Raphael Fernandes é escritor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não sou uma pessoa do dia. Acordo cedo pra ir trabalhar, trocar de roupa e cuidar dos animais e das plantas, mas faço no automático. Minha rotina é praticamente espartana. A única coisa que preparo pela manhã são os posts sobre tarot do meu instagram @fuzztarot.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sem dúvida, eu escrevo muito melhor após às 20h, mas também gosto de escrever depois do almoço. Costumo escrever ouvindo algum tipo de música experimental e de preferência instrumental. Fora isso, utilizo papel e computador intercalados para que as limitações de um sejam superadas pelo outro.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Meu trabalho careta é escrever. Então, querendo ou não, estou sempre escrevendo, mas não necessariamente a escrita ficcional. Não preciso de metas diárias, minha produção é muito constante e consistente. Porém, quando tenho um pouco mais de tempo livre e não estou vivendo as exaustivas fases de edição, acabo produzindo um pouco mais que o normal. Afinal, tenho dois trabalhos e escrevo nas horas vagas.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Apesar de sempre buscar novos processos criativos, a escrita segue um padrão semelhante: faço anotações de ideias em um arquivo no Google Drive ou em fichas de papel (obrigado, Raoni Marqs); depois reúno essas ideias em um resumo de tudo o que vai acontecer; fico lapidando esse resumo e pensando em outras possibilidades em fichas e arquivos; até que encontro um resumo que me agrada; depois disso, passo um tempo fazendo o processo de decupagem, que exige novas pesquisas; costumo pesquisar antes, durante e depois, dependendo mesmo das necessidades da própria história. Como também edito minhas histórias, costumo fazer alterações no conteúdo até a última revisão antes da gráfica. Sou extremamente exigente e crítico comigo mesmo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Meu problema nunca foi a folha em branco, minhas ideias não param e tenho muitas anotações para possíveis histórias as serem produzidas. No entanto, já pensei em parar de escrever por duas coisas: ser deixado na mão por um desenhista e quando fiz uma campanha no Catarse e tive a pior resposta de público possível.
A minha forma de escrita está muito ligada com a raiva que sinto de algumas coisas, com sentimentos reais por pessoas reais e, principalmente, pela minha curiosidade com o que há de oculto no mundo (magia, subversão, sociedades secretas, níveis de consciência, ciência proibida, sobrenatural, etc). Sempre fui muito movido pela necessidade do enfrentamento de qualquer forma de imposição de autoridade e isso tá sempre me fazendo escrever mais e mais. A melhor forma de vencer os meus próprios obstáculos foi entendendo quem eu sou, qual é o meu papel no mundo e o que posso fazer para deixar a minha marca. Parece abrangente, mas foram anos estudando, refletindo, vivenciado e meditando para entender tudo isso e encontrar meu caminho. A minha vontade só poderia estar em um lugar, em mim mesmo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Na minha visão da escrita, eu só terei o texto final depois de milhões de revisões. A primeira escrita é um mero rascunho e o processo de escrita todo está em refazer cada detalhe, questionar cada decisão e procurar frestas que podem ser corrigidas. Trabalho com diversos leitores beta das mais diversas idades, formações, gêneros, sexualidades, origens, etc. A ideia é que o texto seja o mais redondo possível. Costumo ver o que as pessoas apontam como coisas que de alguma forma posso melhorar na obra, mesmo que discorde. Muitas vezes, a pessoa aponto algo que eu poderia enfatizar ainda mais pra não gerar dúvida. Acredito que o processo de escrita e criação é falsamente solitário, pois a gente acaba germinando as ideias e os conceitos, mas são as pancadas das pessoas que fazem o pão crescer. Sou um editor que não dá moleza e pega pesado com o conteúdo dos colegas, pois essa é a forma que eu gostaria que todos meus textos fossem comentados. Sinto falta de um leitor como eu pros meus próprios textos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Me dou muito bem com a tecnologia, mas acredito que escrever à mão destrava um tipo específico de criação. Já no computador, consigo alterar ordem, mexer em estrutura e tal com maior facilidade. Fico intercalando as duas formas de produção para encontrar o melhor resultado possível. Para mim, elas são complementares. Porém, para pesquisar e ler prefiro livros impressos. Utilizo muitos ebooks, mas é no impresso que consigo a imersão total.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Minhas ideias vêm do mundo. Eu estou sempre me enfiando em experiências de vida, como viagens aleatórias a lugares que não conheço, conversas com gente que nunca vi sobre assuntos importantíssimos, cursos totalmente fora da minha zona de conforto, relações de amizade e amorosas complexas… Existem algumas limitações morais que são invioláveis, mas gosto viver e experimentar ao máximo. Além disso, sou leitor ávido de livros e quadrinhos, costumo ler uns 5 livros ao mesmo tempo e terminar 2 por semana. Também busco pesquisar sobre assuntos variados na ciência, música, literatura, política, filosofia e outros campos do conhecimento. Nunca me contento com a superfície de um objeto de estudo, sempre tentando sacar suas origens, ramificações e desdobramentos. Não me acomodo em grandes verdades, apesar de dizê-las o tempo todo. Busco me desfazer delas o máximo que posso, quebrando e remontando meus paradigmas.
Também tive um contato muito interessante com as práticas ocultistas e os experimentos com níveis de consciência, sonho coletivo, sonho consciente, hipnose, meditação e percepção das diversas camadas do que chamamos de realidade. Sou um questionador. Nunca aceito uma resposta como verdade total e meu ceticismo me fez vivenciar coisas que eu não consigo explicar, mas existem.
Na minha visão, a mente criativa é uma postura diante do mundo. Como um caminho onde cada indivíduo, ação, conhecimento e forma de pensar tem seu papel na construção de uma nova narrativa. Somos seres feitos de narrativa e estar imerso nelas é a melhor forma de nunca perder a veia criativa.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Costumava ser um escritor mais impulsivo. Onde tudo tinha que ser feito de uma vez só com o máximo de precisão possível, mas aos poucos fui aprendendo a deixar o trabalho mais complicado pra mim. Surgindo a necessidade de reescrever e com isso a qualidade do meu trabalho teve uma pequena variação, mas agora já encontrei meu rumo. Quem não se desafia está fadado a estagnação. Eu não diria nada. Aquela pessoa criou a pessoa que sou hoje e gosto de tudo como é. Talvez, eu dissesse os números da megasena daquela semana ou para nunca parar de tocar guitarra.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Existem dezenas de projetos que estou babando para realizar, mas ainda não comecei. Entre eles, estão os dois últimos volumes de Apagão que pretendo terminar de escrever ano que vem. Também tenho muita vontade de escrever dois livros: um de ficção com algumas pirações existencialistas e outro de não ficção sobre algum assunto do meu interesse, como escrita, música, literatura ou subversão. Também quero muito fazer alguma obra usando o tarot como ponto central, já que ele está em todos meus textos de alguma forma.
Leio muito e de tudo, acaba que a sensação que eu tenho é de que existem mais livros do meu interesse do que sou capaz de ler em vida. No entanto, eu gostaria de ler alguma coisa sobre como transpor a nossa consciência para diferentes lugares do espaço tempo, usando apenas de rituais e práticas meditativas. Talvez, eu adorasse ler um livro sobre quem foram meus antepassados e entender alguns dos mistérios que minha família mantém até hoje. Por fim, eu leria também um livro que durante a leitura desconstruísse a minha capacidade de pensar através da linguagem. Me obrigando a interpretar o mundo sem esses recursos, nos forçando a encarar a realidade sem a muleta dos significados.