Raquel Soares é escritora.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Procuro manter uma rotina igual todos os dias, mas, às vezes, algumas pequenas variantes durante a semana acabam fazendo com que eu mude alguns hábitos e afazeres aqui e ali. Geralmente, tento acordar cedo para conseguir tomar um bom café da manhã e, depois, vou para sala me exercitar um pouco. O resto do dia tento reservar um tempo para ler, outro para escrever (se possível) e um terceiro para desenhar se estiver no clima. Nas minhas leituras, eu costumo fazer um sistema de metas: ler cinquenta ou cem páginas por vez. Claro que se o livro acabar me prendendo com sua história, posso acabar dobrando a meta e esquecer todo o resto que estava planejando para o dia.
Quanto a escrita, depende muito se estou trabalhando em um novo projeto ou se apenas ouvi uma música ou tive um sentimento que precisa ser colocado no papel. Tem dias que basta uma imagem qualquer para eu desatinar a escrever um breve texto sobre. Costumo manter uma boa frequência de textos novos, por conta das minhas redes sociais onde publico de forma independente. Já nos desenhos, é muito uma coisa de saber o que desenhar. Se não me sinto motivada naquele dia, o desenho não sairá, pois sei que farei de má vontade e no fim, acabarei me estressando com os resultados. Nos dias em que preciso trabalhar em encomendas de arte, tento organizar para dar alguns passos de manhã e outros a tarde e/ou de noite. Ainda, no caso de uma sobra de tempo e energia, passo a noite colocando filmes e séries em dia.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Infelizmente, sou uma coruja: trabalho melhor de noite e a tarde do que de manhã. Isso vale praticamente para tudo, seja a leitura, seja a escrita, seja o desenho. Eu apenas busco trabalhar mais de manhã, para que tenha mais tempo livre ao final do dia, assim poderei descansar e respeitar os meus próprios limites. Além disso, os hábitos noturnos podem ser um problema quando estou fazendo uma encomenda ou até mesmo revisando um livro, pois qualquer tiragem de dúvida que precisa ser feita acaba acontecendo as duas da madrugada, quando o cliente costuma já estar dormindo. Nesses acasos, só resta dar de ombros e esperar pelo dia seguinte. Tem semanas em que acaba não sobrando tempo na parte da manhã para trabalhar e só me resta a noite para focar nos escritos, o que provoca um baita cansaço depois, com direito a dores nas costas e nas pernas.
Eu preparo tudo antes de começar a escrever. Vejo uma posição confortável para sentar – costumo escrever deitada na cama do que sentada numa mesa, já que cadeiras nem sempre são confortáveis –, deixo uma garrafa de água a postos do meu lado para não esquecer de me hidratar, se for perto da hora do lanche, deixo um pouco de comida perto também – eu tenho a tendência super focar quando trabalho, o que me faz desligar do mundo e das minhas necessidades básicas como a alimentação -; e por último, deixo um filme ou música rodando no ambiente para evitar o silêncio total e num nível que não me distraia por completo durante o processo criativo. Ou seja, filme acaba sendo geralmente um repetido, pois assim já saberei a história e não vou acabar fugindo do texto para saber o que acontece em seguida. Outra coisa que ocorre no trabalho é que eu não costumo largar do meu celular quando escrevo, só demoro a responder as pessoas às vezes para não me distrair muito, mas por conta do meu TDAH não consigo ficar parada por muito tempo numa coisa só e tenho um pouco de dificuldade para focar. Volta e meia me pego vendo vídeos no facebook antes de terminar um parágrafo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Costumo escrever um pouco todos os dias e também ocorre de eu escrever em períodos concentrados. Vai depender muito da minha rotina, do surgimento de compromissos inesperados e trabalhos não pessoais. Para me organizar e ter um bom rendimento na escrita, crio metas pessoais que variam de um dia para outro, com base de onde o texto ou livro está em seu desenvolvimento. Quando estava escrevendo minha primeira novela – que em breve vai ser lançada – eu marcava como objetivo chegar até o capitulo tal ou escrever não sei quantas páginas. Não gosto muito do método de contação de palavras, pois ele acaba me pressionando mais, dando mais lenha para fogueira que é a minha ansiedade. “Você não fez o suficiente hoje”, mesmo tendo escrito mais de mil palavras naquele dia. Foi a minha principal dificuldade quando tentei participar do NaNoWrimo de 2020, o que me fez largar o desafio bem antes de acabar de fato.
