Rafael Baldam é poeta e quadrinista, editor da Revista Rasante.

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Normalmente tenho mais do que um projeto acontecendo ao mesmo tempo. Vale dizer que a escrita não é minha profissão e também não é o único tipo de trabalho paralelo que faço. Além dos projetos de escrita, trabalho com design gráfico fazendo freelances e como fixo em uma empresa, além de outros projetos por prazer, como quadrinhos e música. Então os trabalhos que invento para mim mesmo acontecem mais ou menos junto com os trabalhos que recebo de encomenda. O que tentei fazer há algum tempo foi fazer um projeto extra por vez, para tentar focar mais. No entanto, acabei retomando um ou outro projeto antigo enquanto tocava o projeto atual. Para organizar a semana dou prioridade para os trabalhos pagos e para os trabalhos em parceria, o restante do tempo uso para meus projetos solo. Já tentei me organizar de modo bem rígido, com horários definidos para cada projeto mas não funcionou bem, criou uma pressão que eu dificilmente conseguia responder. Agora deixo mais livre. Meu trabalho fixo toma a maior parte do dia, então o tempo restante é curto, que acabo usando para aquilo que estou mais disposto a fazer naquela hora, mas lembrando das prioridades de entrega. No fim, acho bom ter vários projetos ao mesmo tempo, um alimenta o outro em termos de inspiração, referências, dificilmente fico travado em um trabalho. Também não consigo me concentrar por muito tempo em uma coisa só, o que é bom quando se tem vários projetos pois posso fazer um pouquinho de cada. Tenho um certo vício em começar projetos novos. Isso me leva a sempre ter projetos em andamento. Mas ultimamente tenho aprendido a guardar alguns projetos e ativa-los na hora certa.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
O que parece funcionar melhor para mim é fazer um macroplanejamento, sem muitos detalhes. Apenas defino encaminhamentos gerais dos projetos, não defino limites de prazo de criação, por exemplo. Essas definições gerais funcionam como contornos para o projeto: o que quero fazer, como quero fazer, o que pretendo com isso, coisas assim. No mais, deixo o projeto fluir, deixo ele se encaixar na minha rotina, já que ele disputa tempo com minhas outras atividades. Tenho aprendido a respeitar o tempo de cada projeto, e por isso fazer um planejamento detalhado de cada projeto não funciona para mim.
Escrever a primeira frase é sempre mais fácil, pois como falei anteriormente, gosto de começar projetos. Escrever a última frase não é necessariamente mais difícil, mas é um momento mais incerto. A última frase aparece para mim ao longo do projeto, não há como antecipá-la, preciso estar atento ao longo do desenvolvimento para saber quando e como acabar.
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
Não tenho uma rotina certa. Para um livro que escrevi durante o ano passado criei a regra de escrever todo dia alguma coisa, mesmo que não servisse para o livro. Funcionou por algum tempo, e por esse tempo vi que esse exercício trazia benefícios, era como entrar num ritmo de escrita. Quando pegava o caderno para escrever já olhava o poema do dia anterior e revisava (isso não era uma regra, mas sempre acontecia). Por conta da minha rotina de trabalho, só consigo ter as noites livres, e foi nesse horário que escrevi esse livro. No momento de escrita não preciso de um ambiente muito controlado, mas preciso de um lugar em que me sinta bem. As vezes esse lugar pede que deixe uma música rolando bem baixa, as vezes vou até a sacada e escrevo observando as pessoas na rua, as vezes pego alguns livros de temas variados e, junto com o caderno de escrita, sento no sofá folheando os livros e escrevendo alguma coisa. No entanto, eu preciso de um “momento de escrita”. Não consigo escrever uma coisinha rapidinho enquanto estou cozinhando, por exemplo, ou entre os afazeres do trabalho. Preciso de um momento/lugar separado do resto do dia para poder escrever, e aí eu controlo o quanto isolado eu preciso me colocar naquele momento. É raro que eu escolha me isolar para escrever. Prefiro que a escrita seja interferida pelos sons ao redor.
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travado?
