Rafael Nolli é professor de Geografia e escritor, autor de “Elefante” (poemas) e “Gertrude Sabe Tudo” (infantojuvenil).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Trabalho todos os dias no período da manhã (quase todos os dias à tarde e muitos dias à noite). Sou professor atualmente em três escolas, assim, toda a minha rotina está ligada a isso. Não há um só dia que não dedique minhas manhãs à escola, mesmo nos finais de semana, onde utilizo esse período para preparar aula, corrigir provas e colocar em andamento toda a burocracia envolvida (lançar notas e faltas, preencher papelada relacionada à disciplina dos alunos, responder e-mails das escolas, dos pais, etc). Dessa forma, não há uma rotina matinal para escrever: há uma rotina matinal para sobreviver – e a esperança de que essa sobrevivência me possibilite uma ou outra brecha para escrever.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Em relação à escrita, essa questão é bem complexa. Explico: quando se trata de poesia (tenho dois livros de poemas publicados e dois na gaveta) não há hora, nem dá para adiar. As ideias aparecem sem dar qualquer aviso prévio. Dessa forma, ou escrevo na hora ou não escrevo nunca. Parece haver uma linha tênue prendendo essas ideias (alguns chamam de inspiração). Essa linha tênue só aceita ser “manipulada” na hora, de imediato; uma hora depois, é tarde demais: e tentar escrever após o insight é – na maioria das vezes – um fracasso. Mas, para complicar um pouco mais, o poema quando capturado na hora não vem pronto e acabado. O problema vem depois, quando tenho que ler e reler e modificar e reescrever.
É uma situação complicada, só consigo colocar no papel a ideia no momento que ela aparece, mas o poema só se concretiza depois de muito trabalho. Explico melhor: é como se a ideia inicial fosse um esboço simplório, mas passível de ser moldado, só que esse esboço é exigente e sem ele não há do que partir.
Já para textos em prosa (tenho dois infanto-juvenis publicados e dois na gaveta) a coisa é bem diferente. A ideia inicial pode ser pensada em um momento e escrita posteriormente, sem grandes prejuízos. Na maioria das vezes, é até melhor escrever depois da ideia inicial, pois esse insight pode ir amadurecendo no campo abstrato, sendo moldado para depois ir para a tela do computador.
A melhor hora para trabalhar essas ideias são os períodos mais silenciosos, mas já escrevi em locais totalmente contrários a essa regra. Há certa febre criativa, que faz com que a escrita flua, quando o texto está empolgante – para mim –, fazendo com que o momento e a hora sejam irrelevantes. Uma pena que com o poema não seja assim e essa febre seja passageira, demandando ação imediata. Como disse: o poema é muito exigente.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Ambiciono o tempo em que poderei escrever todos os dias. Tenho certeza que havendo essa possibilidade, será algo que me dedicarei. Até que chegue essa época, vou me virando como posso (porém, ciente que esse momento ideal – idealizado? – seja uma utopia: é bom lembrar que vivemos em um país em que ninguém irá se aposentar…).
Escrevi em 2019 um livro infantojuvenil que serve como exemplo: é uma obra que exigia algumas horas por dia, todos os dias. Como não possuía esse tempo disponível, escrevi de madrugada, sacrificando o sono: tenho certeza que se pudesse dedicar algumas horas todos os dias, sem pressa, a coisa seria diferente. Não que o trabalho final fosse ficar melhor ou pior: o que foi sacrificado foi o meu descanso. Tenho certeza que o livro não se sustentaria no campo das ideias se eu aguardasse as férias para começar na escrevê-lo, assim, varei as madrugadas, depois de deixar todo o trabalho do dia pronto.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Uma das partes que mais gosto em todo o processo é a pesquisa. Para mim, a pesquisa e a escrita caminham praticamente juntas. Assim que tenho uma ideia que julgo interessante, começo a fazer notas e a criar tabelas em um documento à parte. Essa questão tem sido determinante para a conclusão de meus projetos em prosa, sobretudo os mais extensos. Assim, na medida em que vou pesquisando, vou escrevendo: a escrita exigindo novas pesquisas; as pesquisas alterando os caminhos da escrita…
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
O hábito de fazer notas e criar tabelas tem sido uma boa arma contra as travas da escrita. Pesquisar, fazer notas, organizar as características dos personagens em um documento a parte, ajudam a manter a ideia viva, ainda que a escrita não esteja fluindo. Esse processo de fazer outras coisas envolvendo o livro ajuda a diminuir a ansiedade, pois me dão a impressão que a obra não está morta, abandonada: até mesmo por que escrever um livro nunca é só escrever um livro: há os longos períodos de leitura, há os períodos de maturação da ideia (até mesmo subconsciente, pois tenho certeza que as histórias vão se construindo num profundo da mente, se alimentando e ganhando corpo sem que possamos perceber). Para o meu último livro, por exemplo, quando ele emperrava, me dedicava a desenhar os personagens, a criar resumos dos capítulos, a fazer linhas do tempo – e ia pregando tudo isso na parede, para ficar visualizando o esquema.
