Rafael Mantovani é poeta e tradutor, autor de “cão” (Hedra, 2011) e “você esqueceu uma coisa aqui” (Macondo, 2019).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Leio todo dia quando acordo, geralmente poesia, uma hora inteira. Leio de manhã porque minha atenção ainda está livre e meio infantil. Tenho uma pilha de livros numa mesa e vou alternando conforme a minha vontade.
Essa hora de leitura abre meu ânimo e dá sentido às manhãs, pois à tarde meu tempo será engolido pelas obrigações do cotidiano e do meu trabalho remunerado. Então salvo do capitalismo no mínimo essa hora inteira de inutilidade, de leitura por gosto e interesse espontâneo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Quase só consigo escrever à noite, sempre foi assim. Acho que o sol me deixa alerta e objetivo demais, ou tímido demais pra escrever. Talvez seja só a associação com obrigações e trabalho. Mas pra mim funciona quase como uma condição neurológica, ou meteorológica, o tipo de animal que eu sou, não tento mais mudar isso. Meu único ritual noturno é ficar longe do computador e de qualquer aparelho eletrônico. Ouço música instrumental. Às vezes acendo alguma coisa perfumada para criar humor.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Tento escrever todas as noites de semana, no mínimo uma hora, marcada numa ampulheta. Também tenho momentos entusiasmados ou delirantes que duram horas e horas, mas a ampulheta diária é porque não quero depender do meu ânimo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu princípio é basicamente: guardar as anotações todas no mesmo lugar, e desenvolver conforme possível. Tenho um monte de cadernos, anoto qualquer tipo de coisa. Vou expandindo essas anotações diariamente, sem muita organização obrigatória, e em algum momento consigo terminar algo. Então é como se o poema se desgrudasse dessa massa de tentativas. É comum demorar meses ou anos.
Há quem afirme que um poema deve ser escrito num instante contínuo, que seria uma espécie de “retrato” do momento da escrita. Isso às vezes acontece de fato, mas acho esse princípio da “instantaneidade” um tanto superestimado. Um poema também pode tranquilamente ser a condensação de ideias e momentos espalhados, interrompidos e retomados, como são tantas coisas humanas.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
É horrível, sempre. Mas sempre acabo dando um jeito, ou sempre consegui dar até agora. Às vezes consigo superar ou contornar a impossibilidade, às vezes desisto e aceito. Mas é mesmo horrível e não há redenção pra isso. Minhas posturas: me esforço em olhar por outros ângulos, tento largar o controle, penso em vozes de outras pessoas, aceito a intervenção do acaso. Uso as Oblique Strategies do Brian Eno. Faço algum exercício físico ou limpeza doméstica pra dispersar, depois tento de novo.
Nessas horas sempre me ocorre o poema Arte Poética da Adília Lopes: “Escrever um poema / é como apanhar um peixe / com as mãos […] luto corpo a corpo / com o peixe / ou morremos os dois / ou nos salvamos os dois […] quando chego ao fim / descubro que precisei de apanhar o peixe / para me livrar do peixe.”
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso meus poemas um número absurdo de vezes, por compulsão doentia mas também porque gosto muito de revisar. Gosto de retranscrever poemas inteiros à mão dezenas de vezes, fazendo mudanças pequenas e grandes. Depois imprimo e continuo fazendo mudanças por meses. Acredito muito na reescrita e me permito mudar qualquer coisa que já tenha escrito, mesmo publicadas.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Como já trabalho por obrigação o dia inteiro no computador, minha relação com a tecnologia é péssima. Quando estou olhando pra uma tela, meu corpo todo entra no “modo obrigações e trabalho”, que é ansioso e não muito aventuresco. No computador, não há muita chance de eu sentir entusiasmo e liberdade para escrever poesia, por isso só escrevo em cadernos de papel. Pra mim é uma condição necessária, por motivos quase de sanidade mental. Só digito poemas quando estão prontos, e imprimo imediatamente.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Isso eu nunca consegui descobrir, além da resposta inútil de que vêm das coisas que leio e vivo, como qualquer outra pessoa. Aceito ideias vindas de qualquer lugar, porque não há como saber o que vai se transformar em algo significativo. Mas sei por experiência que, quando deixo de ler regularmente e de pelo menos tentar escrever, as ideias interessantes começam a enfraquecer e sumir. Por isso continuo lendo e escrevendo, é o mínimo imprescindível. Acho que o resto vai de si, com a ajuda da sorte.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Diria a mim mesmo que escrever tem que ser divertido e prazeroso, isso é algo que já subestimei demais na vida. Que escrever tem que ser uma festa, um ato arbitrário e caprichoso que envolve chutar algum balde utilitário, algum balde muito fundamental no que parece “desejável” ou “importante”. Pelo menos no caso de poesia, passei a acreditar que não vale a pena escrever se não há um prazer substancial, qualquer seja o aspecto desse prazer. Mesmo que seja um prazer ambíguo ou perverso ou volátil, como geralmente é. Porque qualquer arte é possivelmente inútil, não é garantido que haverá outro valor além do prazer de fazer arte e conhecer a arte que outras pessoas fizeram. Então esse valor de prazer tem que bastar por si só, e o que vier em cima disso é sorte.
Também diria a mim mesmo pra levar minhas ambições mais a sério e, ao mesmo tempo, menos a sério. Penso nestes versos do e.e. cummings, que demorei décadas pra entender: “mr youse needn’t be so spry / concernin questions arty / each one has his tastes but as for i / i likes a certain party”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Acho que, com o tempo, parei de fazer planos para um futuro além de uns seis meses, porque é incerto demais. Estou sempre trabalhando no meu livro atual, nos poemas que estou conseguindo escrever agora, e depois disso eu vejo.