Rafael Zacca é poeta e crítico, autor de Kraft (2015), Mini Marx (2017) e Mega Mao (2018).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
São três situações possíveis.
Em uma situação perfeita, eu estou bem-disposto física e emocionalmente, e tenho controle total sobre o meu dia. Nesses casos, a minha vontade é sempre de leitura e de escrita assim que acordo. Ainda em jejum, por volta das 6h, me dirijo ao escritório (só recentemente tenho um escritório em casa – antes disso, ocupava a sala), onde trabalho por uma ou duas horas com a cabeça muito fresca e muita calma. Depois, tomo o café da manhã enquanto assisto ao jornal da manhã. Então, se for um dia que trabalho na rua, vou para a rua e começo o dia; caso contrário, retorno para o computador até a hora de preparar o almoço. Esse estado, infelizmente, só acontece poucas vezes no ano, e são dias muito felizes.
Em uma situação normal, com alguma disposição emocional e física mínimas, suficientes, acordo cedo, tomo café vendo o jornal, e só então começo a trabalhar. E em situações de caos emocional, não costumo trabalhar, vou vivendo os dias como dá. Quando pinta alguma lucidez, começo o dia colocando no papel tudo o que preciso fazer, e em que horário farei cada uma das coisas. Se consigo fazer isso, consigo cumprir com minhas obrigações.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
De manhã ou de madrugada. De manhã a cabeça está fresca, é sempre o ideal. De madrugada, porém, não há perturbação: ninguém está acordado, o telefone não toca, e o corpo não reclama. De maneira que o melhor momento para se trabalhar é nas primeiras horas do dia (entre 5h30 e 6h30), e ainda em jejum (isso só funciona se eu me alimentei bem no dia anterior).
Não tenho rituais, mas algumas coisas ajudam bastante: limpar e organizar a mesa de trabalho antes de começar, deixando em cima somente o que eu for usar; deixar o ambiente em que estou trabalhando igualmente limpo e organizado; ter um copo enorme de água e uma xícara de café; deixar redes sociais de lado; anotar, em um papel, antes de começar a trabalhar, o que farei no dia e em que ordem. Esse último ponto ajuda muito a não dispersar a energia, focando em mil tarefas simultaneamente.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo todos os dias, mas não todas as formas de escrita. Não escrevo poemas todos os dias, embora haja épocas em que eu trabalhe nos poemas todos os dias. Meu exercício diário de escrita é a forma do fichamento. Funciona como uma espécie de diário de leituras, por um lado, e exercício do pensamento, por outro.
Em períodos de cabeça limpa e menos trabalho, traço ludicamente uma meta. Preciso escrever “uma coisa” por dia. Seja um parágrafo, um poema, um verso, um texto: mas preciso ter a sensação de que fiz uma coisa. Mesmo que a coisa vá pra lata de lixo depois, ou seja, mesmo que eu não goste do que aconteceu. Nesses casos importa menos o produto, e mais uma espécie de jogo de comprometimento com o meu desejo. Como meu desejo é escrever, e como nem sempre eu obedeço a esse desejo, por causa das outras coisas da vida, esses períodos em que eu crio metas meio fantasiosas são importantes para me reencontrar comigo mesmo. Disciplina e desejo andam juntos nesses casos.
Por outro lado, existe a vida acadêmica. Sempre que tenho um prazo me pressionando, nesses casos, tenho um método de escrever uma página por dia. Mesmo que essa página seja destruída no final, isso me ajuda a manter uma convivência com o texto. No primeiro semestre desse ano, enquanto escrevia dois capítulos da minha tese de doutorado, cumpri essa rotina, e foi muito importante para me reaproximar do texto, do qual eu me sentia bastante afastado desde a qualificação. Nesse sentido, a meta de uma página por dia funciona mais como dispositivo de aproximação do texto do que meta produtiva: mas funciona também como meta produtiva, porque raramente perco prazos quando faço esse tipo de coisa. Uma página por dia te ajuda também a não escrever páginas ruins, sem atenção ou com uma escrita meio chata. Uma página, para mim, é a medida do possível de atenção e cuidado com o texto.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O difícil é sempre começar. Depois que começo, difícil é parar. E parar é importante. Não prosseguir, deixar o pensamento frear um pouco. Muita coisa ruim que fiz na vida veio da escrita automática: eu demorava tanto para começar um texto, que quando um prazo quase se estourava eu começava a redação, e terminava um texto enorme em poucos dias. Isso é terrível, não apenas para a escrita, como também para o pensamento. Aproximar-se e distanciar-se do texto é um aprendizado semelhante ao da convivência com a pessoa amada.
