pensar e ter muita agonia de que é um meio tão elitista que não faz nem sentido ficar nervoso com a ineficiência do nosso próprio trabalho. As contas não são pagas por ele e as vezes quem precisa pagar contas com outro trabalho que permite menos o espaço para a criação, não consegue ser escritor porque se perde nesse sofrimento. Sinceramente eu fico muito chocada que o reconhecimento do escritor como trabalhador com direitos básicos não seja uma luta radical pra maioria das pessoas que pensam e fazem literatura. Se alguém souber de um coletivo que se ocupa disso, por favor me avise, porque quero participar.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu perco a conta. Não sou aquelas pessoas que escrevem uma vez e não leem mais. Sempre que vou pegar um trabalho em andamento, dou uma lida geral em pelo menos algumas páginas anteriores e sempre faço correções. Nunca achei que não vale a pena. Tem dias que não escrevo nada, só reviso. No Silêncio de Cassandra, o Régis Luz, o primeiro revisor, revisava enquanto eu escrevia. Eu ia achando que uma parte ou outra já estava ok, colava no drive, ele revisava e já ia avisando se alguma coisa não estava clara, não chegava no ponto que eu queria ou precisava ser aprimorada. Depois a Heloísa Beraldo fez uma revisão final, muito criteriosa. Então além das minhas leituras e correções prévias, eu trabalhei com dois revisores, mais o olhar de editora da Deborah Leanza, da Mocho, que também ajudou nesse sentido. Jamais abriria mão disso. Pretendo repetir esses métodos das próximas vezes.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
A tecnologia faz parte do meu processo criativo e tenho investigado como parte da minha linguagem enquanto artista, em várias dimensões. Eu atualmente trabalho com UX Design, trabalho com tecnologia, com um pensamento que olha a tecnologia pela perspectiva do usuário. Além disso eu tenho investigado como a tecnologia pode estar presente na minha criação literária. O poema pelo qual fui contemplada pelo edital Arte Como Respiro, do Itaú Cultural, se chama “Futuro (6 caracteres)’’, nele eu experimentei escrever versos que deveriam ter até 140 caracteres, como era no Twitter, e caso os caracteres acabassem antes de uma frase ser concluída, eu a interrompia e passava para o seguinte. Como era um poema sobre a pandemia, esse recurso me ajudou a criar a sensação de uma fala entrecortada, de uma fala sem ar. Ao mesmo tempo foi uma provocação, porque o edital estabelecia que os textos deveriam ter até 800 caracteres. Me desculpa pela palavra, mas caralho, estamos com medo de não ter recursos para sobreviver, com medo de morrer, com medo de perder gente, eu perdi um familiar pra COVID-19 e quase perdi outro, está difícil ser artista em meio a tudo isso e então dizem, olha: faça seu trabalho em 800 caracteres ok? Eu fiz, eu ganhei, mas não ia deixar isso passar sem problematizar, não com uma crítica aleatória por ai, mas com meu trabalho que é a minha militância. Sei que tem gente legal trabalhando ali e que pensou isso da forma como pôde, o trabalhador da instituição não é o dono do banco, achei que fazer um poema que incorporava isso na linguagem era uma boa forma de criticar respeitando.
Trabalhar com tecnologia também na minha estética, me trouxe uma perspectiva crítica. Nós estamos sendo treinados a só aceitar informações curtas, rápidas, que possam ser facilmente apreendidas AGORA. Nós vamos endossar essa lógica? Porque a implicação mais brutal disso é governo sendo eleito por fake news. Já que toda a informação tem que ser rápida e curta, a chance e o hábito de verificar informações diminui e as informações falsas viralizam. Eu vou reclamar mesmo de alguém contar meus caracteres não porque eu me sinto lesada ou ofendida enquanto artista, mas porque essa lógica é perversa e em última instância ela censura o artista e promove um jeito de viver a vida e olhar o mundo.
Fiz algumas outras experimentações, em O Silêncio de Cassandra, o sacrifício de Ifigênia é narrado como um hentai, que é uma forma de desenho erótico altamente difundida na internet, e que algumas vezes envolve a erotização de figuras bastante infantilizadas, fiz essa crítica. A passagem na qual Clitemnestra mata Agamemnon e Cassandra foi narrada como um vídeo snuffda deep web. Primeiro, quis experimentar escrever um texto como se fosse um vídeo, segundo, nas tragédias gregas a violência não é mostrada em cena, tracei o paralelo para o mundo onde a violência é espetáculo, é compartilhada e viralizada. Essas são algumas das experiências que fiz e continuo fazendo outras.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Não tenho um conjunto de hábitos para ter ideias, eu sinto que as ideias vêm. Andando na rua, pegando um ônibus, vendo um vídeo, notícia, algo que alguém falou por aí. É muito variado. Eu estou prestando vestibular pra Letras, porque eu sinto falta da vivência universitária, era um ambiente que me instigava muito, ainda quero seguir carreira acadêmica, mas prefiro me consolidar como artista primeiro. Eu só respeito meus fluxos, acho que o resto, como disse, são procedimentos adotados para cada obra e suas necessidades.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que eu ganhei mais calma e mais segurança. Isso tem a ver com o que eu disse na pergunta sobre ansiedades, e as grandes ideias perfeitas que só existem na cabeça. O que eu sinto que mudou no conteúdo do que eu escrevo foi a preocupação com a dimensão pública do que eu faço.
