Rafael Lamera Giesta Cabral é professor de história do direito na UFERSA.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
A minha rotina matinal é completamente instável e, por isso, se afasta de um padrão. Tudo pode acontecer e, na maioria das vezes, a noite anterior é o que determina como o meu dia começará. Tenho hábitos noturnos e, por isso, acordar cedo não é uma prioridade (ok, aviso o leitor que ainda não tenho filhos). No entanto, é possível registrar que meu dia começa com a leitura superficial da caixa de e-mails, mensagens e o que há de novo no noticiário… e, por razões óbvias, nem sempre há um bom café-da-manhã. Separo o que é importante e predetermino quais serão as prioridades do dia. Trata-se de uma agenda que se renova frente às necessidades e obrigações (nem sempre desejadas) que surgem. Em determinados momentos, o dia começa quase com o almoço. É curioso reconhecer isso. Tenho uma impressão de que meus hábitos matinais são inadequados, mas o período matutino é meu dilema.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
É uma pergunta difícil. Como professor universitário, a melhor hora do dia passa a ser relativa. Acredito que nos últimos anos experimentei momentos distintos para desenvolver o melhor horário. Quando iniciei meus estudos de doutoramento em direito na Universidade de Brasília, em 2012, eu trabalhava em uma universidade pública de Mato Grosso do Sul e viajava para Brasília semanalmente. No trabalho, tinha uma carga horária de 20h semanais. Era uma completa loucura e a melhor hora do dia era a que sobrava. No início de 2013, quando me mudei para Mossoró-RN após aprovação em concurso público para a UFERSA, as atividades administrativas e de sala de aula ocupavam grande parte do meu tempo. O melhor horário de escrita sempre foi após as aulas no período noturno, na alta madrugada. Ainda é o meu horário mais produtivo. A experiência mais próxima a uma rotina controlada foi o período em que me afastei da universidade para desenvolver a tese, entre 2014 e 2015. O tempo da escrita era livre e eu podia trabalhar bem a qualquer hora. Recordo-me que nas manhãs, tardes e inícios de noite sempre havia um potencial para a escrita. Após a defesa da tese, em 2016, e com o retorno à universidade, o tempo da escrita reflete a maior ou menor extensão do meu prazo. Deadline é o que me move e dada a frequência em que ocorre, acabo por trabalhar bem em qualquer horário, inclusive aos sábados e domingos. Confesso que não tenho certeza se possuo um ritual de preparação para a escrita. Em um primeiro momento, tento organizar e levantar os dados disponíveis sobre meu objeto de análise. Esse é um movimento que nem sempre tenho controle… um texto pode chamar outro e fichá-los passa a ser uma alternativa. A escrita só flui após um amplo levantamento documental e bibliográfico. Esse preparo, certamente, evita a famosa “síndrome da página em branco”. Procuro escrever em meu escritório residencial, um local calmo e sem distrações (exceto pelos e-mails e mensagens nas redes sociais – meus maiores desafios).
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
No período de escrita da tese eu escrevia um pouco todos os dias. Era um ritual exequível porque estava à disposição desse trabalho em tempo integral. É interessante observar como meia ou uma página por dia faz a diferença. Não era uma meta de escrita diária propriamente dita, mas acabava funcionando como um combustível, um incentivo para manter o ritmo. Havia uma disciplina e o trabalho fluiu bem. Ultimamente, a complexidade da atividade docente reconfigurou minha disciplina na escrita. Prova disso é que até o momento, não consegui retornar ao texto da tese para uma possível publicação em livro. A meta (que não é diária) para a escrita passa a ser mediada por prazos de congressos, revistas e orientações na graduação e mestrado.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Nunca tive facilidade para começar a escrever… é uma arte difícil, mas que pode ser contornada com algumas estratégias. Escrever é doloroso, penoso e, algumas vezes, pode abalar a autoestima, principalmente em uma tese. A pressão por bons resultados atinge diretamente o processo de escrita. Aliás, é o que observo cotidianamente com meus alunos na graduação e pós-graduação. É um ciclo próprio, mas com profundas semelhanças. Atualmente, minhas pesquisas demandam análise de fontes documentais e o processo de escrita não se inicia sem um bom mapeamento dos documentos e bibliografia do período e o que foi produzido sobre o período. O uso das ferramentas tecnológicas auxilia muito no processo de pesquisa para a escrita, até mesmo para o historiador do direito. Contudo, esse movimento nem sempre é automático. Minha pesquisa de doutorado envolveu a análise de dois fundos de arquivos: um em Brasília (TST) e outro em Arroio dos Ratos-RS (Museu Estadual do Carvão) e a escrita sempre foi revisitada com a chegada de novos documentos. Essa é a prova de que o processo de escrita não é controlável e que tampouco há um modelo adequado a ser seguido. A escrita é fruto da experiência individual de cada escritor. Em geral, procuro estabelecer tópicos que estruturarão as ideias principais. Com o eixo central elaborado, começo a desenvolver o que deve compor cada seção. É neste momento que coloco as principais ideias em curso, onde passam a ser testadas, revisitadas e até mesmo excluídas. As notas, os fichamentos, os dados e as referências levantadas são incorporados ao texto no mesmo momento em que a escrita passa a ser produzida.