Rafael Brunhara é professor de língua e literatura grega na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Em condições ideais (ou seja, quase nunca) e quando minhas manhãs não estão ocupadas com a docência na universidade, tento estabelecer uma rotina. Na primeira metade da manhã, preparo meu café e depois vou praticar algum exercício físico. Na segunda parte da manhã, sento-me diante do computador e escrevo até por volta do meio dia, uma hora. Nem sempre é uma escrita que se dá de contínuo: quase sempre a interrompo para retomar artigos, assentar ideias, rever bibliografia. É um pouco inevitável fazê-lo no meio acadêmico, sobretudo na área à qual pertenço, Estudos Clássicos, nos quais a tradição de estudos é multissecular e é sempre importante reconhecer o que escreveram antes de você sobre o assunto. Durante a escrita da minha tese de doutorado (que foi, até hoje, o momento em que mais tive que me submeter a uma prática regular e intensa de escrita) foi esta rotina a que me rendeu resultados mais satisfatórios.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sempre prefiro trabalhar de manhã. Em tudo: aulas, escrita, etc. É quando penso melhor. Depois de algumas horas de sono, a mente está limpa e as ideias mais organizadas. Mas por necessidades do ofício, não costumo pensar muito em uma hora em que escrevo “melhor”. A melhor hora para escrever é a hora da inspiração e/ou da necessidade. Essa hora geralmente coincide com as manhãs, pelos motivos que expus. Mas o silêncio e a serenidade da noite também me ajudam a articular meus pensamentos. Não tenho nenhum ritual para a preparação da escrita.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Quase sempre em períodos concentrados. Minha produção escrita não é artística, onde talvez fosse necessário um compromisso mais dedicado à escrita diária. Na academia, boa parte da escrita se dá em períodos, digamos, sazonais: um artigo aqui, um capítulo de livro ali, uma conferência. Por isso, acho que a escrita em períodos concentrados me parece ser favorecida, sempre em seguida a muita reflexão e leitura. Contudo, quando escrevi minha tese ou quando entro em algum projeto mais longo (um livro ou tradução) me imponho escrever todos os dias, com uma meta diária. Busco não exagerar no estabelecimento dessa meta diária, algo sempre difícil, mas importante para não ter que lidar com a frustração de não a ter cumprido.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Geralmente começo com o esboço de uma ideia no papel – algum aspecto que eu considere valer a pena estudar, algum ponto que eu tenha trabalhado antes e queira desenvolver mais minuciosamente – em seguida tento ler absolutamente tudo que encontro a respeito do tema que quero tratar, faço as anotações pertinentes e quando julgo que a ideia já está suficientemente amadurecida retorno ao esboço, vou aprimorando-o, incorporando pontos que me surgem das leituras, tornando-o um texto coeso. Mas na maioria das vezes as atividades de leitura, pesquisa e escrita ocorrem meio que sincronicamente. Leio, faço anotações, escrevo, retorno a elas para esclarecer pontos obscuros ou insights que surgem do processo de escrita e escrevo de novo. Aparentemente, desse processo um pouquinho caótico surge um texto.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Quando o meu projeto principal não rende o suficiente, busco trabalhar em outro ou vou fazer qualquer outra coisa não relacionada. Não tento lutar muito contra isso, com a folha em branco, pois quando retorno ao trabalho, meu pensamento também já mudou, e a abordagem que eu dou ao problema pode ser outra, consigo ver outros caminhos que eu não tinha sondado da primeira vez e assim resolver de modo simples aquilo que me bloqueava e parecia impossível transpor. Quanto ao medo de não corresponder às expectativas, lido sendo ciente de que nunca as corresponderei. Não tento mais atender às expectativas que têm acerca do meu trabalho (se é que elas existem) pois elas são de ordem diversa e muitas vezes imperscrutáveis. O que tento fazer é atender e ser fiel aos critérios que me imponho no início de um projeto.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Menos do que deveria, mais do que gostaria. Nunca tive a sensação que um texto meu estivesse pronto. Toda vez que volto a eles, sinto que há algo que eu poderia mudar, acrescentar, suprimir. Por isso, o tempo para revisão acaba se tornando muito escasso e está sempre à mercê dos prazos. Por esse mesmo motivo, não consigo mostrar previamente para muitas pessoas o que eu escrevo. Como autor, quando já muito familiarizado com um texto, muitas coisas me escapam mesmo em releituras. Ideal mesmo seria aquela exigência inacreditável que Horácio faz em sua Arte Poética: guardar um texto por nove anos antes de publicá-lo. Assim, quando o relermos, conseguiríamos inferir objetivamente a sua qualidade. Eu gostaria muito de ter esse tempo, embora suspeite que, se o tivesse de fato, jamais publicaria nada. Por esse motivo, gostaria sim que mais pessoas lessem o que eu escrevo. Mas também não sei se os outros têm tanto tempo disponível assim.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Faço rascunhos em qualquer lugar, no que estiver mais à mão: no computador, em cadernos, papéis avulsos, no bloco de notas do celular. Mas a parte da elaboração do texto faço diretamente no computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Sou um pesquisador de Literaturas Clássicas. Os textos sobre os quais eu falo têm uma longa tradição histórica e crítica. Tento conhecer ao máximo esta tradição, não só por deferência ao trabalho de todos os que vieram antes ou que concomitantemente estão trabalhando em um mesmo objeto que eu, mas também por ser um exercício de humildade intelectual, pois nos permite ver que muitas ideias críticas que a princípio achávamos extremamente originais também têm um histórico, já podem ter sido propostas por alguém ou então circulam embrionariamente, à espera de alguém que lhes dê materialização e desenvolvimento ou de uma época que possa apreendê-la melhor. Então a maioria das minhas ideias vêm das minhas leituras, que trago à minha reflexão e articulo com o momento presente.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Quando comparo minha escrita de hoje aos meus primeiros trabalhos, acho que hoje escrevo com mais objetividade e menos empolação. Articulo com mais clareza o meu posicionamento em face da tradição crítica que o meu objeto de estudo oferece.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Sempre tive fascínio em estudar gêneros poéticos ou obras obscuras, desfavorecidos pela crítica ou pela história. Os poetas elegíacos gregos arcaicos, que são o meu tema principal de pesquisa, eram bem menos estudados do que são hoje em dia, e me lembro que o que me interessou neles foi justamente tentar entender porque tão pouca gente se interessava por eles. Hoje venho me interessando por poemas épicos da Antiguidade tardia, sobretudo pela “Continuação de Homero”, composta por certo Quinto de Esmirna, de quem não temos nenhuma informação segura, nem mesmo o nome. Só sabemos que em algum momento da história ele escreveu essa obra, que tinha como objetivo narrar o que acontecia entre a Ilíada e a Odisseia. Eu gostaria muito de traduzir e falar a respeito desse poema um dia, mas ainda preciso amadurecer minhas reflexões sobre ele.