Rafael Baldam é quadrinista, poeta, editor da Revista Rasante e mestrando em arquitetura e urbanismo na USP.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Consigo manter uma rotina matinal, daquelas dignas de pessoas centradas, por dois ou três dias, no máximo. Planejo a manhã seguinte com carinho: acordar as 7:00, meditar, banho, café da manhã saudável e as 9:00 já estou a postos para iniciar o dia. Consigo. Dias assim são bons dias. A sensação de estruturação do tempo iniciada junto com a manhã, de alguma forma, entra em consonância comigo, com o que tenho que fazer naquele dia. Mas isso não dura. Por algum motivo, que talvez minha analista possa responder, eu abandono essa estrutura depois de poucos dias. Nesses dias desestruturados tendo a acordar tarde, tomar banho, vou direto para o almoço, espremo alguns dos meus afazeres no período da tarde, outros lanço para o dia seguinte. A sensação de trabalho cumprido não existe nesses casos. Acontece que minha situação atual (como aluno de mestrado em arquitetura e urbanismo) permite que eu construa minha estrutura diária, dia-a-dia, sem repercussões pra ninguém a não ser eu. Para mim, isso é uma tarefa diária, tanto quanto cumprir minhas obrigações da pós-graduação ou dos projetos pessoais. Meu dia, então, começa com o trabalho de estruturar meu dia. Há uma exceção, no entanto: dias em que acordo por volta das 7:00 e corro. Corro como um tipo de esporte-meditação. Nesses dias a estruturação do meu tempo, dos meus afazeres no dia tem um peso menor, como se tivessem saído do meu corpo junto com o suor. Normalmente, dias como esse acontecem duas vezes por semana, no máximo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Atualmente tenho três atividades que envolvem escrita e que, pela natureza diversa delas, pedem abordagens diferentes para sua produção. Para as atividades de escrita da pós-graduação, como produção de artigos, monografias, dissertação e relatórios, sinto que preciso que sejam feitas em horário comercial. Acho que é uma forma de eu me convencer de que esse é meu trabalho. Reservo todas as minhas tardes para o mestrado, apesar de não ser meu horário preferível. Tem muito sono na tarde. O trabalho de escrita para o mestrado tem que ser cumprido, é uma obrigação, então não me dou o luxo de escolher o melhor horário para fazê-lo: faço naquele período e pronto (ou tento). Meu ritual de escrita para a pós é um processo de quebra de uma barreira. É muito difícil começar a escrever. Sentar em frente ao computador e abrir o arquivo de texto para continuar a pesquisa demanda uma energia incrível. Cada pequeno passo desse processo (pegar um copo de água, pegar as anotações e deixar ao lado, encontrar o arquivo certo) é como o lançamento de um foguete: a maioria do combustível é queimada para sair da estratosfera, para sair do chão, depois que as primeiras palavras são colocadas na tela há uma certa fruição na atividade. Fora do campo acadêmico, escrevo poesias, crônicas e quadrinhos (que também desenho). Essas atividades transcorrem em maior sincronia com meus sentimentos e percepções. Ou seja, elas não tem horário para acontecer, nem têm ritual para produção; têm um tempo que consigo respeitar mais, sem forçar. Quando tenho uma ideia rascunhada e preciso de um tempo de concentração maior para desenvolvê-la, costumo dar preferência para a noite. Gosto do silêncio. Mais ainda, gosto da ideia de estar acordado enquanto outros dormem.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Na academia, apesar das recomendações para escrever um pouco todos os dias, a escrita acaba por acontecer sob demanda. Datas próximas de entregas de relatórios, submissão de artigos por exemplo, são períodos de intenso trabalho (sob stress, claro). Ao escrever a dissertação, sendo ela um produto mais extenso e que demanda maior cuidado, tento organizar meu cronograma para que eu escreva se não todo dia um pouco, pelo menos a cada dois dias. Quanto às metas diárias, eu as fixo não em quantidade de páginas ou tempo dedicado, mas em tópicos. “Hoje tenho que escrever sobre o tópico A e B”. Se percebo que não será possível completar estes temas em um dia, faço subdivisões, assim tenho maiores chances de alcançar a sensação de trabalho cumprido. Já com os poemas, crônicas e quadrinhos, o processo é mais livre. Tenho um horário no dia reservado para passar as ideias a limpo e organizá-las, mas estou o tempo todo anotando coisas em um caderninho de bolso. Para essas produções não há prazo, então deixo elas tomarem o tempo que precisarem para se cumprirem. Mas têm que se cumprir.