Rafael Escobar é escritor, autor de Elogio dos Tratados sobre a Crítica dos Discursos (Libretos, 2017).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Hoje em dia, normalmente, acordo entre oito e nove da manhã, vou até o banheiro, urino, lavo as mãos, o rosto, limpo as fossas nasais com jato de soro fisiológico, passo minoxidil 5% no couro cabeludo pra retardar minha calvície, como uma banana e tomo café preto fumando os primeiros cigarros. Depois disso não sei, varia, mas quase sempre leio, escrevo, ouço música, converso com a minha mãe, toco violão, saio pra andar de bicicleta. Às vezes faço só uma dessas coisas, às vezes duas, três, todas. Realmente não sei.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sobre a hora do dia, varia. Tem épocas que sou mais produtivo de manhã mesmo, sem ter tido contato com muita coisa. Tem épocas que é o contrário, que é justamente no fim do dia ou mesmo na madrugada, depois de ter passado um dia todo tendo visto, lido, ouvido várias coisas, que parece que algumas ideias que surgiram antes, não necessariamente no mesmo dia, acabam recebendo a atenção necessária pra serem transformadas em algo. Mas isso acontece direto de tarde também. E aí já tá um ponto sobre o “ritual de preparação”: não tem muito não… Quase sempre tenho ideias pra cenas, falas, personagens, um conceito de um texto curto, ou de um capítulo, ou sei lá do quê, e acabo ficando com essa ideia na cabeça até sentar e ver o que pode ser feito com ela. Às vezes lembro de ideias que tive há muito tempo e nunca tinha feito nada, e de repente viram algo; às vezes tenho a ideia na hora e sento pra escrever. Varia muito mesmo. Não tem muito planejamento. Mas acho que o que é mais certo de afirmar, no meu caso, é que tenho quase sempre ideias pra FRASES; por causa de alguma coisa, penso numa frase, e partir dessa frase vão surgindo outras e sabe-se lá no que vai se tornar o negócio.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Acho que vou ter que acabar dizendo em todas as respostas que “varia”. (risos) Não tem muita rotina por aqui não… Muito menos uma meta de escrita diária; nunca escrevi com essa regra. Passo períodos sem escrever quase nada, sem ler quase nada, daí volto a ler e escrever todo dia, fico um tempo quase só lendo, um tempo quase só escrevendo. E assim vai. Agora, escrever ou ler muito num mesmo dia não é uma coisa muito comum pra mim, principalmente escrever. Se juntar tudo que escrevi em um dia e isso der umas duas páginas, pra mim já é muito mesmo. Normalmente, quando sinto que cheguei num momento, tanto de escrita quanto de leitura, em que se pode dar uma pausa, eu dou. O fim de um capítulo, o fim de um parágrafo. Gosto muito de reler, tanto o que eu tô lendo quanto o que eu tô escrevendo; por isso quase sempre faço essas pausas e quando volto dou uma relida no que vinha antes; no caso da escrita, às vezes releio tudo que já escrevi até onde parei; isso é bem comum.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não posso dizer que eu “compilo notas” nem que eu “passo da pesquisa pra escrita”. Acho que o tipo de coisa que eu escrevo não é algo que demande muita pesquisa, mas é claro que tem de vez em quando uma abinha aberta aqui no navegador pra conferir algo. Não me proponho a escrever nada muito realista que gire em torno de um universo específico, algo que demandaria uma pesquisa maior se quisesse ser verossímil, então minhas pesquisas são mais assim mesmo, pra tirar dúvidas rápidas, ou me informar sobre o que for de um jeito bem tranquilo; ver umas imagens, sei lá; digitar ali “como fica sangue misturado com suco de laranja”, ou ver quando foi lançado o primeiro álbum dos BeeGees. Sobre compilar notas, o negócio é bagunçado mesmo; se tenho como anotar na hora, anoto do jeito mais bagunçado possível; se não, fica na cabeça mesmo e tento não esquecer até decidir escrever pra ver o que sai, normalmente não sou de esquecer muito as ideias, acho que isso é bom, mas