Raquel Laranjeira Pais é escritora e psicanalista, mantém o blog Folhetim da Raquel.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tenho sim. Comecei a escrever que não tem nada a ver com a escrita, no meio da frase percebi que sim, que tem. Talvez tudo tenha que ver com a escrita. Acordo com o meu filho de quatro anos a perguntar que dia da semana é. As duas primeiras horas do dia são dele, o café da manhã, o não-não-podes-ir-fantasiado-de-batman, e o deixar na escola. Várias coisas se cruzam conosco neste percurso, músicas, sonhos (meus e dele), mensagens de WhatsApp, reflexões sobre porquê hoje é sexta ou quinta ou terça, porque as andorinhas voam em “equipe”… No caminho o trânsito lento deixa-nos observar as pessoas que caminham, que conduzem, que tropeçam. Muitos textos começam nos semáforos. Se essa manhã não tenho que trabalhar na clínica ou ler e trabalhar algum texto de psicanálise, faço outro café com leite e passo à segunda pergunta.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Ao longo do dia vou sendo invadida pelo cansaço, pelos discursos, pelas palavras que não são minhas. Nas notícias, nas preocupações, nos pedidos. Invadida pelas logísticas, o metrô para cá e para lá, o horário do paciente que muda, troca, vem, confirma, reagenda. E as preocupações de casa, que se repetem num circo infernal. A Maria Valéria Rezende, numa entrevista ao Bondelê disse que ninguém ia bater na porta do Machado de Assis, acho que era o Machado, para avisar que acabou a margarina… para as mulheres, as coisas ainda são assim. Ainda. Não é para sempre.
De manhã eu consigo “fechar a porta” ao mundo, ou deixá-la apenas entreaberta. Tomo o tal do café com leite, e penso sobre o que me apetece escrever. Se é algo em que já venho trabalhando, releio tudo o que escrevi para trás. Essa é a grande dificuldade da escrita continuada, o recapturar desse ritmo que cada texto canta. Mais que o tema ou as ideias de desenvolvimento, o difícil é sustentar aquela canção. Para mim, continuar um texto é muito mais sofrido que o começar. Se não consigo recuperar a voz, leio de novo. Corrijo, releio, mudo detalhes que guardo com nomes de versões conto1.1, 1.2…
Nem sempre a volto a encontrar. Perder um texto significa perder uma personagem, alguém que estava ali a falar comigo, a contar-me tudo sobre si, e um dia some, como quem viaja e não tem data de retorno. É triste.
Se o texto é novo, muitas vezes a escrita surge como se estivesse estado ali sempre, pronta. Muito do que escrevo são sensações, ideias, personagens que se gestam durante meses, anos, estão ali, aparecendo e desaparecendo, respondendo a perguntas até ganharem um corpo. Quando isso acontece, tento seguir a escrita até ao fim, até a perda de sentido, ou o encontro total dele. Funciona se a escrita me toma por inteiro. Se me deixa desgostosa, a chorar, vazia. Ou abre todas as janelas, sacode as toalhas, estende os lençóis ao vento e empurra a vida noutra direção.
E há muitos dias, em que nada acontece, e nesses dias tento ler, e ler, e ler.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Ter, tenho. Nunca cumpro, ou quase nunca. Criei o blog Folhetim da Raquel com a ideia de me obrigar a escrever diariamente, como se fazia antigamente para os jornais, a mesma história em fascículos. A minha ideia era combater a perda do ritmo do texto, como já referi, porque acredito que se a minha escrita encontrar o mecanismo para “agarrar o fio à meada” poderá avançar melhor para o romance.
Há muitos autores que escrevem trinta minutos por dia, como a Luana Chnaiderman. Outros que o fazem quatro horas por dia, todos os dias, como o Gonçalo M. Tavares.
Eu sou lenta, preciso de saber que tenho tempo, que posso me perder numa ideia antes de ter que voltar ao mundo real. Tento por isso reservar períodos longos, quatro a seis horas. Quando tenho menos tempo, corrijo, releio, leio outras coisas, pesquiso. Escrito assim parece que tenho capturado o meu próprio ritmo, não deixa de ser uma ficção. Acontece de isto ser assim, muitas vezes. Acontece também, de ser o contrário. De me sentar a tomar um café e escrever um conto, de estar semanas a ler sem escrever uma palavra, de me sentar depois do meu filho adormecer para corrigir um texto e terminar de madrugada com a reescrita de algo. O que tento não fazer, e aconselho muito a outros escritores, é não sentir que “tenho que”, porque sou mais obsessiva. Se você for menos obsessivo, faça o contrário. Talvez o mais importante é perseguir a escrita com fome, se não tem tempo para escrever, leia. Se não sabe quando escrever, escreva por tudo e por nada.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Aqui vou distinguir um pouco a escrita literária da escrita teórica. Nos meus dois trabalhos teóricos, um sobre a melancolia, e o outro sobre a relação entre perversão e literatura, eu pesquisei demais, demais, demais. De tanto pesquisar, acabava por me esquecer das coisas e ter ainda mais dificuldade para escrever. Nesse caso, aconselho muito a todos os escritores de teses, a fazerem um índice, a irem por partes, a comentarem o que leram, todos os dias, passo a passo. E a serem humildes nos seus propósitos. Recomendo muito o livro do Umberto Eco, Como se faz uma tese.
