Rafael Balseiro Zin é sociólogo e pesquisador do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política da PUC-SP.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meus dias começam, geralmente, bastante corridos. Viver em São Paulo, por vezes, faz com que tenhamos que percorrer grandes distâncias para honrar todo e qualquer compromisso e cumprir as agendas nem sempre é tarefa fácil. Não me considero um exemplo de pessoa organizada, mas procuro manter certa rotina diária, não necessariamente matinal, que tem por base a leitura de jornais, estudos científicos de áreas diversas e, principalmente, de livros de referência que dialogam com as pesquisas que desenvolvo em âmbito acadêmico.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sinto que trabalho melhor, ou então, que meu trabalho rende mais, a partir do meio-dia. Entre matutinos radicais e notívagos convictos, me situo próximo aos vespertinos moderados. Quanto ao meu processo de preparação para a escrita, o vejo mais como um processo do que como um ritual. A costura das palavras tem seus desafios e organizar as ideias em uma folha de papel em branco não é algo que acontece por acaso, ao contrário do que muitos imaginam. É preciso partir de referências, se basear em leituras anteriores e despender certa dose de esforço e dedicação. Não obstante, se estamos falando da escrita enquanto processo criativo, significa que aqueles que escrevem procuram, em alguma medida, dar forma àquilo que ainda não tem forma definida. Nesse sentido, a escrita nada mais é do que uma maneira de emprestarmos sentido ao mundo e de atribuirmos algum significado à realidade circundante.
Certa vez, durante a realização de um curso de dramaturgia do qual participei como ouvinte, oferecido pela Companhia Estável de Teatro, em São Paulo, o professor Maurício Hiroshi teceu um comentário que me despertou bastante a atenção. Ao fazer uma analogia dizendo que o nosso cérebro se comporta como um músculo, para explicar que quanto mais o exercitamos, mais desenvolvido ele fica, o professor afirmou que, da mesma forma que aquecemos os músculos antes de iniciar uma determinada prática esportiva, precisamos aquecer o cérebro antes de iniciar a escrita. Assim, a forma mais eficaz de iniciarmos um texto, segundo ele, é lermos outros tantos antes de escrever, para ativar os nossos processos sinápticos. Foi então que percebi que, intuitivamente ou não, eu já me comportava dessa maneira.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Tenho o hábito de escrever diariamente, porém, o tipo e a quantidade da escrita variam de acordo com cada situação. As plataformas que comportam textos, hoje, são muitas. Dos tradicionais livros publicados em formato físico às mídias digitais, cada espaço de manifestação discursiva sugere uma determinada configuração, de acordo com o público e o assunto a serem tratados. Nas redes sociais, por exemplo, costumo manifestar opiniões políticas, divulgar novidades ligadas ao universo literário e anunciar as minhas descobertas e agendas de pesquisa. Quando se trata da elaboração de um texto de cunho científico, é necessário tempo para reflexão, pausas para a realização de novas leituras e muita atenção com a estrutura e o sentido que procuro dar às palavras. Seja como for, não tenho o hábito de estabelecer médias diárias, deixando a escrita fluir livremente.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Posso dizer que meu processo de escrita é sequencial, embora eu não escreva de modo linear. E digo que o meu processo de escrita é sequencial, pois sigo à risca a cartilha do “começo, meio e fim”. Costumo estruturar o texto no papel antes de iniciar algo novo e escrevo quase sempre de modo lento e gradual. E é justamente essa estruturação do texto no papel que me ajuda a organizar de melhor maneira as ideias que pretendo desenvolver, além dela me servir como fio condutor para que os argumentos não se percam em meio às divagações típicas do processo criativo. Com relação à última pergunta, penso que pesquisa e escrita caminham juntas, ainda mais quando se trata da escrita acadêmica. É muito comum eu escrever um texto ao mesmo tempo que consulto uma fonte, fazendo com que pesquisa e escrita se transformem em uma mesma atividade.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
As travas da escrita sempre me acompanharam e confesso que, a cada dia, elas se tornam mais e mais frequentes. Faço parte da última geração de seres humanos que nasceu em um mundo analógico, mas que foi inevitavelmente tragada pelo universo digital. Nasci em 1985 e o uso do computador, como realidade inescapável, passou a fazer parte da minha vida somente aos 12 anos de idade. Desde então, o que vimos acontecer foi o surgimento de diversas novas tecnologias de informação e de comunicação que, a despeito da promessa ilusória de facilitar nossas rotinas e de aumentar a nossa capacidade de interação social, acabaram nos aprisionando. Facebook, WhatsApp, Instagram, Twitter, YouTube. Todas essas ferramentas concorrem o tempo todo para nos distrair.