As expectativas são um caso à parte: exijo muito de mim: tenho um romance bem robusto pronto que nunca ganhará uma edição, pois está aquém do que posso produzir. Como vivemos num país de poucos leitores, tenho a convicção de que o escritor deve ser o mais exigente leitor de sua obra. Vejo a questão de forma muito simples: a crítica mais severa deve vir do próprio escritor – ser surpreendido com uma crítica dura não deve fazer parte da vida de um escritor: é importante reconhecer os pontos fracos da própria obra para contorná-las ou, o que ás vezes é uma verdade, aceitá-las.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
É impossível dimensionar a quantidade de vezes que reviso os meus textos. Um poema, até mesmo o mais curto, é lido dezenas e dezenas de vezes. Houve uma época em que eu acreditava que depois de tantas revisões o texto ficava pronto: assim, depois de publicá-lo, seja em um livro ou em um blog, ele estava com sua forma definitiva. Tempos depois, amenizei a ideia e passei a considerar pronto um texto que tenha ido parar em um livro físico – nesses, eu não mexia mais. Hoje, adotei a seguinte ideia: um texto nunca está pronto, sempre é possível melhorá-lo! Independente de ter sido publicado em uma mídia física, o que vale é buscar o melhor sempre. Nessa linha, tenho experimentando uma estratégia que me parece proveitosa. Os últimos poemas que escrevi foram revisados à exaustão e depois publicados em redes sociais com pedidos de dicas sobre trechos específicos e dicas de melhora. Em alguns casos, recebi dezenas de conselhos e dicas (vindas de escritores experientes, de iniciantes e de pessoas que não tenham nenhuma ligação com literatura, e isso pouco importa: todos os olhares são válidos nesse projeto). Houve vezes em que não alterei uma única linha, uma única vírgula, mesmo com várias sugestões e dicas; em outros casos, aceitei as dicas e fiz grandes alterações.
Essa é uma forma de ampliar o número de leitores, criando um engajamento – porém, é importante estar em dia com a alto-estima, pois o fato de “pedir conselhos” publicamente abre espaço para as pessoas serem severas, demasiadamente críticas. Vejo essas experiências como uma espécie de obra em construção que pode – ou não – ser modificada mediante a leitura de terceiros. Essas experiências me ajudam a selecionar o que vai parar em um livro e o que vai ser descartado. Infelizmente, é muito difícil encontrar leitores para conferir um trabalho antes de colocá-lo na praça: os amigos mais próximos estão atolados de trabalho ou não gostam de ler, etc.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Desde sempre escrevo no computador. Porém, nos anos 90 comprei uma máquina de escrever, para fugir do PC e suas distrações. Essa ideia não prosperou e hoje vejo até com vergonha essa medida: havia um quê de “nostálgico” nisso, parecia “chique” escrever poemas em uma máquina velha – como Hemingway numa praia cubana ou Neruda na Isla Negra.
Depois, percebi que bastava arrancar o fio da conexão que tudo ficava bem. Hoje, radicalizei: escrevo conectado, paro de escrever para ver as notificações, entro em redes sociais no meio de uma frase para postar uma foto ou debater algum assunto.
Tenho quase 40 anos, nasci antes de a Internet ser uma realidade ampla, mas creio que tenho me virado bem – como parte dos jovens nativos digitais – fazendo dez coisas ao mesmo tempo: escrevo ouvindo música, tuitando, postando selfie no Instagram. Talvez por isso almeje tanto um tempo longo para escrever: fazer literatura é um processo demorado, às vezes doloroso, sempre solitário.
