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Como escreve Raquel Naveira

21 de maio de 2018 by José Nunes

Raquel Naveira é escritora, professora universitária, crítica literária, mestre em Comunicação e Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Como começa seu dia? Você tem uma rotina matinal?

Ao acordar, surpreendo-me sempre com o fato de estar viva. Procuro tomar pílulas de contentamento, de gratidão, de súplicas por força e coragem. Haverá algo melhor que o perfume do café, uma palavra bíblica, o reencontro com nossa finitude e esperança? A manhã é momento íntimo de colocar em ordem a casa e as ideias.

Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?

A hora em que mais me concentro e escrevo é no final da tarde, no crepúsculo, adentrando pela noite. Carrego um sol rubro dentro de mim. Constelações e cacos de estrelas também. Algumas delas piscam as pontas e se confundem com vagalumes. Sou crepuscular, mulher da fronteira. Amo o pôr do sol como o Pequeno Príncipe. Hora da saudade, do desejo de sonhar, da vontade de viver e de morrer, hora de escrever. O pôr do sol me faz pensar que tudo ficará melhor quando a noite baixar de vez, toda preta. E que de dentro de mim, brotarão textos e poemas.

Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?

Com papel e tinta posso ordenar o caos, refletir, criar arte. Não me convidem para serviços insignificantes como ganhar dinheiro, nem para tarefas odiosas como ir a bancos, supermercados e médicos (quando muito tomo umas vitaminas). Mas ir a uma papelaria é um momento alegre de projetar mentalmente um novo poema. Meus livros e pensamentos intensos são minha riqueza. O tempo urge. Um dia sem escrever algo no papel seria falho e me encheria de culpa.

Como é seu processo de escrita? Uma vez que compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?

Sou uma pesquisadora intuitiva, que se surpreende sempre com seus achados, como quem descobre pedras preciosas. Amo os pilares: os dicionários de vários tipos, os manuais todos, os compêndios. E depois os livros específicos dos temas. As analogias, comparações e aproximações possíveis. Dei muitos anos aulas de metodologia científica e orientei dissertações de pós-graduação e mestrado. Começar o trabalho, seja científico ou um romance, pela estrutura, pelo esqueleto, é o melhor meio. Imaginar as partes, os capítulos, as cenas, o desenvolvimento, a marcha, os personagens, as principais situações e, só depois, ir recheando tudo. Às vezes, o processo acontece como esperávamos. Outras vezes somos levados a caminhos inesperados, a soluções existenciais e literárias que nos emocionam. Que nos puxam como fantasmas.

Como você lida com as travas da escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?

A primeira frase, a chave de entrada de um texto, o efeito da expressão lançada no começo da página em branco são mistérios. O talento, o esforço, a sensibilidade é que ditam essa escolha mágica. Recomendo, novamente, a criação da estrutura mental do trabalho. E um gosto dúbio pela razão e pela loucura das palavras.

Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?

Sou um misto de artista e professora. Poesia e magistério se alimentam mutuamente em minha trajetória profissional e pessoal. Reviso meus textos quanto à gramática, cuido da grafia, da entonação, da possibilidade oral de cada verso ou parágrafo. Imprimo e releio. Sou minha própria crítica literária. Não mostro meu trabalho a ninguém antes de publicar. Aposto, como se jogasse todas as fichas naquele tampo verde de feltro das mesas dos cassinos e as recolhesse com a pá gelada da sorte.

Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?

Gosto de anotar ideias, estruturas, palavras soltas em cadernos grandes. Depois vem o momento de “passar a limpo”. Digito rapidamente e gosto desse instrumento macio como gato, que é o computador.

De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?

Sou platônica. O mito da caverna esclarece sobre a projeção das sombras deste mundo. Tudo está no Reino dos Céus, no Topos Neotós, no Inconsciente Coletivo e de lá retiramos as matrizes, os desenhos, as letras do alfabeto, os símbolos, as representações, os edifícios, os objetos, as realidades. O artista tem antenas para captar essa massa, essa nuvem, essa energia. Vigio, tenho insônia e também sonhos e visões. Ler, orar, contemplar, estudar, dedicar-se. Observar as pessoas, a natureza, os fragmentos e as artes são formas de se manter conectado. Doses de silêncio e de solidão são fundamentais.

O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos?

Maturidade, experiência, capacidade de crítica. O envelhecimento às vezes traz um certo enfado, um desencanto, pois escrever é uma tarefa sem fim, um pouco cansativa. Mas sempre vem novamente a paixão ancestral de escriba. A alegria do desejo de ser e de fazer poesia.

Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?

Tudo que posso fazer é tão pouco diante da História e do Tempo. Nossos dias estão contados. Gostaria de devorar o Livro da Sabedoria. Que suas páginas enchessem o meu ventre e que fossem como mel em minha boca.

* Entrevista publicada originalmente em 21 de maio de 2018, no comoeuescrevo.com (@comoeuescrevo).

Arquivado em: Entrevistas

Sobre o autor

José Nunes (@comoeuescrevo) é doutor em direito pela Universidade de Brasília.

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