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu acredito que as travas da escrita, ansiedade, procrastinação e o medo de não corresponder às expectativas são processos naturais que acompanham as diversas fases da escrita. É claro que dependendo do tipo de trabalho que se faz, essas questões tendem a possuir uma intensidade diferente. Não tenho dúvidas de que procrastinei mais na escrita da tese que na dissertação. O contrário ocorreu com a ansiedade: esteve mais presente no mestrado que no doutorado. A trava da escrita pode ocorrer por diversas razões e aqui segue meu relato pessoal. Na maioria das vezes que ocorreu a culpa foi minha: má gestão do tempo, ausência de profundidade no levantamento dos dados ou até mesmo a procrastinação, deixando tudo para a última hora, influenciaram na famosa “síndrome da página em branco”. Há saídas clássicas e revisar todo o processo que acabo de me referir é uma das primeiras dicas que compartilho com o leitor. Essa revisão funcionou como um restart em minha disciplina, confiança e perseverança no trabalho que estava realizando. Uma boa alternativa para lidar com esses inconvenientes no momento da escrita é ter o apoio de um bom grupo de pesquisa. Tive experiências significativas no período do doutorado e busco proporcionar isso aos meus alunos no grupo de pesquisa que lidero na universidade. O diálogo com os colegas pesquisadores, a partir da mediação de textos, passa a ser fundamental para o bom desenvolvimento do processo de escrita. Compartilhar problemas, soluções e expectativas com a interlocução de um grupo de estudo e pesquisa foi uma das gratas experiências que trago e indico para os leitores.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não tenho uma regra específica para isso, mas confesso que o processo de revisão depende muito do prazo que possuo. Em artigos, a revisão ocorre em três momentos distintos: primeiro, a que faço após ter encerrado o texto; na sequência, solicito a colaboração de algum orientando ou pesquisador para uma segunda opinião e por fim, faço a última revisão antes da submissão. É sempre possível? Não, mas tenho procurado melhorar a gestão do tempo para manter esse ritmo. Na escrita da tese a revisão era constante e a maior dificuldade foi promover um estilo que representasse a essência do trabalho. Tive ajuda de familiares e amigos da mais alta confiança. Sempre procuro compartilhar o texto entre pesquisadores próximos em busca de opiniões, críticas e sugestões antes de publicá-lo. O hábito de chamar uma reunião para discutir o texto com o grupo de pesquisa é uma experiência positiva e, mesmo assim, gostaria de ter a oportunidade de revisar e melhorar todos os textos publicados.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tenho uma boa relação com a tecnologia e meus textos são escritos diretamente no computador. A cada dia que passa há novas ferramentas que auxiliam o pesquisador. Há softwares e programas que auxiliam na organização das referências bibliográficas e até nas normas da ABNT. Não consigo segui-las ou incorporá-las no dia a dia da escrita. Hoje, com o livre acesso à tecnologia tenho o hábito de tomar notas de ideias, insights ou sugestões de leitura no próprio aplicativo do celular, que é salva diretamente na “nuvem”. Uma forma de proteção daquilo que produzo é habilitar o compartilhamento automático de textos na “nuvem”. Há vários aplicativos para isso. Com mais de quinze anos na academia, é muito comum ouvir relatos de colegas que perderam dissertações e teses ocasionadas por furtos, roubos ou defeitos de computador. Como leitor, prefiro ler no papel em detrimento de ler no computador, em especial para revisar manuscritos.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Certa vez escutei que somos aquilo que lemos, vivemos e experimentamos. Minhas ideias refletem meu espaço de experiência que capto a partir da leitura de livros, artigos, romances e muito diálogo com meus pares. Nunca sabemos quando um insight irá surgir. Penso que todos somos criativos, mas há espaço para que a criatividade seja estimulada. A participação em congressos, por exemplo, é um desses momentos. É um local de experimentação de novas ideias e projetos.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Disciplina intelectual é um dos pontos que levanto sobre a primeira mudança. Penso que, atualmente, as ideias passam por um processo de teste, de aderência a cada tipo de trabalho. Não escrevo como escrevi há dois anos e, por certo, não escreverei como escrevo daqui dois anos. Sempre sofro influência daquilo que leio e estou aberto a mudanças. Se pudesse voltar à escrita da minha tese teria estabelecido uma organização interna diferente, não por achá-la deficitária, mas para ter um maior controle sobre a adversidades que uma pesquisa pode impor. Como já afirmei acima, o acesso a um dos arquivos ocorreu em um momento de prévia escrita da tese e isso causou impactos no processo de redação da tese.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Um projeto que gostaria de fazer é me dedicar ao processo constituinte da Constituição de 1891. É fato que há bons trabalhos sobre o período, mas a ideia é promover um conjunto sistemático entre o projeto constitucional e as linhas do pensamento político que transitavam naquele momento de fundação da República. Como atuo na área da história constitucional, desvelar esses momentos constitucionais sempre são reveladores. Um livro que gostaria de ler e que ainda não existe é um que se dedique a analisar a História Constitucional brasileira que fugisse da perspectiva de comentários aos textos constitucionais. A publicação de uma obra desta natureza promoveria inflexões sobre nosso espaço de experiência, habilitando-nos a pensar o futuro com expectativas inovadoras.