Ranieri Carli é professor da Universidade Federal Fluminense, autor de “Toda Estupidez” (Autografia, 2019).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
É inevitável adotar uma rotina matinal. Tenho um cotidiano bastante regular. Meu dia começa geralmente por volta das 8 da manhã. Via de regra eu sou o primeiro a levantar aqui em casa. Tenho umas duas horas só para mim. Nem sempre eu recorro à literatura nessas horas. Eu costumo desenhar neste período da manhã. Faço uns estudos de desenho, pratico os exercícios de gravura que eu tenho organizados para o dia. Eu me ocupo mais com o desenho do que com a literatura na parte da manhã. Quando meus filhos acordam, eu fico à disposição deles. É quando eu leio livros, mas de literatura infantil, na companhia do Henrique e da Cecília. Vou atrás dos meus livros nas últimas horas da noite, antes de me deitar. No período da tarde e da noite estou na universidade, trabalhando.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Tenho conseguido escrever melhor durante a noite, o que não é uma regra inabalável. Quando estou escrevendo um poema, fico ruminando os versos durante o dia, esteja onde estiver, a qualquer hora. Isso, para mim, já vale como a escrita. Fico contando as palavras do verso com os dedos, calculando se aquele verso tem a métrica que pretendo, com o ritmo que estou marcando, provando algumas ideias, etc. Quando tenho a possibilidade de me sentar ao computador, enfim, o poema é construído. Vou testando os versos que vim ruminando durante o dia e o poema se forma gradualmente. Mas é um trabalho bem árduo. Sou daqueles que não se dão por satisfeitos nem tão cedo. Faço e refaço sempre os poemas. Jogo fora muita coisa que eu escrevo. Ferreira Gullar disse uma vez que, depois de tudo que se escreveu ao longo da história, hoje em dia só se deve escrever o poema necessário. Realizar apenas o poema que seja necessário é difícil, além de ser uma empreitada ameaçadora, cheia de desafios. Não sei se estou à altura da tarefa. Sou o meu maior crítico, extremamente severo. Parece um clichê afirmar isso, mas é a pura verdade. Às vezes demoro meses ou mesmo anos para dar forma a um poema. Eu me coloco bons obstáculos, como a métrica, a rima, o ritmo afinado, o conteúdo, etc. Não sei escrever sem estes elementos. Já tentei, mas não consigo escrever de outro jeito por pura incompetência. O que parece ser uma posição minha diante das escolas literárias, é, na verdade, uma completa falta de habilidade para produzir versos de outro modo. Fracassei nas tentativas de escrever poesia em versos livres e brancos. Se o poema não for metrificado, fico inseguro com relação a seu resultado. Até agora tem sido assim.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não escrevo todos os dias. Já fiquei anos e mais anos sem escrever. Comecei a escrever poesia durante a adolescência, como grande parte dos poetas. E desisti da escrita quando entrei para a universidade, com 18 anos. Antes da poesia, eu escrevi e publiquei um bom número de ensaios e livros na área da teoria literária, da sociologia e da filosofia. Só fui voltar para a poesia depois dos 35 anos. Daí passei a levar a sério a condição de poeta, assumindo-a definitivamente e amadureci a possibilidade de publicar uma obra. Foi um longo período sem escrever absolutamente nada de poesia. Depois que eu recomecei a escrever, passei a fazer disso uma dimensão imprescindível de minha vida. Não me imagino sem a atividade poética. Mas nunca estabeleci nenhuma meta diária. Vou realizando os poemas aos poucos, sem pressa, tijolo por tijolo, sem crise de ansiedade. Como a vida universitária demanda de todos nós outros projetos, às vezes a poesia permanece submersa, encoberta por essas outras atividades. Quando há a oportunidade, volto a trabalhar os poemas.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo de escrita geralmente começa de forma bem definida: eu escolho um tema, estabeleço um início, um desenvolvimento e um fim para o poema, penso na forma mais adequada para o tema e assim adiante. O poema se transforma muito ao longo do processo. Se os decassílabos não dão conta, procuro as redondilhas ou outras métricas. Se nenhuma forma deu certo, eu desisto do poema. Como às vezes eu retiro alguns temas de notícias de jornais, eu pesquiso sobre o assunto. Por exemplo, um poema meu se chama “Congoleses deixam Brasil fugindo da crise e morrem no mar na Colômbia”, precisamente o título da reportagem que eu li e me inspirou a escrevê-lo. Investiguei sobre o objeto para realizar o poema. A leitura das quadras deixa claro a sequência de eventos que são narrados na notícia jornalística. Isso vale para poemas como “Mulher é morta acusada de magia negra” e outros.
