Rafael Costa é ator, diretor e psicanalista.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
O começo do dia depende muito do que acontecerá logo pela manhã, se é ensaio, atendimento, escrita de algo ou se é um despertar já atrasado para o primeiro compromisso. No entanto, um começo de dia ideal, que tento realizar na medida do possível, é o de realizar uma leitura ainda na cama, antes mesmo de levantar. Pode ser um texto literário, acadêmico ou as falas de uma peça que preciso estudar… este contato matinal com a ficção e as letras abrem o dia numa cadência menos invasiva que os telejornais matinais. Uma substituição regular, e também prazerosa, deste hábito é começar o dia terminando de assistir o filme no qual eu dormi assistindo na noite anterior. Nas páginas ou na tela despertar e já entrar numa ficção, pra mim, é uma maneira de prolongar os sonhos.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu não tenho um período determinado que me sinto mais produtivo ou criativo. Tanto o instante da escrita quanto o ritual para que ela aconteça, no meu caso, depende muito do que, e sobre o que, eu estou escrevendo ou trabalhando. Há temas e realidades que combinam com a pulsação vespertina, já outros fluem melhor na solidão das madrugas ou na melancolia do fim de tarde. Mas nada disso é escolhido por mim, ou a priori, o trabalho vai se definindo e em um dado momento você apreende que tal processo ocorre mais em um determinado período.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Sim e não. Escrever é um hábito diário, pois é a forma que organizo minhas ideias, argumentos e vislumbres ficcionais que me instigam o desejo. Neste sentido, todos os dias escrevo algo: de ficções virtuais nas redes sociais a insights teóricos que me ajudam a pensar a minha prática no teatro e na clínica. Por outro lado, eu não sou de me impor metas rígidas no processo de escrita, o contato com o campo de investigação e a necessidade de abordá-lo acaba por tornar a escrita regular, quando se trata da confecção de um texto já formatado (artigo, peça, crônica, dissertação, etc.), mas isso ocorre mais por implicação do que por estabelecimento de metas.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Essa talvez seja a etapa mais louca, ou menos metodológica. Eu acumulo uma grande quantidade de notas, materiais diretamente relacionados ao tema e outros aparentemente de campos distantes, mas que por algum motivo me atravessaram a fase de pesquisa, e começo a partir de então a buscar uma ideia inaugural, um tom, uma alegoria que me possibilite escrever sobre este assunto. Brinco que quando esta descoberta/criação ocorre é como se eu ouvisse a voz do texto, e é essa que me guiará no desenvolver das frases. É só após quase me afogar no mergulho que consigo criar um modo de nadar que me leva de volta a superfície e dita a cadência e cara que o texto terá.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Acho as travas um potente material relacional, pois a resistência em tratar e/ou escrever sobre determinados assuntos gera uma fuga que revela muito da minha relação com o tema investigado. É como se o devaneio, a procrastinação e os temores que surge em cada projeto se transformassem em material de escrita, no modo, como este assunto, ou esta realidade de criação, bate em mim.
A ansiedade, o medo sempre existe e eles são potentes quando se transformam em balizadores e autocrítica, o que devemos evitar é a imobilidade. Toda e qualquer ação, ou ficção, que gera movimento e impossibilite a imobilidade é bem-vinda no processo de escrita. Mesmo que depois do caminho trilhado a gente perceba que algumas construções não vingaram ou foram apenas processuais para abastecimento do próprio autor.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
A revisão é constante e diária. A cada novo contato com o texto uma revisão é feita, com ele concluído eu faço uma rigorosa revisão ou envio para que um profissional o faça. Sobre mostrar para outras pessoas, eu tive a sorte de fazer bons amigos de vida e produção e é com estes que estabeleço esta relação do mostrar o texto ainda não finalizado, às vezes travado numa ideia, para que o retorno afetuoso e sincero gere mais condições de trabalho. Lembro que na época do mestrado na Universidade Federal de Uberlândia criamos um grupo, intitulado SUPRA, para estudo de Psicanálise, supervisão clínica e troca de criações e escrita, seja elas em relação aos atendimentos, a cultura ou a produções artísticas, e foi com este grupo de amigos que estabeleci esta forte relação de mostrar o texto ainda desprotegido e estar aberto aos atravessamentos da recepção que ele promove.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
À mão escrevo só a ideia imediata, que na maioria das vezes sai esquematizada, quase um desenho. É no computador que consigo a velocidade do fluxo das ideias e onde as frases se formam.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Da subversão do óbvio, portanto após uma primeira pesquisa do que é o óbvio em cada campo; qual a lógica que organiza cada universo temático estudado; o que é rotineiro ali e o que seria inaugural. É via este modo de entrar em contato com o material que surgem minhas ideias. O material pode ser um assunto já estabelecido, um fenômeno, ou a própria cultura e a vida que nos salta aos olhos diariamente. Ler, assistir peças, filmes, exposições, observar o próprio cotidiano, tirar da rotina diária o que ali explode de ficcional, bem como estudar teoricamente o método psicanalítico e sua relação com a Arte é o que fomenta minha criação e me deixa em estado constante de análise criativa.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Interessante esta pergunta e difícil de responder neste momento em que cinco anos após a defesa da minha dissertação eu estou revisitando o material para lançar um livro. Pensando agora… eu não noto grandes diferenças, mas talvez uma radicalidade, uma segurança maior na aposta da ficcionalidade como veículo de expressão. Neste sentido uma maior naturalidade no usufruto da escrita como processo de existência artística e subjetivação pessoal.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Há um sonho que tive que virou um argumento para uma peça teatral que tenho muita vontade de escrevê-lo. Mas sinto que ele ainda está maturando e produzindo direções. Recentemente pensei na pesquisa-escrita da construção de uma ponte que dura quarenta anos e que ainda não está concluída, realidade política existente no interior de Goiás, e que atravessa minha infância e memória familiar. Uma vontade de escrever mentiras, possíveis verdades, que questionem a realidade como representação, um conto, uma crônica, uma poesia de duas palavras… (risos); enfim, projetos são sonhos que nos ajudam a significar a existência e não perdermos a vocação. Se de todos estes um vingar, ou se alguém acreditar na possibilidade de existência do que eu aqui disse já seria a concretização de um livro não lido por não existir.