também tem ideias que eu preferia que tivesse esquecido e não tivesse transformado seja no que for que acabou virando. Mas faz parte. O que acontece é que quando tenho uma ideia quase nunca sei na hora no que ela vai se transformar; se vai ser um texto curto desses que eu posto no Facebook, ou se vai ser algo de outro projeto que eu tô trabalhando, um romance, conto, ou só uma idiotice que vou falar pra alguém. É algo que eu vou descobrir só depois de deixar a ideia cozinhar por um tempo ou quando parar pra escrever mesmo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Sinceramente não tenho muitos problemas com isso, porque até hoje nunca trabalhei com prazos nem com nada que fosse “encomendado”. Não me sinto ansioso pra escrever nem pra publicar. Se paro pra escrever e não flui, mesmo tendo uma noção do que gostaria de escrever, paro e vou fazer outra coisa. Não me sinto mal por não ter insistido em algo que de certa forma poderia me angustiar. Se consigo render e me sentir satisfeito com o que produzi, fico feliz por isso; se não acontece, tento fazer outra coisa que também vá me dar algum prazer. Não acho que a criação de uma obra de arte deva ser penosa ou trabalhosa ao ponto de prejudicar a pessoa mentalmente ou fisicamente; o que não significa que não possa ser trabalhosa, no geral, só quero dizer que, mesmo sendo, tem que ter algum tipo de prazer envolvido. Ficar quebrando a cabeça e sofrendo pra escrever linhas em um livro não me parece a maneira mais interessante de escrever. Dá pra quebrar a cabeça, mas curtindo. Assim como muitos outros escritores e escritoras, pro último romance que escrevi, tive que fazer linha do tempo, fichas de personagens, arquivos separados pra consultar, etc., mas foi legal fazer essas coisas, tanto quanto escrever; e nos momentos em que fazer isso tava ficando chato, também parei e esperei pra voltar quando tivesse mais a fim de novo. Sobre o medo de não corresponder às expectativas, acho que nem sei quais são as expectativas, nem minhas sobre os leitores, nem dos leitores sobre o que eu escrevo. Como eu escrevo desse jeito bem não planejado, no geral, dá pra dizer que eu não tenho um objetivo específico que eu gostaria que fosse atingido, pelo menos não conscientemente. Sei lá. Curto quando leem e dizem algo que eu acho que fecha bem com o que eu penso naquele momento sobre o que eu escrevi, mas também curto quando dizem um negócio que eu nunca imaginei que pudesse ser dito sobre os meus textos. Acho que é aí que tá o lance né? Eu nem sei muito bem o que eu tô largando pras pessoas, como que eu vou cobrar que interpretem algo específico?
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Releio muito, muito mesmo. Não só pra revisar questões de estilo e de escrita mesmo, coisa mais formal, mas pra dar a “costura” que eu achar necessária pro texto. Com certeza, pra mim, reler é uma das principais coisas; escrevendo desse jeito, sem muita organização prévia, tento ter uma organização concomitante à escrita, e posterior. Como se eu fosse enfileirando um monte de coisa uma depois da outra, e volta e meia relendo todo o conjunto pra deixar elas mais redondas, conectadas, se essa for a ideia. Sabendo o que vai aparecer lá depois, numa releitura posso acrescentar algo no início que diga respeito a isso; lembrando de algo que tava mais pro início, posso retomar isso agora de uma maneira interessante, e assim vai. Pra perceber algumas incoerências também, reler é fundamental pra mim. Alguém que trabalha com a escrita toda praticamente em cima de um roteiro do que já sabe que vai fazer, imagino que não seja tão necessário assim; mas eu, que mal sei se o personagem no capítulo seguinte vai morrer ou encontrar o amor da vida, curto ficar relendo todo o texto pra ver se enxergo pra onde que ele vai agora. O meu livro Elogio dos Tratados sobre a Crítica dos Discursos não tem um enredo específico, uma trama central, por exemplo; é só uma sucessão de acontecimentos que de alguma forma se relacionam, e foi exatamente assim que a coisa surgiu, com esse tipo de processo. E eu mostro pra pessoas sim, mas não pra muitas; normalmente pra minha mãe e mais uns poucos amigos; mas isso sobre os projetos maiores; sobre os textos curtos do Facebook, normalmente não mostro pra ninguém antes de publicar.