Na escrita literária é diferente. Pesquiso, pesquiso, até onde me apetecer, até onde a curiosidade com algo e alguém me levar. Até encontrar o olhar de um personagem. Olhar mesmo. Para onde ele dirige a sua atenção? Gosta de café ou de chá? De elevador ou de escadas? Não preciso de saber tudo sobre uma personagem, não se trata disso, mas do momento em que ganha um corpo. É na escrita que esse corpo ganha movimento. E isso pode demorar meses. Anos.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Lido mal. E como muito açúcar quando isso acontece. Sofro até esvaziar essa expectativa e aí trabalho um pouco. Depois ela volta e fico a sofrer e a chorar e a comer chocolate, e a dizer que nunca mais vou escrever nem um bilhete de volto já. Aí ela levanta um pouquinho, como um nevoeiro. E recomeça tudo. A Noemi Jaffe, minha amiga e minha “Yoda”, comentou um dia algo assim: Nós somos todos meio loucos, meio peculiares, meio atentos a detalhes que mais ninguém vê, todo escritor é parecido, é o que fazemos que é diferente. O que vamos fazendo, note-se o fazendo, com nossas angústias, essa persistência. E se puder, não coma tanto chocolate, no verão só escreverá textos sobre gordinhas…
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Várias vezes, leio, leio, leio. Mostro sempre. Acho que os meus amigos já apagam meus e-mails antes de abrir. Tenho sobretudo um amigo que é o meu termômetro. Apesar de não perseguir uma publicação, ele é dos maiores escritores que conheço, e um leitor exigente.
Além disso, faço parte de um grupo de trabalho, a Escrevedeira, um centro literário em São Paulo que tive a oportunidade de frequentar quando vivia aí, e que continuo por Facetime. Aconselho muito fazer esse tipo de trabalho. O grupo vai trabalhando por temas, escrevendo contos com consignas que a Noemi nos desafia, e somos acompanhados nessa escrita pelo Flávio Cafiero. No fim desse trabalho, lemos e comentamos os textos uns dos outros. Há vários anos que fazemos isso. Eu diria que mesmo quem não quer escrever, mas quer ler bem, deveria fazer isso. Com um bom professor, com um bom grupo. Não acho que seja apenas o ler muito que nos faz bons escritores, às vezes até acho que o que nos faz bons leitores, é escrever muito.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sempre à mão, depois passo para o computador. Essa é a primeira correção que lhes dou. Eu penso com a mão e a caneta. Com a caneta e o papel.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Não, de forma proposital não. A criatividade não é um problema para mim, nem colocar o que penso em papel. Difícil é fazer com que isso seja perceptível para o outro. Difícil é abrir a porta ao outro.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Humildade. Toda a humildade. Não de dizer que você escreve mais ao menos, não. Se você escreve bem, diga que escreve bem. Se você é um bom aluno, se anuncie bom aluno. Se você acredita no seu texto, defenda-o, lute por ele. A humildade a que me refiro é a do sonho, onde você sonha ir. Traga as metas para mais perto de si.
Não precisamos ser o Coetzee para poder escrever.
E faça oficinas de escrita, mostre aos outros, perceba se o que você sente sobre o seu trabalho é o mesmo que os outros sentem. Ponha-se à prova aos pouquinhos.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Hum… não sei. Se quero começar algo, de certeza que já escrevi uma outra coisa sobre isso. Espero ter vida para os concretizar, e que eles me façam sentido, continuem a fazer sentido. Não tenho projetos mirabolantes, são todos possíveis, com tempo e trabalho e um perlim-pim-pim de sorte.
Estou trabalhando agora com a Luana Chnaiderman de Almeida e a editora Perspectiva, um livro de contos meu, que será parte da coleção Arranha-Céus que arrancou agora com o seu primeiro titulo: Os Animais domésticos e outras receitas. É uma coleção nova, de prosa contemporânea.
Livros… já há tantos livros perfeitos. Há livros que nem deveríamos ler porque nos colocam a questão: para quê escrever depois disto? Sinto muito isso com o Cortázar. Não sei se é o meu escritor favorito, mas sem dúvida ele me faz não escrever. Como dizer algo, depois dele dizer as coisas assim?
E, no entanto, há tanto por dizer, por pensar, por fazer, que é preciso seguir. E ser Cortazianos à nossa maneira.