Tem momentos em que acabo dobrando as metas e esse sãos os melhores dias. É quando sei que o texto fluiu com mais naturalidade e quando sei que estou mais disposta para a tarefa. Nesses casos, o problema é conseguir parar de escrever. Não consigo deixar ideias em aberto ou cenas sem o seu desfecho apropriado, sinto a necessidade de chegar até o fim, mesmo que leve mais horas do que sou capaz de suportar. Porém, no fim, acabo sendo vencida pelo cansaço e pela dificuldade de raciocinar como criar a ponte entre a cena A e cena B. O que me leva a um efeito colateral chamado insônia, no qual meu cérebro continua meio ativo tentando buscar respostas para a construção da narrativa e para a motivação dos personagens.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu gosto de dizer que meu processo de escrita é meio sem rumo certo. Está mudando de direção com frequência e muitas vezes acabo em um lugar muito diferente do que eu havia pensado no início. Pode não parecer, mas é um tipo de organização para mim. Tudo funciona por meio de instinto que me guia por entre meus projetos e histórias para eu chegar no melhor resultado possível. Por exemplo, posso estar no meio da criação de um livro novo e acabar mudando de ideia por sentir que ele precisa ser engavetado, pois ainda não é a sua hora de brilhar no mundo. Então dou palco para um outro livro no seu lugar até que eu sinta que ele está pronto para voltar a ser moldado. Acho que de alguma forma, eu apenas sei que é preciso amadurecer mais as minhas ideias para continuar contando aquela história.
Agora, falando sobre anotações, tento esboçar a história ao máximo quase que num brain storm. Vou apenas elencando informações, ideias e características, o que me leva a fazer várias flechas que apontam para todos os lados possíveis, subindo pelas lombadas das páginas. Assim que ponho tudo que planejei até aquele momento em ordem, começo a escrever de fato, usando aquelas anotações como minha bússola e mapa. Não costuma ser muito difícil esse começo, é mais para o meio que as coisas costumam complicar e aí alguns detalhes precisam ser revistos antes de continuar. Já a pesquisa pode acontecer antes e também durante, pois nunca se sabe quando as dúvidas vão surgir. Atualmente estou trabalhando em um projeto com temática sci-fi, o que me rendeu muita busca e leitura para saber como construir o universo com a maior precisão possível, ainda assim, surgem alguns detalhes que me fazem voltar para a pesquisa quando já escrevi boa parte da história.
Outro fator que me leva as abas do google, é a busca por sinônimos. É comum enquanto se escreve, aparecer algumas repetições, só que elas precisam ser podadas com cuidado para não estragar a harmonia do texto. Existe inclusive um site que se chama “sinônimo” no qual eu recorro sempre que preciso, nunca me deixou na mão. Faço uso dessas artimanhas também quando preciso de um título para um conto mais curto, algo que resuma bem a narrativa para evitar o uso de palavras muito genéricas e com uma sonoridade pouco agradável.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
As metas na verdade são as que me ajudam nessa questão de procrastinar. Um outro fato sobre eu ter TDAH é a dificuldade de terminar as coisas, surgindo assim uma tendência de deixar projetos em aberto. É muito fácil apenas ir deixando as coisas para fazer no dia seguinte e esse dia seguinte demorar mais do que devia para chegar. Com as metas eu acabo entrando numa espécie de competição e comprometimento comigo mesma, o que me força a não sair da rotina de escrita. É quase como se fosse um tipo de jogo, sabe? Eu acho divertido poder alcançar os objetivos que estipulei e gosto da sensação de realização que vem no final, como se eu fosse o Mário pulando por entre os canos para chegar até o castelo da princesa. Outra técnica que me ajuda, não só com a organização, mas também a driblar a procrastinação, é a própria criação da rotina.
Com relação aos episódios de trava na escrita ou, melhor dizendo, bloqueio criativo, o projeto acaba, geralmente, engavetado, como expliquei numa outra pergunta. Porém, há momentos em que, quando eu acho que não sei as respostas, elas aparecem. Ter uma playlist pronta ou apenas ouvir algumas músicas que combinem com o tema do texto/história me ajuda a visualizar o projeto de uma maneira mais ampla, a partir daí me permito encenar seguindo o fluxo da melodia e letra tocados no fundo. Fico completamente imersa na narrativa, vivendo a vida dos meus próprios personagens que, para mim, são muito mais do que meras ferramentas: são pessoais reais em seu próprio plano, tendo sentimentos e decisões próprias. Nesse processo de imersão, são eles que me guiam para chegar nas respostas que estou procurando e me mostrar qual será a próxima fase da história. Há também a opção de reler tudo que já escrevi até certo ponto, tipo um rebobinar. Muitas coisas podem nos escapar quando estamos escrevendo e dar alguns passos para trás uma hora ou outra pode ser de grande ajuda a encontrar os pedaços que faltam para continuar.