Hoje em dia, quando tenho dificuldades em começar, tenho duas estratégias: a primeira é começar a ler coisas que não têm relação direta com o que quero escrever – sempre surge uma ideia, uma associação vaga que me ajuda, um gancho de escrita (mesmo que posteriormente descartado); outra estratégia, que aprendi com um professor querido, é abrir um documento de rascunho, e começar a escrever livremente. Nesse segundo caso, é uma estratégia para burlar o supereu: você percebe, muitas vezes, que aquele arquivo nomeado como “rascunho para capítulo ponto doc” facilmente pode ser convertido, com algumas emendas, em “capítulo ponto doc”. A dificuldade de começar, pelo menos para mim, passa pelo medo, e o rascunho é, pra quase todo mundo, um espaço de coragem com relação às exigências exteriores. E muitas vezes a gente só precisa disso mesmo, de coragem. Mesmo na procrastinação, muitas vezes é o medo que se apossa da gente, mesmo que a gente não tenha percebido.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Uma coisa é ter dificuldades para começar um texto, como eu disse, outra coisa é a trava. Eu respeito as travas, e tento entendê-las para além da procrastinação e do medo. As travas fazem parte do processo de escrita, elas são entraves do pensamento e da imaginação. É preciso conviver um tempo com as travas. O problema nesses casos é que a gente também associa as travas à falta de responsabilidade: nos sentimos culpados, como se fosse uma ação consciente nossa de investida contra o nosso próprio trabalho. Colocar isso em outra perspectiva é importante: a gente trava porque o pensamento é gago mesmo. A eloquência às vezes é desonesta.
Com relação à ansiedade de trabalhar em projetos longos, eu resolvo fragmentando a coisa. Uma vez entendendo como é o projeto como um todo, tento lidar com pequenas metas: divido a coisa em tópicos e subtópicos, e vou de um a um com paciência, revendo o projeto inteiro conforme termino alguns deles, vendo se algo da coisa mudou. Brigar com um bicho grande não é uma coisa inteligente.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu sempre recorro a amigas e amigos em quem confio para me dizerem se a coisa vai bem ou mal. Geralmente me sinto ainda mais agradecido quando eles têm a franqueza de me dizer os pontos fracos. É então que fico ainda mais confiante para publicá-los. Acho que todo mundo tinha que estabelecer um laço de confiança com pelo menos duas pessoas que pudessem ser francas o suficiente para te avisar que você tá com um pedaço de alface entre os dentes.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo tudo que posso no computador. A mão só acompanha a velocidade do pensamento lá. Talvez porque a minha adolescência foi já com computadores. Minha escrita à mão é lenta, e no celular é pior ainda. Quando não tenho opção, vou para o caderno e só em última instância para o celular.
Mas há coisas que não podem surgir no computador, devido à liberdade da mão no papel. Isso influi, por exemplo, em alguns poemas, no método de composição, pesquisa e relação entre palavras. Um rascunho de um poema que seja um pouco mais caótico só rola no papel.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Vêm mais de uma postura. Querer escrever, por um lado, e ter a disposição de acolher esse desejo, por outro. São coisas que se refazem todos os dias. De resto, todos os meus hábitos são cultivo disso: a procrastinação, a conversa fora, o bar, a Ilíada, a filosofia, a novela, o pagode romântico, tudo é adubo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Calma, e calma. Ganhei calma. Aconselharia calma.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Um tratado de poética.