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Alguns anos atrás eu até que escrevia bastante à mão, andava com caderninhos e tal. Mas hoje em dia não. Acho que dá pra dizer que escrevo sempre no computador mesmo. Também não escrevo no celular, não consegui me habituar nem a anotar ideias no celular. Pra mim, o normal mesmo é sentar na minha cadeira na frente do meu computador, com ou sem uma musiquinha rolando, alguma coisa pra bebericar, e uns cigarrinhos pra fumar, e é isso.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Ah, isso aí é o mais impossível de responder. Acho que não tem nem como se atrever. Teria que enumerar as coisas que existem no mundo, e as coisas possíveis de acontecer no mundo, e dizer que é daí que vêm as ideias. Acho que o hábito pra se manter criativo é se prestar a transformar as ideias em coisas, seja no que for. Mas também tem épocas que a pilha simplesmente não tá sendo escrever, daí sei lá. Acho importante isso, de ter a disposição de criar algo em cima de uma ideia, mas às vezes também azar, dá pra guardar a ideia lá se quiser, e fazer qualquer outra coisa. Tudo depende muito também do que tá sendo escrito né? Não acho que dá pra aplicar sempre os mesmos “métodos” se se tem projetos diferentes. Às vezes quando tô fazendo várias coisas, saindo, lendo, consumindo artes variadas, estudando, vivenciando coisas, isso ajuda. Mas às vezes também ficar trancafiado sozinho ajuda de outra maneira. Não sei. Um romance também tem várias partes, vários momentos, personagens diferentes. Os textos são diferentes, as coisas são diferentes, e os métodos, os hábitos, pra escrever também podem ser dentro de uma mesma pessoa, de um mesmo período.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Aí é que tá, muita coisa mudou, mas mesmo dentro desse ano. Passei boa parte do ano terminando um romance, e agora tô escrevendo alguns contos. Não saberia dizer exatamente onde estão as diferenças, mas com certeza tem. E mesmo nos contos; alguns escrevi de dia, outros de noite; de uma vez, ou demorando mais; rindo, chorando; rápido, demorado; enfim. Talvez algo que tenha mudado mais foi o estabelecimento mais intenso da noção de que tudo que eu escrevo pode facilmente ser considerado uma porcaria, inclusive por mim mesmo; então, acho que não tem muito por que criar toda uma expectativa e uma mitologia em torno dos próprios textos, sendo que a recepção deles é sempre uma incógnita. Penso que hoje o lance é escrever, tendo uma intenção clara ou não, e largar pra quem quiser ver; se acharam isso ou aquilo, que bom por isso, que bom por aquilo, que pena por isso ou por aquilo, todas as interpretações são possíveis, não se tem controle de nada, vamo pro próximo texto. Não diria nada importante pra mim; as fases tão aí pra serem vividas e depois passarem, e tudo é importante de algum jeito, eu acho. Diria no máximo “continua aí fazendo esses negócio, pensando e tal, escrevendo, se cuida, não morre, maneira na auto sabotagem”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de ter uma banda meio emo meio shoegaze meio lo-fi meio punk rock meio noise meio pop; ser guitarrista e vocalista nessa banda; gostaria que a banda conseguisse ser bem ruim e ainda assim fazer sucesso e eu investir na carreira de músico e não na de escritor. E eu gostaria muito de ler um calhamaço de mil páginas escrito pelo Michel Houellebecq ou pela Veronica Stigger; entrar num universo gigante pensado por esses escritores seria maravilhoso. Gostaria muito também que meu amigo Rafael Iotti terminasse o bendito romance sem nome dele, pra que eu possa ler esse treco sensacional com início, meio e fim.