Sobre o medo de não corresponder e sobre a ansiedade, eu apenas conto com o apoio de meus amigos e do meu namorado. Nem sempre é fácil desligar o botão de autossabotagem sozinha quando a insegurança bate a minha porta com toda a força e intensidade. Conversar com eles sobre o assunto e ouvir suas palavras de consolo e sinceridade me ajudam a passar por esse processo. Depois do desabafo, consigo colocar os pensamentos em uma ordem menos destrutiva. O importante também é a gente lembrar ou sermos lembrados de que a ansiedade, a insegurança são as rainhas das mentiras, apenas tentando te desviar do seu caminho e você precisa tapar os ouvidos sempre que der.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu reviso umas cinco vezes ou mais, além das revisadas que eu dou enquanto escrevo mesmo, quando vejo uma palavra errada ou uma frase mal colocada. Depois quando finalizo o escrito de fato, eu o imprimo todo e começo a ler e anotar por cima no papel. Eu não gosto muito de ler pela tela do computador, acho bastante incomodo, então a versão impressa acaba sendo uma opção mais confortável para os meus olhos e para a revisão. Faço essa leitura e corrigida a mão umas duas ou três vezes antes de passar para versão digital de fato e já nesse processo de passar a limpo eu dou mais uma revisada. Procuro também, quando possível, ler os textos em voz alta como ensinou o meu professor da faculdade, assim posso ter certeza que as frases estão funcionando de maneira coerente e que os diálogos não parecem forçados.
Quando termino essa fase, leio o texto na integra mais uma vez, dessa vez no computador mesmo, para me certificar de que não há mais uma coisa aqui ou ali que tenha escapado dos meus olhos. Tento sempre não ficar muito presa nesse ciclo de revisão, pois sei que mesmo que eu leia cem vezes ainda vai ter coisas que podem ser melhoradas e que eu não sou capaz de enxergar, sem falar que, ao ficar presa demais no texto, começo a duvidar de toda a minha capacidade como escritora. É aí que transfiro o texto para amigos de confiança – em principal, os meus colegas de profissão – para receber as opiniões críticas deles. Pode até chegar nas mãos da minha mãe algumas vezes, já que a mesma é professora de português.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Os rascunhos na sua maioria vêm a mão. Eu sou a dona dos caderninhos para anotar ideias e esboços, quando um fica lotado já corro para comprar o próximo. Não sei porque essa escolha, apenas acho muito mais confortável escrever no papel do que no computador, além disso, eu tenho a liberdade de fazer o famoso rabisco e as flechas que surgem do nada e vão parar no pé da página. Mas eu nunca escrevo – pelo menos não mais – o livro inteiro apenas a mão, faço mais algumas cenas e ideias para cenas. Depois vou montando a história como uma colcha de retalhos no arquivo do computador. Uma vez que outra volto para o caderno, principalmente quando não posso escrever na versão digital na hora, e crio mais um pouco.
Só que na falta de um caderno, eu me utilizo das notas do meu celular para anotar ideias e textos. Tenho inclusive um arquivo para guardar nomes e seus significados para usar em personagens futuros. Às vezes quando tenho sonhos bons demais que precisam virar um livro, corro para o celular para anotar antes que a memória da experiência noturna desapareça da minha mente. Todos os textos que eu posto nas minhas redes sociais são apenas escritos nas notas, por uma questão de praticidade de ter já na mão para quando for publicar de fato.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As ideias surgem de todos os jeitos possíveis e nos momentos mais inusitados do meu dia. Seja no chuveiro, seja na hora de dormir, seja lavando louça. Nunca sei quando vão acontecer, só me preparo para anotá-las o mais rápido que conseguir. Acho que isso se deve ao fato de eu viver no mundo da lua, sempre imaginando algo aqui e ali, ou talvez seja apenas uma coisa comum entre nós escritores. Quem sabe até as duas opções? Já tive a ideia para a aparência de um personagem quando estava parada na frente da universidade, esperando meu pai vir me buscar, e bati os olhos num homem com um visual um tanto fora do comum. As ideias também vêm de tudo que eu consumo, converso e sinto. Das minhas vivências, das vivências de pessoas próximas.
