Rafael Bassi é historiador, professor e escritor, autor de “O homem que gostava dos russos & outros contos”.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não, não tenho rotinas além do trabalho. Dou aulas pela manhã, por isso acordo sempre apressado, não querendo levantar, fazendo as obrigações higiênicas necessárias e tomando um banho para despertar. Gostaria de ser um autor que vivesse em um lugar no qual eu pudesse me sustentar de literatura e, portanto, poderia responder que eu acordo e leio o jornal, e tomo o café, e respondo as mensagens, e vejo quais serão as leituras do dia… quem sabe um dia isso aconteça… oxalá isso aconteça!
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu estou sempre escrevendo, se não no papel ou no computador, pelo menos mentalmente. Como eu ando trabalhando muito (tenho que reduzir, tenho que reduzir!), não há espaço na agenda para manter um hábito de escrita constante. O que de fato acontece é que vou preparando as histórias na cabeça, rabiscando em alguns cadernos que levo sempre comigo, para que uma hora eu possa sentar e escrever.
Quando o momento da escrita chega, eu gosto de estar em algum lugar com coisas para se ver. Pode ser em um café ou na biblioteca de casa, pois eu gosto de ver coisas o tempo todo. Quando estou em casa geralmente eu fico levantando o tempo todo, folheando algum livro. Eu não consigo escrever 10, 15 ou mais páginas de maneira continua… Escrevo, paro, sento na poltrona, folheio algum livro, escrevo mais um pouco, e assim vai.
Se eu pudesse, escreveria só à noite, só com chuva e um frio outonal gostoso, que me fizesse ter de ficar agasalhado. Para mim, o calor e o dia, com a rua e seus barulhos terríveis dos carros e dos caminhões de gás, são insuportáveis para escrever.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Roubando de Kafka, mas sem querer ser presunçoso, tudo o que não é literatura me aborrece. Diante disso, penso em literatura o máximo que posso, mesmo sem ter uma meta específica. Gostaria (de novo) de poder viver de literatura e escrever com metas diárias como, por exemplo, Salman Rushdie, que tem o melhor dos mundos, penso eu: vive em Nova York, vive da escrita, escreve umas seis horas por dia e no resto do tempo é feliz caminhando pela cidade. Sonhos, sonhos literários…
Portanto, remetendo-me à resposta anterior, não escrevo formalmente todos os dias, mas estou sempre pensando nas histórias. Quando sento para escrever, no entanto, gosto de me dedicar aquele texto, de forma que espero terminá-lo, porque ele já estava quase pronto na cabeça, como ideia, bastando dar a forma justa a ele.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Na realidade, o pior é ter a ideia. As ideias brotam a todo instante, mas, óbvio, nem todas valem a pena. Quando uma delas vale, vou anotando aqui, ali, acolá… guardo na memória algumas por horas, dias, semanas ou até meses (dar aulas tantos anos me ajudou a desenvolver uma boa memória).
De repente, sento e começo a escrever. As pesquisas sobre o tema vou fazendo ao mesmo tempo em que vou escrevendo, naqueles momentos de pausa que citei ali acima. Gosto de pensar sobre o contexto histórico (minha formação primeira é em História), porque acho que isso dá um quê de verossimilhança que para mim é fundamental. Eu não gosto muito quando leio algo que não me parece condizente com a verossimilhança, porque me soa estranho, sinto que falta algo; acho que os erros históricos podem ser graves erros de verossimilhança.
(E eu não estou dizendo que literatura fantástica está descartada da minha vida, muito pelo contrário, é possível ser extremamente verossímil falando sobre vomitar coelhos, como em Cortázar.)
Não quero dizer com isso, no entando, que não seja possível brincar com o jogo das palavras. Na minha novela Um pedaço breve da vida de Francisco B., que está em fase de revisão, faço um jogo com as datas em que elas, e as demais informações contextuais são, parafraseando Umberto Eco, como um porco, onde não se joga nada fora… tudo tem uma relação, talvez fictícia, mas verossímil.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
As travas que há para a escrita são basicamente as da vida diária, na qual eu tenho que ser brasileiro e, portanto, ficar esperto com medo de assaltante, além de trabalhar muito (como já citei inúmeras vezes – está na hora de parar com essa implicância, Bassi!) para quitar os boletos mensais. Se não fossem essas travas, as coisas fluiriam melhor, acho.
Sobre as expectativas, as minhas maiores são comigo mesmo. Eu sempre quero escrever um livro que conte uma boa história, que tenha um sentido. Não sou um autor que goste demais de experimentalismos linguísticos, portanto, para mim, havendo uma boa história para contar, tento fazê-la.
Não penso no que vão falar as pessoas, na expectativa das pessoas. O que não me impede de defender que não há como haver literatura sem que haja leitores. Eu os quero aos montes, aos milhões. Não quero que os meus textos sejam apenas para me expressar, mas sim para eternizar a suposta vida que há por trás de alguma personagem. Para mim, todas as personagens nada mais são do que o resumo da própria vida, da minha compreensão sobre a vida. Dito isto, há histórias que eu não quero que morram, por isso as escrevo – é algo um tanto clássico, ainda que eu tenha invertido a lógica clássica e medieval e raramente relate sobre figuras consideradas de “alto poder”; meus personagens são gente simples, gente que vive no dia a dia, em sua maioria; quando trato de alguém ligado às estruturas de poder, como por exemplo o conto sobre a princesa bizantina Anna Comnena, que está no meu primeiro livro, relato-a de maneira humana, não como se ela fosse intocável, inatingível.
