Rafael Senra é escritor, autor de Dois Lados da Mesma Viagem (2013) e Olhar de Bicicleta (2017).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
No atual estilo de vida que levo, a necessidade me obriga a encaixar o hábito da escrita no meio de diversas tarefas e urgências. Gostaria de poder dedicar integralmente ao ofício literário, e sei que uma rotina mais regrada beneficia a atividade da escrita no geral, mas ainda não consegui realizar essa intenção.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sinto que de manhã eu rendo mais em todos os aspectos, e a afirmação vale para além da atividade da escrita. Tudo que faço sai melhor de manhã. Devo dizer que não é coisa da idade, pois lembro que, desde antes de ter cabelos brancos, já era assim.
Contudo, ao avançar pelas madrugadas, as vezes encontro uma inspiração diferente de outros momentos do dia. Se nas manhãs encontro a força necessária para o “trabalho braçal” que a escrita exige, nas madrugadas percebo que algumas ideias mais inusitadas e transgressoras conseguem pousar mais confortavelmente em minha consciência.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Já tive épocas de maior disciplina para escrever, e recomendo isso para todos que querem lidar com a escrita, seja ficcional, não-ficcional, etc. Quando dava aulas de redação em cursinho, sempre dizia para os alunos que a escrita é um músculo. Com a prática, a escrita se desenvolve, se fortalece. Só que, nesses últimos anos, tenho passado por várias transições, que envolveram um novo emprego, mudança de Minas Gerais para o Amapá, casamento, etc. Logo que a poeira assentar, quero me disciplinar de novo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Me preocupo muito com as primeiras frases, porque, em boa parte das vezes, elas dão a “voz” para o texto. E é importante que o texto tenha uma dicção própria. As vezes, isso surge repentinamente, mas nem sempre é tão fácil de se encontrar. Quando você encontra a voz no meio das palavras, o texto flui, ganha sabor, e é como se não fosse você quem o escrevesse.
Lutar contra essa “voz”, ou seja, insistir em ter o controle sobre o texto, significa arruinar a arquitetura das palavras. Tento sempre permitir que essa “voz” da qual falei possua a minha escrita. Não é à toa que os gregos diziam que artistas eram inspirados pelas musas. Mesmo que a imagem das musas pareça tola quando a tomamos de maneira literal, vejo uma verdade enorme nessa ideia.
Sobre a pesquisa e a escrita, me parece importante, antes de mais nada, manter os dados pesquisados submissos à essa “voz” do texto. Caso contrário, uma dicção conotativa acabará sendo poluída por outra denotativa, e vice-versa. Meu movimento da pesquisa para a escrita se ampara nesse cuidado.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu já perdi projetos legais porque os abandonei e depois não consegui reencontrar a voz de outrora. Por outro lado, alguns projetos são tão especiais que permitem que você retorne a eles. Nesse sentido, penso que os textos têm vida própria, são únicos. E tem seus caprichos.
Acho importante que, mesmo no meio de uma rotina atribulada, dediquemos um tempo mínimo a alguns projetos pensados para serem produzidos à longo prazo. Mesmo que sejam, sei lá, cinco minutos diários. É importante que renovemos nossos vínculos afetivos com esses textos. Sem uma carga de afeto por trás, o texto perde muito da contundência que ele pode ter.
Agora, relacionando aqui duas partes da sua pergunta, uma sobre as travas da escrita e outra sobre as expectativas: creio que os dois problemas ocorrem quando deixamos o ego tomar o controle. Me refiro àquele lado nosso que está mais preocupado conosco mesmo do que com o texto. Se a mente está abarrotada de vaidade ou de paranoia sobre a recepção do texto, você perde o terreno fértil para o próprio texto.
E penso que, na maior parte das vezes, tudo se resolve quando ouvimos o texto. Geralmente ele traz as direções que devemos seguir. Ele é o mapa de si mesmo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso inúmeras vezes. A revisão é essencial. Eu dizia para meus alunos: revisem suas redações de Enem. Eles davam risada e diziam que era impossível. Eu respondia: Se vocês têm poucas horas para fazer tudo, escrevam a redação no início do horário, façam a prova, e voltem à redação depois.
Porque precisamos despregar os olhos dos textos por um tempo, já que a proximidade com eles nos deixa insensíveis aos detalhes. É como aproximar um objeto dos olhos: se estiver perto demais, só observamos uma mancha. É preciso distanciar.
Não tenho tantos leitores entusiastas que se disponham a ler meus textos antes de estarem prontos. Na verdade, não costumo pedir para que outros leiam, tenho receio de incomodar. Mas, quando acontece, adoro ouvir opiniões alheias antes de dar o veredito. Lido bem com o retorno das pessoas.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo no computador por convicção. Quando escrevo à mão, sinto que a velocidade da escrita fica aquém da minha velocidade interior. Ao digitar, sinto que acompanho melhor os pensamentos, os desejos, os afetos.
Tenho uma relação boa com o universo digital, ainda que eu tenha certa saudade de um aspecto, digamos, “sensorial” do universo analógico. Sou daqueles que prefere vinil em vez de CD, por exemplo. Sinto que as ferramentas analógicas nos trazem uma sinestesia e até mesmo uma verdade sobre o ofício. O cheiro do papel é imbatível. Mas o digital nos otimiza o tempo, e o tempo para mim é ouro. Se eu vivesse da escrita, talvez tentaria adquirir uma máquina de escrever.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Eu lido com muitas atividades: roteiros, ilustrações, música, cinema, etc. Várias pessoas já me disseram que essa dedicação a tantas atividades faz com que o resultado final de cada uma delas se disperse. Por outro lado, elas me inspiram mutuamente. O chileno Alejandro Jodorowsky diz que o artista atual deve ser como os telefones celulares: capazes de exercer várias funções – e eu concordo com ele. Além do mais, quando estou dedicado a uma atividade, estou descansando de outra delas. Portanto, até mesmo graças à essa polivalência, nunca me canso de criar.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu tenho algumas coisas que diria para meu “eu” jovem, coisas que o fariam poupar um tempo enorme. A primeira delas: não seja pretensioso. Algumas pessoas nasceram para escrever sobre coisas grandiosas, mas você, Rafael, você lida melhor com minúcias, com irrelevâncias. A porção menos glamorosa da vida traz muitos milagres silenciosos para quem sabe ver.
Outra coisa que eu diria também: deixe o perfeccionismo para a hora de revisar. Na hora de produzir, a paixão é muito mais importante. Siga o fluxo da inspiração. Não racionalize o processo. Desfrute do sabor de dar vida a uma obra de arte, sem culpa e sem crise.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho muitos projetos. Caso eu me tornasse um artista profissional amanhã mesmo, acredito que poderia trabalhar todos os dias e ter uma carreira longa – e isso apenas com o baú de ideias que tenho hoje em dia.
Sobre o livro que gostaria de ler, encerro essa entrevista contando uma história. Em 1968, os Beatles ainda estavam na ativa, e Paul McCartney leu uma resenha de jornal sobre certa música nova lançada pelo The Who. O texto dizia que aquela era “a música mais pesada do mundo”. Paul não tinha escutado a canção ainda, mas a resenha lhe fez imaginar como seria essa tal música “mais pesada do mundo”. Ele compôs algo que traduzisse a canção imaginada, e o resultado foi “Helter Skelter”, que, para muitos críticos, é o primeiro “heavy metal” da história.
Amo essa história, talvez porque eu funcione de maneira parecida. Muitos projetos meus nascem do descompasso entre um desejo de leitura e o que acabo lendo. Dessa maneira, reciclo a expectativa frustrada e tento transformá-la em realizações criativas.