Além disso, costumo dizer que o processo de escrita, dependendo do tipo, gera ansiedade em quem escreve. Em se tratando da elaboração de textos acadêmicos, seara em que atuo, a ansiedade gerada é ainda maior, uma vez que tais escritos se baseiam em formulações teórico-conceituais e sua apreciação e validação serem feitas, comumente, na modalidade de revisão cega por pares, ou seja, quando tanto pareceristas quanto autores se desconhecem mutuamente, oferecendo maior grau de imparcialidade na hora da avaliação, mas também maior grau de preocupação por parte do autor, no momento da escrita.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Sempre que inicio a redação de um novo texto, e durante todo o processo de escrita, leio e releio os originais inúmeras vezes, até me dar por satisfeito. Nunca cheguei a contar a quantidade de vezes que um mesmo texto é revisado, mas garanto que são muitas. Também não tenho o costume de contratar serviços profissionais de revisão, embora eu considere essa etapa fundamental. Quanto às leituras feitas por amigos ou por parceiros de escrita, dessa ajuda eu não abro mão. É sempre bom poder contar com olhares outros que, além de não estarem viciados pelas leituras repetitivas que fazemos dos nossos próprios textos, nos ajudam a enxergar mais longe.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Como disse anteriormente, pertenço à última geração de seres humanos que nasceu em um mundo analógico, mas que foi inevitavelmente abduzida pelo universo digital. Apesar disso, desde que o uso de computadores se tornou rotina em nossas vidas, escrevo meus textos utilizando somente essa ferramenta. Máquinas de escrever sempre me chamaram a atenção, por certa nostalgia ou então pelo seu charme, mas a praticidade de se editar um texto no computador é inegável. À mão, mesmo, costumo escrever apenas pequenos bilhetes para me lembrar de algo; frases soltas de grandes nomes da literatura, que me inspiram no dia a dia; ou tarefas que preciso cumprir, dispostas em listas que nunca terminam.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Assim como o conhecimento produzido pelo conjunto da humanidade ao longo dos tempos acontece de forma acumulada, penso que as ideias também não surgem do nada. Em outras palavras, não acredito que haja entre nós, humanos, a noção romanceada de “genialidade”, mas inspiração com base em referências e materialização dos textos com base no trabalho. Como sociólogo e pesquisador, minhas ideias têm como fonte de inspiração a observação da realidade circundante, o estudo da história, dos processos políticos, mas, sobretudo, a busca por um certo ideal de igualdade e de liberdade. Nesse sentido, posso dizer que tudo aquilo que penso e escrevo tem como objetivo final refletir acerca desses valores e de como eles operam ou se manifestam na vida cotidiana.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Penso que a escrita é, de fato, um processo. E por se tratar de um processo, ela permanece em constante transformação. Mas a escrita também é ritmo. Ritmo e movimento. Analisando as transformações que meu processo de escrita sofreu nos últimos anos, creio que as mudanças têm a ver justamente com essa ideia inicial. Sempre escrevi meus textos preocupado com a fluência e a compreensão da leitura por parte de quem os lê. Assim, a meu ver, o texto precisa ser objetivo, limpo e conter estritamente o essencial. Respondendo à última questão, se eu pudesse voltar à escrita de meus textos iniciais, diria a mim mesmo o seguinte: “não seja prolixo, Rafael, pois o menos é mais; use menos vírgulas, por favor; não siga à risca os ditames enclausurantes da norma culta; e, principalmente, jamais utilize reticências”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho tantos projetos em mente quanto a minha capacidade de sonhar me permite. Como o grosso da minha produção textual se dá em âmbito acadêmico, é muito comum que cada projeto de escrita aconteça em meio a uma determinada fase da formação. Nesse estágio da vida, estou desenvolvendo a minha tese de doutoramento em Ciências Sociais, cujo objetivo é compreender como se deu a participação das escritoras brasileiras oitocentistas no processo de abolição da escravatura no Brasil, com especial atenção ao legado das romancistas Maria Firmina dos Reis e Julia Lopes de Almeida. Terminando o doutorado, pretendo continuar meus estudos seguindo essa mesma linha de investigação, mas no contexto internacional, coletando e comparando escritos abolicionistas diversos para melhor compreender como essas ideias circulavam nos territórios que vivenciaram processos de escravização negra, bem como essas mesmas ideias impactaram o imaginário daquela gente. Quanto à última pergunta, sobre um livro que eu gostaria de ler, mas que ainda não existe, talvez seja um daqueles que ainda quero escrever, mas que também não sei ao certo qual é.