Creio que há um desafio posto que é a escrita de poemas metrificados, ritmados e rimados sem perder a fluidez do texto poético. A meu ver, não cabe nenhuma acusação de passadismo ao se escrever sonetos ou qualquer forma fixa. O desafiador é escrever sonetos à maneira de um Bilac, sem abrir mão da fluidez da linguagem de um Cacaso, por exemplo. A ideia é metrificar o poema depois de ter lido, compreendido e adorado a poesia marginal. Encaixar um Cacaso no interior de um Bilac. Ambos devem se revirar no túmulo com a minha proposta, mas é o que eu penso. Na minha perspectiva, trata-se de um desafio posto.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu considero as travas da escrita como algo inerente à poesia. Aliás, não consigo imaginar a poética sem os obstáculos que existem nela. O que há de desafiador na poesia é justamente o que me seduz, o que me motiva, etc. Hoje em dia, quando eu penso num verso, ele já nasce um decassílabo, com o ritmo acentuado na quarta e na sétima sílabas. O verso já brota assim. É um verso pouco usado na literatura de língua portuguesa, mas que eu aprecio muito, pois soma ao decassílabo uma redondilha interna ao verso.
As rimas também me causam encanto e me desafiam a todo o instante. Acho que está nas rimas a maior possibilidade de surpresa que um poema pode provocar. Uma rima rica pode ser surpreendente, desconcertante, assombrosa. Escrevi um poema como “Carta a um imigrante sírio” calculando precisamente a capacidade que as rimas teriam em provocar um assombro em quem o lesse. Esse poema é uma pequena experimentação de rimas. Num outro poema, chamado “Burros de carga”, em que o eu lírico se apresenta como efetivamente um burro de carga, há uma quadra assim: “Se não marche por milagre,/ O homem grita e puxa a rédea,/ Bate em meu couro que fede a/ Álcool, babosa e vinagre.” Na quadra seguinte, explica-se que tais produtos agem contra o carrapato no couro do burro. Mas perceba que a quadra rimou “milagre” com “vinagre” e “rédea” com “fede a” procurando não perder a fluidez da narrativa, sem nenhuma imposição externa e arbitrária ao poema. Como se diz, tentei não forçar a barra para impor ao poema as rimas que eu queria. Isso me interessa bastante. Gosto de brincar com os desafios da rima.
Por si só, o processo a que me submeto para escrever está prenhe de travas, de obstáculos. Não sou ansioso para realizar os poemas porque tenho que dar tempo à obra para que ela amadureça. Sei que isso dura um certo período. Tenho maior ansiedade quando estou com um conjunto uniforme de poemas prontos que podem ser publicados. O processo até a publicação me suscita uma certa apreensão. Causa-me uma expectativa grande ver a poesia na folha de um livro físico, obtendo vida fora de mim, autônoma diante da minha vontade.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
A revisão é parte constante e regular da minha atividade. Jamais pensaria diferente. As revisões são eternas, múltiplas, infinitas. Creio que atualmente não exista nenhum poeta que não submeta seu material a uma revisão de sua própria lavra. Na minha modestíssima opinião, isso me parece impensável. Não precisamos ler João Cabral para saber que o verso tem que ser trabalhado, peneirado, sendo metrificado ou não. Sob minha ótica, a primeira forma que assume um poema está aquém da poesia. Nem chega a adquirir o estatuto de poesia. Poderá vir a ser poesia ou não. Tudo a depender das inúmeras revisões que farei até as vésperas da publicação. Faço tantas revisões que tenho o receio de perder a objetividade na leitura do poema e de já não saber mais distinguir o que deve ser alterado. Tenho que esquecer por um tempo o poema para que depois eu consiga me surpreender com ele novamente. Aí estarei apto para revisá-lo no que for preciso. Não costumo solicitar a outras pessoas que façam revisões em meu lugar, muito embora eu mostre aos poetas mais próximos algumas de minhas realizações. O poeta maranhense Salvio de Melo, meu amigo, leu “Toda Estupidez” antes de sua publicação. A sua avaliação foi importante para mim à época. A troca de experiências é salutar e tem sido frequente na geração contemporânea. Tenho lido e resenhado vários livros de colegas meus. Formam-se grandes coletivos de poetas que se leem mutuamente e pensam a literatura em conjunto. Isso me agrada em especial.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