Não sei se faço muito para me manter criativo, além do básico: ler, assistir, ouvir. Consumir arte com frequência mantém a minha mente ativa e renovada. Afinal, o estudo constante é algo que faz parte de um escritor, há sempre algo novo para se aprender e mudar dentro da nossa escrita. Como sou da área de infantojuvenil, tento me manter por dentro dos livros e filmes que vão saindo para esse público com o passar dos anos, os temas que vão sendo abordados cada vez mais e os temas que vão sendo deixado de lado ou sendo mal explorados. Já a música é algo que me inspira bastante, pois eu acredito que cada letra contra uma história em forma de poesia. Eu tento visualizar essa história e tento criar algo a partir daí, dar nomes e estender os caminhos para onde a narrativa pode seguir. O mesmo acontece com as imagens que salvo e fotografo por aí.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Não sei dizer bem o que exatamente, só que eu com certeza sou bem mais madura com a minha escrita hoje em dia do que era quando tinha doze anos por exemplo. O curso de Escrita Criativa da PUCRS teve uma grande participação nessa minha evolução. Com os meus professores aprendi muito sobre narrativa, personagens e métodos que eu nunca tinha ouvido falar antes. Antes, meus textos eram um pouco rasos e eu não me esforçava muito para trabalhar neles como devia. Apenas me contentava com a opinião dos outros de que eu tinha talento para a coisa. Tanto que o primeiro livro que escrevi na vida tem vários furos dentro da história e tudo acontece rápido demais, faltando o desenvolvimento no processo. Também sou uma pessoa mais madura com relação aos temas que pretendo abordar e estudar para os meus livros. Quando era adolescente eu pensava apenas em romances bem melosos, trágicas histórias de amor e paixonites jovens. O que levava a uso forte de clichê – e não de um jeito bom – algo que hoje em dia eu evito ao máximo, a não ser que seja para reinventar o clichê de alguma forma.
Se eu pudesse voltar as minhas primeiras criações, diria para eu mais nova que estamos no caminho certo. Que ainda temos muito o que aprender, muito o que mudar e muito o que entender. Diria que nosso sonho de infância não é bobo, ele é lindo e nos vamos faze-lo acontecer. Diria para não desistir, para não duvidar do seu potencial e para seguir escrevendo. Pois o que eu mais precisava naquela época era força para acreditar em mim mesma e a certeza de que ser escritora era possível. Talvez eu até entregasse alguns livrinhos teóricos aqui ou ali, só para ajudar um pouco mais na nossa escrita e a encorajaria a escrever bem mais do que realmente escrevia na época. Porque, verdade seja dita, eu só fui voltar a produzir com mais afinco quando entrei na faculdade e redescobri meu caminho dentro da profissão. Por fim, lembraria ela de fazer backup dos textos, para depois a gente não se arrepender de tê-los perdido – tantos os feitos no computador quanto os feitos a mão.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Estou empolgada para começar a minha segunda novela, mas só vou poder mexer nela quando terminar o projeto de conto que estou trabalhando no momento – vai ser a minha segunda publicação na Amazon depois da minha estreia com “Praia das Conchas”. A novela vai ser uma história sobre amizades que surgem nos momentos certos e sobre se tornar a melhor versão de si mesmo. A ideia surgiu quando estava vendo um filme juvenil muito mal executado que me deixou com tanto ranço que eu pensei “eu posso escrever algo mil vezes melhor do que isso”. Era apenas uma brincadeira até eu escrever sinopse nas notas do celular e dar um nome para o novo projeto e para as personagens que fariam parte dele. Não posso contar mais do que isso, pois prefiro manter um pouco de suspense no ar. Além dele, eu tenho várias outras histórias esperando sua hora para serem contadas e talvez alguma até tome o lugar dessa novela na ordem de trabalho. Comigo como criadora, nunca se sabe.
Quanto a livros que eu gostaria de ler e ainda não existe, tem vários – nem todos posso assumir a responsabilidade de criar –, mas atualmente o que eu mais desejo são livros com mais personagens com transtornos de aprendizagem e semelhantes, como por exemplo, o meu próprio TDAH; e personagens portadores de deficiência (não só no papel de melhor amigo). Uma literatura com mais diversidade ajuda a criar um mundo com maiores possibilidades para todos. Sempre busco tratar desses assuntos nos meus livros o máximo que posso e espero que mais escritores procurem fazer o mesmo.