Quando a escrita engrena e tudo está caminhando nos trilhos, nada me tira de frente do computador e; se tira, tenho que aprender a lidar com isso sem prejudicar o andamento do que estou escrevendo. Talvez essa forma de escrita até deixe marcas no que eu esteja produza. Meu segundo livro de poemas, chamado Elefante, é feito basicamente de hiperlinks e citações – coloquei em cada estrofe um ou mais hiperlinks para assuntos aleatórios que de alguma forma complementam ou enriquecem a leitura. Tenho pronto um livro em prosa em que parte significativa das questões se desenvolve em notas de rodapé: como se cada página tivesse uma janela aberta para outro assunto, que puxa outro e assim por diante… Vejo nessas experiências algo dessa forma de se produzir em um ambiente hiperconectado…
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Vejo muitas pessoas dizendo que a escrita é feita com 10% de inspiração e 90% de transpiração. Já achei essa ideia simpática, mas fui perdendo a simpatia por ela pouco a pouco. Mesmo perdendo simpatia em relação a essa ideia, acho difícil descartá-la de um todo. Diria assim: a escrita é 100% inspiração e 100% transpiração.
Agora, de onde vem essa inspiração? (Inspiração, aliás, não me parece uma boa palavra, mas na falta de uma melhor, vai ela mesmo). Diria que as ideias emergem de um submundo da mente que não controlamos e que não podemos acessar a esmo. Para ficar mais claro: a inspiração é semelhante à vontade repentina & irresistível de tomar sorvete. Essa vontade (que é uma ideia/que é uma inspiração) surge de repente, sobretudo em quem tem o hábito de tomar sorvete, ou passou diante de um outdoor anunciando um novo sabor ou uma nova sorveteria. Os poemas surgem assim, tal como surgem os enredos para textos em prosa de maior fôlego: de repente, do nada, como um desejo de tomar sorvete, por exemplo. Fica claro que ter o hábito de ler e escrever irá contribuir – e muito – para que ideias brotem com maior regularidade.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Mudou, com certeza, a forma de selecionar o que escrever. A escrita, no meu caso, está condicionada ao pouco tempo que tenho para me dedicar a ela: quando era jovem e tinha tempo de sobra, cheguei a escrever vários poemas num só dia; nessa toada, escrevi dois romances enormes… Qualquer ideia que brotava eu escrevia, sem dó nem piedade, sem muito rigor ao tema e a forma. Hoje, tenho selecionado ao máximo as ideias que me surgem: trabalho em uma parte dessas ideias, sem peso na consciência em descartar as que me parecem menos promissoras (as menos promissoras são aquelas que não vêm com uma estrutura muito clara; as menos promissoras são aquelas que são apenas um tema interessante, porém esvaziado de uma estrutura interessante que a sustente).
Acho que o melhor conselho seria esse: leia mais livros, amplie as suas leituras e não tenha medo de descartar o que não está bom. Seja rigoroso: os poemas ruins, os textos imaturos, sobrevivem boiando em blogs e páginas – uma hora eles emergem para te matar de vergonha.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Talvez o projeto mais ambicioso, nesse momento, seja manter em andamento tudo que planejei nos últimos anos e consegui colocar em prática. Dentre esses projetos, que sonho manter em andamento, cito: continuar visitando escolas públicas para conversar com alunos, organizar saraus e rodas de leitura; fazer mais um ou dois números do fanzine The Soronprfbs (foram editados 3 números até o momento); publicar mais uma obra poética de forma artesanal (Elefante, meu segundo livro, foi feito em casa, usando impressora, com as capas de caixa de leite longa vida); ressuscitar o selo de livros artesanais chamado Coletivo Anfisbena (que criei em 2013 e que publicou a antologia Fórceps, com diversos autores araxaenses); continuar contribuindo com o Fliaraxá (Festival Literário de Araxá), que é algo de que me orgulho muito.
De novidade, creio que o projeto mais ambicioso seja escrever uma trilogia infantojuvenil, na linha da fantasia e da aventura. Já tenho o primeiro número pronto, nas mãos de uma editora. Os próximos tomos acabarão com minhas noites de sono, mas me parece que valerá a pena.
Um livro que gostaria de ler, que ainda não existe? Não consigo pensar em nenhum – e não vejo problema nisso: há milhares de livros que já existem e estão no meu radar, além de dezenas de outros livros que vão surgindo e entrando para a lista de desejos. Do lado da minha cama tenho uma pilha de leituras atrasadas – nem é bom começar a ambicionar obras que sequer existam!