Costumo procrastinar muito, mas como tenho total liberdade nos projetos artísticos, isso não é um problema, acabo deixando a procrastinação “se gastar”. Chega uma hora que minha vontade de escrever (ou desenhar, compor, etc) prevalece e começo (ou retomo) o trabalho. Tenho percebido que os momentos de procrastinação que passo são um sintoma de uma estafa mental, que me impede de produzir algo criativo naquele momento. E isso não se resolve vendo mais referências, buscando novas fontes, estudando mais. Essas soluções me servem para o bloqueio criativo, para alimentar minha máquina criativa. Esta é uma máquina que tento manter bem alimentada constantemente, mesmo nas horas de lazer. Para mim, qualquer coisa pode alimentar a máquina da criatividade, desde que aquilo que está entrando venha com intenção. Isso quando há a possibilidade de escolha. Há também aquela postura, já um clichê de “artista”, de manter-se aberto a tudo, deixar que o mundo te afete e isso alimentará a máquina da criatividade. Essa é uma postura que a gente não escolhe, ela acontece quando deve acontecer. Colocar em si coisas com intenção é, talvez, uma maneira de exercitar essa abertura. Para mim, estas duas estratégias amenizam o bloqueio criativo. Tomo os períodos de bloqueio (assim como os de procrastinação) como um sinal, algo me dizendo sobre qual é a minha posição naquele momento frente àquilo que estou tentando criar. Será que estou fazendo algo que não gostaria de fazer e então o bloqueio aparece? Será que não me sinto seguro naquilo, e então decido ir adiando o trabalho? Enfim, costumo buscar essas perguntas dentro de mim primeiro. Depois, se eu perceber que a lacuna é na técnica ou no repertório, parto para soluções mais pragmáticas, como estudar referências, assistir aulas sobre o tema, treinar, etc.
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
Meus trabalhos em poesia dão bastante trabalho, no entanto é um desafio que diverte. O compromisso do poema não é explicar alguma coisa, então mesmo que ele não saia exatamente como eu imaginei ainda é um poema válido. Meus trabalhos com ensaios críticos (que publico no site do meu projeto paralelo chamado RASANTE, esses sim, dão muito trabalho. A grande dificuldade desses textos, que normalmente versam sobre questões urbanas, cultura e arte, é conseguir percorrer através do texto o caminho do meu pensamento. A sensação de produzir esses ensaios é como tentar reconstituir o caminho por onde um trem passou e marcou o chão. Não será possível refazer esse caminho exatamente, desvios terão que ser feitos e improvisações precisarão acontecer. Ao mesmo tempo, é possível ver de onde o trem saiu e para onde vai, onde são suas paradas. Para tentar sistematizar esse processo de escrita de ensaios e minimizar as dificuldades dessa etapa, costumo desenhar uma estrutura para o texto todo em formato de tópicos, colocando o que quero falar naquela parte, quais autores se relacionam com aquilo, onde encontro referências, etc. Isso é muito diferente da escrita poética, onde eu tenho que lidar apenas comigo. Nos ensaios preciso manipular uma quantidade grande de outros autores e uma linha de pensamento estruturante clara. Dos trabalhos que fiz, tenho um ensaio de que gosto bastante (e que deu bastante trabalho). Nesse texto falo sobre o ato de narrar a cidade, e como isso é uma forma de construir uma cidade própria, subjetiva. Também tenho orgulho do livro de poemas que estou finalizando agora (em Janeiro), e que deve sair nos próximos meses. Esse livro é uma leitura da cidade a partir de três aproximações: presença, ausência e sonho.
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém um leitor ideal em mente enquanto escreve?
Os temas para meus trabalhos, sejam quadrinhos ou poesia, não são necessariamente “escolhidos” por mim. Estou sempre esboçando alguma coisa sem pretensão alguma, pode ser uma série de ilustrações, uma série de poemas, qualquer coisa na verdade, então quando percebo que algum desses esboços possui potencial para expansão, passo a encarar aquilo como uma série estendida que pode virar um livro no futuro, talvez. Normalmente, o tema final dos meus trabalhos emerge em meio a um conjunto de trabalhos menores e aparentemente sem conexão. Portanto, a tarefa de encontrar um tema é a tarefa de encontrar conexões entre as coisas que já estou fazendo. Claro, ainda há a questão de como eu escolho os temas dessas coisas sem pretensão que faço. Isso é mais nebuloso. Toda questão/tema/fato/coisa tem uma força potencial que me põe a criar, que me impulsiona para pegar o papel e caneta e começar a esboçar. Isso não é matemático. Algo que já me movimentou muito, talvez hoje não tenha mais força sobre mim, talvez algo até patético faça surgir um impulso criativo (que não é a mesma coisa que inspiração). Essa questão se move como uma nuvem mesmo. Enquanto estou criando e produzindo um trabalho não penso em quem vai ler, não penso nem SE vão ler. Me concentro nas articulações internas do trabalho, em produzir algo que me soe interessante. Tenho tentado criar trabalhos que não pegam o(a) leitor(a) pela mão, que não definam caminhos precisos. Esse é o trabalho de quem lê.