Tive um professor de teatro, o Francisco Medeiros que foi também um grande diretor de teatro e que infelizmente faleceu em 2019, mas a quem eu dediquei meu livro, justamente porque ele batia sempre nessa tecla. Sempre perguntava: qual é a dimensão pública do que você está fazendo? Será que tudo é sobre expressar sua dor pessoal? Isso não é uma cilada de um mundo cada vez mais focado no individualismo?
Eu comecei a escrever adolescente, e tudo era sobre minha dor. Eu estava mesmo em sofrimento psíquico, em depressão, a dor existia, e era uma dor que vinha de experiências intensas relacionadas a gênero, machismo, violência. Na vida adulta passei por dois abusos sexuais, um dia esse professor pediu para que coletássemos relatos pessoais para a nossa peça, eu escrevi sobre um dos abusos e percebi que eu tornava aquilo tão meu, tão sobre mim e sobre o meu sofrimento que era difícil pra outras pessoas adentrarem aquele campo, criarem empatia, era algo pra ser contemplado e só, porque meus colegas de cena, que eram também amigos, tinham dificuldade de lidar com esse material tão íntimo. Comecei a me perguntar, de verdade, essa era isso o que eu buscava como artista.
Eu respeito quem busca esse lugar, mas não é o que eu quero fazer. Eu não quero acreditar que só quem é uma mulher lésbica que passou por abusos de homens hétero pode sentir o que eu sinto, essa ideia me entristece. Justamente porque eu não estou no corpo de outra pessoa, eu não posso dizer que ela não seja capaz de se sentir como eu me sinto, dentro do seu repertório de experiências, dentro do que pode, do que suporta. Eu não sei, não faço ideia, como eu posso afirmar que só quem é como eu sente como eu? Ao mesmo tempo isso só pode ser verdade e só pode ser mentira. Mas não quero acreditar que estamos tão sozinhos assim. Cada um é tão cheio de especificidades que o outro nunca entende, o outro nunca pode estar junto. Perigoso e conveniente,não?
Comecei a experimentar nem sempre dar nomes pros personagens porque talvez eles possam ser qualquer pessoa, comecei a falar mais sobre o que eles fazem no mundo. Passei a olhar mais pra fora, menos pra dentro. Isso trouxe a cidade como centro, a polis. Isso me devolveu a dimensão da escrita como militância por outra sociedade. Eu não sei dizer se ainda sou marxista, já fui militante trotskista, o que sei dizer é que ando mais sensibilizada por questões de classe, de trabalho, de coletividade do que por achar que o mundo precisa da expressão literária da dor íntima da Ravenna. O mundo não precisa de mim enquanto um indivíduo único e inalcançável pelos outros, acho que ele precisa de ação. E não é sobre ser utilitarista com a arte, eu jamais acharia que falar de si é algo que não deve ser feito, só acho que cada pessoa tem seu papel e sua importância dentro daquilo que sente que deve fazer e o papel que eu quero pra mim só não é esse, mas tá tudo certo.
Isso não significa que eu queira escrever um panfleto ou que só a escrita abertamente militante é válida, mas acho que o caminho do meio existe pra tudo, a crueza do mundo gera muita poesia, a dor, quando é mostrada como dor do mundo, como dor de todos, dor pública, tem uma potência dilacerante. Essa lição eu aprendi com as tragédias gregas, o Édipo não era um personagem individual, ele era uma categoria sobre a qual vivemos, pensamos e sentimos milênios depois. Essa é a força da coletividade.
É claro que minhas dores alimentam o que escrevo, mas alimentam, não dominam, eu posso escolher o que serve a um propósito com aquela obra. A saúde mental é um tema sério e eu gosto muito de cuidar dela com profissionais, porque eu não gosto da figura do escritor como alma atormentada e a glamourização disso, especialmente num mundo onde tem gente que não tem acesso à saúde e não porque quer. Sou mulher, sou lésbica, muitas coisas já aconteceram comigo e eu não quero e não vou me infringir mais dor e muito menos me reduzir a ela enquanto artista, tenho direito à sanidade, tenho direito ao bem estar e tenho direito ao que por muito tempo foi negado às mulheres: falar de temas públicos. Eu sou uma trabalhadora da arte e escolhi esse caminho, escolhi criar desse jeito, com esses mecanismos de criação, mas estou em paz com outras formas de fazer. Falo sobre isso porque foi essa a mudança mais radical que vivi.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu tenho medo de falar de um livro que eu gostaria de ler e que não existe porque provavelmente ele existe e eu só não conheço, tem muito livro no mundo. Acho que também não tenho um projeto que eu queira fazer e ainda não tenha começado. Tenho dois projetos novos em andamento, um sobre Perséfone, outro sobre Antígona, já publiquei um sobre Cassandra. Eu fico me perguntando se isso é algum tipo de série de livros sobre mulheres míticas no aqui e agora. Talvez a ideia não começada seja entender o que estou fazendo como uma coisa só. É que no geral eu tenho a ideia e imediatamente começo a fazer, o máximo que acontece é parar um pouco com ela, e deixá-la encostada até surgirem mais ideias, tempo ou espaço pra isso.
Acho que tem uma coisa que eu efetivamente não fiz muito, eu gostaria de escrever textos dramatúrgicos, mas não acho que eu saiba fazer isso. Então fico rascunhando coisas, mas ainda quero fazer um curso de dramaturgia pra ter ferramentas técnicas pra isso. Estou prestando vestibular pra Letras, porque quero estudar grego antigo, já estou fazendo aulas particulares e alguns trabalhos cênicos em grego, então acho que já conta como começado.