A forma cabal de um poema se dá sempre no computador. Para mim, não há como ser diferente. Às vezes, quando tenho uma ideia para determinado poema, eu posso usar algum bloco de notas ou qualquer coisa parecida que me esteja à mão. No entanto, é sempre no computador que o processo se desenrola. Inclusive eu anoto até mesmo apenas o texto cursivo de uma ideia, sabendo que, posteriormente, no computador, eu darei forma poética ao material que havia rascunhado. Depois, ao término, eu imprimo o poema para revisá-lo no físico da folha. Rabisco o que está equivocado e volto para a tela do computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Eu gosto da literatura com consciência pública, que esteja vinculada às questões da vida nacional. Tenho a tendência de escrever propondo uma reflexão sobre os eventos que nos circundam, como as contradições e desigualdades sociais, a miséria, as guerras, etc. Não falo em arte engajada, mas falo em arte política, entendendo a política num sentido mais amplo, como um confronto com as questões que nos afligem cotidianamente enquanto gênero humano. Quer dizer que a arte com consciência pública não é panfletária, um poema não é um manifesto partidário. Não escrevo apenas sobre tais questões, mas elas são as mais presentes. Nada disso é novo. A literatura e a arte se constituem desse compromisso com a realidade social que nos envolve, desde sempre. Não trago absolutamente nenhuma novidade para a estética quando afirmo o seu vínculo com a história. Assim, a arte se apresenta como uma forma de conhecimento: podemos nos conhecer e nos reconhecer ao ler uma determinada poesia. É da nossa humanidade que ela trata. Penso que a criação deva estar atenta para tais vínculos.
Mesmo em poemas que se inspiraram em situações particulares vividas por mim, eu procuro dar um caráter universal e menos particular. É o caso do ciclo de poemas “O burocrata”, que eu escrevi quando assumi um determinado cargo de gestão na estrutura da universidade. Nunca redigi tantos ofícios na minha vida, nunca bati tantos carimbos. Daí o ciclo de três poemas que escrevi. Não falo exatamente sobre mim nos poemas, mas parto da minha experiência. “O burocrata” é uma tentativa de denúncia da esterilidade que esta função detém no rígido âmbito das corporações.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O processo de escrita de qualquer poeta muda ao longo do tempo. Essas mudanças estão todas registradas em suas publicações. Observe qualquer poeta, como Drummond ou Bandeira, para ficar nos grandes, e sua trajetória plena de transformações durante a composição de suas obras. É comum que, por isso, alguns deles reneguem seus primeiros livros tendo em vista o destino que tomou sua poética. O Mário de Andrade de “Há uma gota de sangue em cada poema” não é o mesmo de “Lira paulistana”. Mesmo escritores que criaram sua obra num curto intervalo de tempo, como Castro Alves ou o caso emblemático de Rimbaud, incorporaram modificações evidentes na sua poética. Acho que a poesia em mim adquiriu uma forma mais apropriada ao longo dos anos. Descobri uma forma que melhor se apresenta ao que eu pretendo dizer. Quando penso lá atrás, na adolescência, vejo que as transformações foram imensas, de uma enormidade sem fim. É o que acontece fatalmente com todos nós. Qual poeta continua a fazer a mesma poesia durante vinte anos? Eu desconheço. Eu me lembro de tentar escrever um ciclo de poemas sobre a morte de Iessiênin ainda garoto. O seu suicídio é impressionante e sempre me causou um assombro gigantesco. Mas quando adolescente não possuía as condições para levar a cabo o projeto. Passaram-se as décadas e retornei a esse tema antes de publicar a coletânea “Toda Estupidez”. É exatamente um ciclo de poemas sobre Iessiênin que abre a coletânea.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Estou envolvido com “Autorretrato de nossa carência”, segunda coletânea de poemas que eu reúno. Não consegui pensar em outro projeto ainda. Tenho escrito neste ano de 2020 alguns ensaios de crítica literária e de teoria da literatura, tenho resenhado obras de poetas e outras atividades. Ainda não me deixei tomar por outro projeto de poesia que não seja o “Autorretrato”.
O livro que eu gostaria de ler é sempre aquele que versa sobre o nosso tempo, que aborda as relações atuais coagulando-as sob a forma da poesia, da prosa e da dramaturgia. Seria um livro que nos concederia um conhecimento sensível acerca deste mundo que está por aí, no qual estamos inseridos e com o qual nos confrontamos diariamente.