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Para a escrita acadêmica preciso ler muito para conseguir escrever. Acredito que seja algo como uma necessidade de compreender o assunto a fundo para poder começar a escrever sobre ele. Leio e tomo notas, o que faz o processo de pesquisa ser bastante lento. Quando passo para a escrita tento desenhar uma estrutura de tópicos que conduza uma linha de pensamento coerente, costurando os temas e autores que entrei em contato. Essa estrutura serve como guia. Acredito que seja perto do impossível pensar algo e exprimir aquilo com 100% de eficácia. Assim, a estrutura que desenho me baliza, mas o resultado escrito daquilo que estive pensando assume uma forma própria que só vou descobrindo à medida que a escrita avança. Há bastante dificuldade em iniciar a escrita, mesmo após intensa pesquisa. Acontece que a partir do momento em que a primeira palavra é colocada na tela, ou o primeiro traço é feito, surge a possibilidade daquele trabalho ser terrível. A criação carrega com ela o fracasso. Criar algo é aprender a lidar com essa possibilidade do fracasso que está sempre ao lado. Na academia isso pode ser problemático, já que serão julgados os embasamento das suas ideias, que em última instância são os embasamento da sua própria subjetividade. Para a poesia, crônicas e quadrinhos, procuro estar sempre atento a minha volta. Filmes, músicas, pessoas na rua, a sombra das coisas, a luz refletida, um som, uma memória, qualquer coisa pode motivar uma história, uma reflexão. Quando capto um sinal, rascunho em um caderninho de bolso. Tenho uma necessidade de escrever coisas para não esquecê-las. Não pelo registro, mas pelo ato próprio de escrever à mão. Enquanto escrevo uma anotação concretizo numa ação motora e mental a ideia que não quero esquecer. Então, anoto para não precisar ver depois. Essas produções mais lúdicas têm como matéria prima minha percepção do mundo, não partem de pesquisa. Nesse sentido são como exercícios de olhar para dentro e para fora.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Olhar para a página em branco é quase sempre um teste: as vezes ela ganha, e te faz questionar se você deveria mesmo estar escrevendo naquele momento; ou você ganha, e desafia a página escrevendo qualquer coisa. Percebi ao longo do tempo que o momento mais difícil da escrita é o vazio. A partir do momento que há algo na página os movimentos começam a acontecer, é possível manusear os significados até que estejam próximos do que se pretende. Mas o momento que antecede o conteúdo é um momento imóvel. Travo as vezes por não ter pesquisado suficientemente o assunto, por mera preguiça de encarar um tópico complexo. Escrever é quase como entrar numa mata fechada, empurrar os galhos da frente, firmar os pés no chão enquanto caminha, desviar das armadilhas. Em projetos longos, como uma dissertação de mestrado, não consigo visualizar o todo de forma precisa, apenas como uma silhueta. Preciso quebrar o trabalho em porções menores e completar uma a uma, enquanto articulo estas partes de modo que formem um todo coerente. Descobri ser muito útil levar atividades de criação como poesia, crônica e quadrinhos em conjunto à escrita acadêmica. De alguma forma aquelas mostram a esta que a produção escrita pode acontecer de formas diferentes, de modo que as tais travas de criação acabam por se mostrarem limitações na forma de encarar a atividade da escrita. Uma ajuda a outra. Veja a escrita de modo limitado e suas ferramentas para fazê-la serão poucas, acumula-se travas; veja-a de modo ampliado, permitindo abordagens diversas e suas ferramentas também se ampliarão.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
