Raimundo Neto é escritor, autor de “Todo esse amor que inventamos para nós” (2018).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sempre acordo cedo, todos os dias. Não consigo sempre ter uma rotina organizada para escrever. Meu trabalho atualmente (como psicólogo e na garantia de direitos de crianças e adolescentes na periferia de São Paulo) tem demandas complexas para as quais invisto parte da minha energia e escrita (embora outro tipo de escrita e leitura). Sempre tem muito café, um gato e amigos e amigas, e contatos com outras linguagens que não apenas as literárias, todos os dias. Acompanho diariamente a produção de outros sentidos, como psicólogo, nos atendimentos, diariamente, não diretamente relacionada a um fazer literário.
Algumas vezes tento rabiscar algumas ideias; tento também exercitar algumas páginas matinais, antes de ir ao trabalho, tentando separar o que são conteúdos meus (resmungos, reclamações, sintomas) e possíveis ideias para ficções. Isso, em geral, pela manhã.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Pensando na escrita e na produção literária, não há um horário específico. Costumeiramente me acompanha um caderno para anotar ideias e vozes. Já produzi muito pela manhã (aos finais de semana), à noite (durante a semana) também. Só não consigo produzir conteúdos literários, por assim dizer, no meu trabalho (outro trabalho?).
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Rabisco alguns questionamentos, fragmentos de vozes praticamente todos os dias. E tento, vez ou outra, estabelecer alguns dias para finalizar tais ideias. Até que desejo escrever e inventar tudo que imagino todos os dias de modo mais organizado e completo, no entanto, parte da minha energia é entregue em outro trabalho que também faz muito sentido pra mim. Isso sem falar no tempo que invisto com as leituras que sempre mantenho.
Não diria uma meta. Porque não há algo definido como “preciso terminar isso ou aquilo”. Tento manter um tipo de compromisso de não deixar ideias que chegam, vozes que me contam narrativas, escaparem. Então tento colocar esses fragmentos no papel e manter esse ritmo diariamente, mesmo que sem um objetivo claro no início.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não acho difícil começar. Organizo primeiramente perguntas. E localizo essas perguntas sempre dentro de alguma casa. É por onde a minha escrita começa: numa casa. Nicole Krauss disse numa entrevista, certa vez, ao falar sobre escrever um livro, algo como: é como se eu estivesse construindo uma casa. Se organizo as ideias, as vozes que aparecem, e a narrativa começa a pedir corpo, tento arranjar uma casa para elas. E uma casa pode ser uma morada, um afeto (ou muitos), uma perda, uma ausência, uma morte, outro corpo.
Mas muitos momentos da minha escrita são intuitivos e começam no corpo, nos afetos, memórias, subjetividades, e nessas casas que as/os habitam. Tem algum outro momento em que há o desejo, e esse acho que organiza algum outro momento mais concreto, que é quando tento organizar mais concretamente tudo isso.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Tenho tentado desde 2017 manter dois processos: rabiscar num caderno resmungos da chatice que sou como sujeito, espanando da consciência esse tipo de ‘sujeira’, para que as vozes e narrativas que me habitam de modo passageiro consigam aparecer com mais clareza, e para que seja minimamente possível identificar a diferença entre nós. Tento ainda limitar o consumo de dados e tempo nas redes sociais (e faço isso, às vezes, colocando o celular longe). Gosto muito de caminhar sem rumo em São Paulo, ouvindo alguma música que destrave a criatividade; procuro também me nutrir com outras linguagens que não apenas as dos livros lidos, e que também me ajudam a desamarrar algum possível ‘bloqueio’.
Também estou sempre aberto para o que esse caminhar e essa abertura para outras linguagens podem proporcionar de sincronicidades/coincidências em relação às ideias que tenho refletido.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Sempre releio, mas não com uma crítica muito aprofundada no início. Se eu ficar preso à autocrítica quando começo a escrever, sei que não vai sair nada. Porque eu me saboto muito, sem vergonha alguma. Então prefiro deixar o fluxo das palavras seguir. Como sempre peço para amigas mais próximas lerem, depois de terminado o ‘projeto’, prefiro revisar mais a fundo quando elas me dão os feedbacks. Só então parto para outra leitura mais técnica, digamos assim.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sempre escrevo tudo em cadernos. Tenho muitos. Não consigo começar ideias no computador. Só depois de ter terminado os escritos (como o livro de contos e romance), é que sento para iniciar a transcrição. Primeiramente, só transcrevo. Nessa transcrição, também faço a leitura em voz alta, e vou digitando, seguindo outro ritmo, sem tanta preocupação com iniciar as correções. E só depois de ter digitado tudo, retorno para reler com a possibilidade de alterar o conteúdo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Sempre estou pensando em muitas narrativas. Há três anos estou mais aberto a colocar nos cadernos todas essas narrativas e vozes, sem deixá-las escapar. Gosto de me proporcionar ‘momentos de prazer’, depois de ter o corpo moído com a rotina de trabalho. São momentos aparentemente mínimos, mas sempre cheios de significados. Como parar e observar (seja o que for), simplesmente. Busco também, como falei acima, outras linguagens, exposições, pessoas afetivas, teatro, música, filmes, séries; acredito muito em algumas sincronicidades quando o corpo/afeto/inconsciente estão deixando circular essas narrativas e vozes, e ao redor encontro naquelas exposições/pessoas afetivas/teatro/música/filme uma troca com o que tenho inventado.
Tento também não ficar à mercê de uma inspiração que vem de outro mundo, algo assim. É mais um processo de tornar esse desejo pela escrita cotidiano, sem romantizar também isso. “Largar tudo” para escrever melhor e produzir mais não seria algo muito viável atualmente, pelo menos para mim. Existem outros compromissos que também fazem muito sentido na minha vida.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Penso que talvez eu tenha encontrado alguma franqueza, honestidade no meu jeito de deixar a escrita fluir, sem ligar muito para expectativa do “Meio Literário” (assim como não ligo para o que a família e amigas/amigos mais conversadores/as esperavam de mim), e que a escrita não necessariamente precisa ter um fim determinado: vou escrever para isso ou aquilo. Hoje penso: Vou escrever. O que farei com isso, ainda não sei.
Acho que, hoje, me sinto mais transparente com o que sou, e isso também reflete nessa escrita.
Já frustrei/decepcionei tanta gente ao ser bicha, que tento não ligar muito para o que alguém poderia esperar também do que escrevo. Estou inventando outro corpo, outro sujeito, outras casas com essa escrita de agora (um fluxo cotidiano).
Acho que eu poderia me dizer isso, se eu ainda me importasse com o que já fui.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho muitas ideias para livros de contos e romance, escritos por mim. Atualmente tenho rabiscado contos e ideias para outro romance. Penso que o livro de contos que escrevi, que venceu o Prêmio Paraná de Literatura 2018 (Todo esse amor que inventamos para nós, e que será relançado pela Editora Moinhos), foi um livro que eu sempre quis ler. Assim como o romance que escrevi (finalista do Prêmio Sesc 2018) também foi um livro que gostaria de ter lido em algum momento.
Gostaria de ler mais livros que contassem sobre famílias e relações diversas (para além do muito que se repete sobre esses temas), sobre modos de resistir com o corpo, vivo ou morto, que transformem uma bicha numa humanidade grandiosa, numa família viva, num afeto transformador. E gostaria de ler mais livros que promovessem em mim muitas revoluções.