E acho que os leitores devem ler essas histórias, porque senão fosse assim eu escreveria em um papel e colocaria na gaveta. Entretanto, eu vivo atrás dos editores.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso bastante. Mas sei, também, que chega uma hora em que, por mais que eu leia o texto, eu não tenho mais condições de ver nem que há uma vírgula no meio de uma palavra – exagerando um pouco – e, justamente por isso, não tenho mais condições de dizer que o texto está revisado.
Por isso, gosto de entregar o texto à minha esposa Bárbara, que é uma leitora extremamente exigente, barroca, eu diria, porque ela às vezes fica quase 20 minutos em apenas uma frase, achando que há algo que não está bom e que precisa ser mudado. Outro leitor (ainda que ele tenha tanta coisa para fazer e por isso não quero sobrecarregá-lo) é meu amigo Felipe Karasek, que sempre diz que, com meus textos, ele quer ser o editor de Carver: ele vai cortando coisas, cortando coisas, e vai deixando o texto limpo. Algumas vezes, discordo da leitura de ambos e sigo meu próprio caminho, mas, comumente, as opiniões deles são extremamente fundamentais para mim. Meu sonho é que um dia eu possa contratá-los como revisores profissionais do meu texto, a altíssimos salários, mas com a exigência que eles se mantenham do jeito que são hoje, leais e verdadeiros em seus comentários críticos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Minha relação com a tecnologia é ótima, mas não sei se é recíproco. Eu não tenho problemas com ela, ainda que não saiba lidar perfeitamente com os aparatos tecnológicos todos.
Eu escrevo em qualquer lugar. Às vezes o que tenho a mão é um dos meus caderninhos, então é neles mesmo que saí o texto; às vezes eu já estou na frente do computador, como é o caso das respostas desta entrevista.
Eu gosto do computador porque consigo digitar com uma certa rapidez, que até me surpreende, o que faz com que o fluxo das ideias, das descrições, do texto em si não se perca. Escrever nos meus cadernos me dá um quê de nostalgia de uma época em que nem vivi. Mas como sou historiador e apaixonado pelo que não vivi, de vez em quando gosto de simbolismos como, por exemplo, sentar à mesa de um café e escrever, à mão, pensando cada frase, cada imagem descrita, com uma atenção que na maior parte das vezes, no computador, não consigo despender.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Minhas ideias vêm das coisas que eu vejo, escuto e leio. Por isso, gosto de ficar ouvindo as conversas alheias (à lá Dalton Trevisan), ver as cenas que se passam na minha frente, ou, então, do nada, abrir um livro ao léu, ver suas referências.
Eu acho que ler me faz pensar coisas para escrever. Uma parte considerável dos meus textos tenta recriar passagens da vida de outras pessoas, como, por exemplo, “A decisão de Cortázar”, que é uma tentativa de criar o que levou Cortázar a decidir-se por algo muito importante em sua vida (sem spoilers, claro!). Esse texto surgiu quando eu estava em uma livraria em Buenos Aires, lendo uma biografia dele, e, em determinado momento, me veio a ideia… tive que parar o que fazia e, como escrevi acima, ir a um café e começar o texto que deu origem ao conto.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Essa pergunta é muito importante para mim, pois, como acontece com quase todos que cursam as aulas do Professor Assis Brasil (penso eu), passei a acreditar bastante na delicadeza de um estudo mais aprofundado das técnicas, da teoria para a análise e escrita de um texto. O que quero dizer com isso é que antes (e o meu primeiro livro foi todo escrito assim), eu achava que bastava ser um grande leitor e gostar de escrever que era possível desenvolver um texto. Acho que consigo, hoje, aliar essa ideia, que ainda existe em mim, com o respeito às técnicas de escrita e o próprio pensar sobre o texto. Antes, era algo como sentir, agora, é algo como sentir e pensar a construção do texto literário. Eu quero continuar orbitando entre os dois, como é o meu desejo nesse momento. Um pouco do justo-meio aristotélico, acho.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu gosto de guardar tudo o que eu já imaginei em forma de livro. Assim, fica ali, numa gaveta da memória, para quando eu puder escrever. Tenho alguns planos que estão sendo gestados há anos: um livro de não ficção, sobre uma princesa bizantina (a Anna Comnena, que citei acima, e que está em um dos contos do meu livro), que já tem até título e umas tantas quantas páginas, “Anna, a princesa que lia Aristóteles”; tenho um plano de escrever um livro de ensaios (eu adoro “ensaios”, me tira o peso da “tese” e não é simplista como um livro de “opiniões”) sobre alguns aspectos do nosso tempo, relacionando literatura e percepção de passagem temporal; outro de não ficção, no qual desejo analisar os sambas-enredos da Mangueira, uma das minhas paixões mais verdadeiras. Há um estudo sobre literatura alemã pré-II Guerra Mundial, que pretendo começar muito em breve. Projetos de literatura, tenho coisas em mente, mas, como disse, as histórias vão se construindo aos poucos na cabeça. Tenho a novela citada acima em fase de revisão, tenho um livro de contos para apresentar no PPG de Letras da PUCRS… ou seja, uma hora há de sair um romance, uma novela, um outro livro de contos, e por aí vai!
Tudo o que há já é demais e eu gostaria de ler tanta coisa, para tão pouco tempo na vida. Então me satisfaço com os que já existem e que estão nesta fila interminável de livros-para-ler-quando-der-e-que-eu-espero-que-seja-em-breve (na nomenclatura de Calvino!).