De novo, o processo de produção de trabalhos acadêmicos segue uma dinâmica bem diferente daqueles artísticos. O texto acadêmico sai com tanta dificuldade que ao seu fim, aquilo que não quero fazer é revisá-lo. Por vezes parece que revisá-lo é confirmar a má qualidade do trabalho. Com certeza isso são minhas inseguranças falando. No entanto reviso, mas não muito: uma ou duas vezes. Entendo que é uma etapa importante do trabalho, e quando o faço consigo melhorar o texto. Apesar disso, o processo me irrita. Sinto um impulso em seguir para a frente, como um gosto maior em criar coisas novas e erradas, malacabadas, do que as mesmas coisas certas. Lapidação não é meu forte. Já nos trabalhos artísticos gosto de ler e reler o que escrevi, alterar uma palavra e ver no que dá, inverter a ordem. Sinto que posso brincar mais nesses casos, o peso do certo e errado se dissolve, não ligo de fazer do meu jeito. Procuro mostrar o que faço para algumas pessoas próximas, que sei que tem algo a contribuir. Ao ouvir o que pensam sobre o que fiz, levo um conselho dado pela Rebecca Sugar: se colocar meu trabalho na minha frente, como um escudo, quando uma crítica é desferida contra ele, como bala de revolver, ela atravessará meu frágil trabalho e me atingirá em cheio; então, coloco meu trabalho ao meu lado, assim a crítica não me atinge, atinge meu trabalho, que sou capaz de alterar com muito mais facilidade do que minha subjetividade ferida. Para qualquer tipo de trabalho acredito que haja um limite de tempo de produção, que não é o “deadline” da entrega, é um limite de tempo intrínseco a qualquer trabalho, e cada um tem o seu. Durante esse período é possível produzir, revisar, alterar até que se atinja uma forma próxima do ideal. A partir desse limite, qualquer alteração feita ou não surte maior efeito, ou desestabiliza completamente o trabalho. Existe um momento em que o texto tem que sair da nossa mão, esteja ele “pronto” ou não.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Nos trabalhos acadêmicos mantenho a escrita à mão apenas para anotações e rascunhos curtos. Como vejo o texto acadêmico como algo mais pesado e que exige muito trabalho, prefiro fazê-lo majoritariamente no computador pela agilidade de edição. No entanto me proponho a pelo menos tomar notas à mão enquanto leio. Isso permite que eu estude em outros lugares que não à frente do computador. Para as poesias e crônicas gosto de fazer quase todo o processo à mão. Nesse caso a relação com a palavra é mais íntima, requer mais proximidade com a ação de escrever. Também há o fato do tempo de escrita. Escrever à mão demora, e a poesia precisa de demora. Acredito que a agilidade que o computador permite faz reduzir o tempo de contemplação do trabalho que está sendo executado. Enquanto escrevo à mão, observo o que já escrevi, vejo as palavras ganhando forma numa velocidade que é a minha, não da máquina. Sinto isso como algo necessário para uma escrita sensível. Depois de ter concluído o texto à mão, passo para o computador, o que é um passo importante, já que alguns trabalhos que faço são de poesia concreta e dependem bastante de uma precisão gráfica, da escolha de uma fonte específica, etc. Ao passar para a máquina sempre acontece uma ou outra revisão. Para os quadrinhos o processo é híbrido. Rascunho o texto e os desenhos à mão. Rascunhar à mão é importante em qualquer contexto, acredito. É uma forma de encurtar o caminho entre o pensamento e o objeto final. Acredito que no momento em que a ideia existe na mente e tem que encontrar seu caminho para fora, é preciso escolher o caminho mais rápido, para mim esse caminho é a caneta e o papel. Muita tecnologia nesse período acaba por funcionar como resistência que a ideia deve atravessar. O rascunho de quadrinhos serve como um mapa, não me demoro neles, apenas faço para ter uma ideia geral de quantos quadros preciso, formato, começo meio e fim, não desenho em detalhes. Logo após, passo para o computador, onde desenho em uma mesa digitalizadora e utilizo o Photoshop. Desenhar no computador gera uma agilidade impossível manualmente. Os resultados que consigo são geralmente bons (para os meus padrões, embora eu ache que sempre posso melhorar). No entanto, desenhar a mão traz uma sensação que o computador não consegue replicar. Não sei o que é. Acredito que tenha a ver com o caminho que a ideia faz da mente ao papel. Ao ver o desenho finalizado a sua frente após o trabalho manual é como se ele estivesse mais próximo daquilo que estava na sua mente. Ao ver o desenho finalizado na tela do computador é como se ele estive um pouco mais distante daquilo imaginado. Como se, de alguma forma, ao colocar a ferramenta-computador entre a mente e o produto, a própria ferramenta afasta o resultado daquilo que antes estava na mente. Como seria bom filmar nossos sonhos…
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Tento, através das minhas produções mais sensíveis, como os poemas, crônicas e quadrinhos, explorar uma tese: que existem histórias nos menores detalhes. Mais ainda, de que os pequenos detalhes são grávidos de significados. Lugares esquecidos, insignificantes, pessoas quaisquer, ideias fugidias na mente. Identificar e expor esses pequenos momentos depende de uma pedagogia do olhar. Não depende dos objetos, das situações, pessoas, depende de quem olha. Então, o esforço de criar é para mim um esforço de saber olhar as coisas. Olhar através da menor quantidade possível de véus, já que tudo está coberto por véus. Acho que minhas ideias vêm, em parte, de uma dificuldade de comunicação verbal. Meu livro de quadrinhos _quieto é uma expressão clara disso. Sendo quieto, observo muito, invento conexões. Não sabendo como verbalizar a maioria das coisas, acabo por colocá-las em forma de desenhos e palavras construídas. O livro de poesias Caber Fora, Se Habitar (vencedor do Prêmio Nascente USP 2018) por exemplo, nasceu de todo repertório que cultivei durante o curso de arquitetura e urbanismo. Entendi os conteúdos que o curso que ofereceu, mas os abordei sob uma perspectiva anti-técnica, ou seja, busquei o que seria a poesia da cidade, do espaço construído, ou ainda o que são os espaços construídos dentro da gente. Hábitos de criação cultivo três, eu acho. O primeiro é manter o olhar atento para tudo, como forma de coletar sementes. O segundo é anotar. Ando sempre com um caderninho de bolso, cheio de desenhos feios, garranchos, versos bregas, e alguma ideia interessante. O terceiro é planejar. Acredito como importante o ato de organizar os trabalhos, entender o começo, meio e fim do trabalho que estou começando, qual será o próximo, etc. Para mim isso serve como uma estruturação das minhas ideias de uma forma legível para mim mesmo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Minha escrita ainda é bastante jovem. Minha criação é jovem. Desde que comecei a produzir poesia, quadrinhos e crônicas percebi que gradativamente venho acreditando mais nessa palavra que sai de mim. Antes ela saía trêmula, mal se sustentava. Hoje já saem com alguma força, mesmo quando erradas. São minhas, são eu. Ainda assim, preciso ainda aprender a me ler. A preguiça que tenho de revisar meus trabalhos pode ter a ver com uma dificuldade inconsciente de reconhecer meus erros. Lição. Percebi também que venho tratando a palavra escrita com muito mais cuidado. Acredito que isso seja resultado tanto das atividades da pós-graduação, onde cada palavra carrega os conceitos para lá ou para cá, quanto das produções mais sensíveis, onde cada palavra é uma pedra de um tamanho diferente que coloco no caminho de quem lê. Um trabalho que desenvolvo também é de editor da Revista Rasante, que publica ensaios sobre as relações entre arte e cidade. Então, além da produção da escrita, acumulei um trabalho de leitura crítica da construção do texto, o que me força a olhar para a palavra de outra forma, já que elas não saíram de mim, mas de outra pessoa, e ainda assim devem comunicar uma ideia que eu-editor compartilho com o outro-autor. Então estou tratando a palavra com bastante cuidado. Isso me dá mais ganas para o futuro dessas minhas atividades. A fase que me encontro é de produção. Se possível produzir muito para ter alguma coisinha de qualidade. Quanto ao Rafael do passado, eu diria para ele acreditar mais no que ele sente.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Além do meu caderninho de bolso lotado de ideias mequetrefes, tenho uma lousa onde organizo meus projetos em andamento e os que vão ser. No momento tenho quinze projetos em espera, em quadrinhos e escrita. Desses quinze, escolho um para comentar como um projeto que gostaria de fazer. Gaston Bachelard escreveu um livro chamado A Poética do Espaço, onde ele filosofa sobre o espaço, a casa, seus significados. Eu gostaria de fazer a Poética da Cidade. Gostaria de entender a cidade para além da sua materialidade e para além do jogo de forças políticas e econômicas. Acredito que há uma força dormente na cidade, no encontro das pessoas, nas diferenças em choque, no passado sobreposto pela novidade, na justaposição de lugares, na cidade subjetiva que cada um constrói para si. Essa força que dorme, gostaria de acordá-la. Um livro que ainda não existe e gostaria de ler é um livro que me adote. Um livro que me encontre no momento certo da vida. Acho que esse livro está caminhando na minha direção, não sei de onde, não sei qual é. Talvez ele esteja dentro de mim e um dia eu o escreva. Quando ele chegar nas minhas mãos, vou saber.