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Em geral gosto de mostrar rascunhos dos trabalhos para poder ter uma “primeira reação” ao trabalho. Costumo mandar para alguns (poucos) amigos que sei que se sentem à vontade em fazer críticas e sugestões. Tomo essas primeiras críticas não de forma integral, aproveito o que faz sentido para o que pretendo com a publicação e deixo de lado sugestões que não me servem. Gosto de ter opiniões de amigos que também escrevem ou que lidam com literatura de alguma forma, e de amigos que não tem relação com essa forma de expressão. Acho que é preciso um certo exercício de desprendimento para mostrar um trabalho inacabado para alguém. Não vejo problemas em mostrar trabalhos inacabados, em quaisquer estágios que estejam. Aliás, essa é uma forma de combater travamentos criativos. Ainda que de modo controlado, é uma forma de jogar o trabalho para fora de si, e ver o que vem de retorno para re-modelar o trabalho. Não acredito muito em uma preservação do segredo da obra em produção para depois ser lançada como um objeto que já nasceu pronto. Prefiro (quando possível) manter a produção exposta.
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
Comecei a escrever durante a faculdade de arquitetura, fazendo textos sobre temas mais ou menos aleatórios com uma abordagem meio poética meio argumentativa. Cheguei a publicar em um portal de ensaios na época. Não durou muito tempo. Anos depois, quando estava em uma viagem pelo mestrado (também em arquitetura e urbanismo), lia o livro de poemas de um amigo (Guto Leite). A partir desse livro tive vontade de escrever poesia. Talvez ali eu tenha percebido que se eu quisesse escrever poesia, eu podia. Não me interessava tanto se eu estava fazendo certo, se eu tinha o repertório necessário, eu apenas queria fazer. Escrevi bastante nesse período. meses mais tarde eu estava buscando o que fazer com aqueles poemas e me deparei com um concurso que acontece para alunos e funcionários da USP, o Prêmio Nascente. Como eu era aluno na época, decidi inscrever um conjunto de 24 desses poemas na categoria texto. Dei um título e mandei. Acabou que venci na categoria texto, e levei um susto. Como é possível que alguém sem formação nenhuma em letras ou algo parecido, sem muito repertório de poesia pode ganhar isso? Sem entender muito bem, fiquei feliz com o prêmio. Decidi me dedicar mais à escrita logo em seguida à premiação. Interpretei aquilo como um tipo de aviso para eu prestar mais atenção naquela atividade que eu estava levando como uma brincadeira até então. Ainda não me dedico integralmente à escrita. Mas agora ela ocupa um lugar mais especial no meu tempo e no meu entendimento de mim mesmo. Como eu comecei a escrever meio “tarde”, eu gostaria de ter ouvido que era possível escrever mais cedo na vida. Gostaria de ter tentado quando ainda era criança ou adolescente. Agora que sou adulto, estou na infância da minha escrita.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Em 2019 participei de uma oficina com Lourenço Mutarelli, onde ele disse: “estilo não se cria ou desenvolve, se assume”. Ou algo parecido com isso. Fiquei com aquilo na cabeça. É claro que qualquer atividade pressupõe a possibilidade de melhoramentos e desenvolvimentos em sua técnica, pesquisas, desvios, etc. No entanto acredito que a prática e os estudos não servem necessariamente para “tapar buracos” da técnica, mas para abrir possibilidades de exploração. Nessa busca, depara-se com elementos que são incorporados à produção própria e também depara-se com limites, elementos que definirão uma prática que está fora, que não faz nem fará parte do “estilo” próprio. Por isso, acredito que o estilo próprio já existe em forma bruta na pessoa que decide criar algo, e que ao longo do tempo vai se lapidando, polindo. Por isso acredito que o estilo se assume. Assume-se os erros, assume-se as deficiências, assume-se as potências, assume-se os riscos. Minha preocupação é, sempre, ser sincero comigo mesmo. Enquanto estou produzindo algo, me pergunto se aquele trabalho está conversando comigo antes de outras pessoas (clientes, referências, modas, professores, etc). Se aquilo se comunica comigo, então tudo bem. Pode até ser que o resultado final seja meio parecido com algum autor que gosto, fato que aprendi a reconhecer, mas que não me importa muito. Para mim fazer algo meio parecido com um autor que admiro faz parte da trajetória. Percebo autores(as) como Eduardo Galeano, Kioskerman, Manoel de Barros e Clarice Lispector como alguns dos que sempre estão no meu horizonte, de alguma maneira me guiando.
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
Tenho recomendado bastante O Livro dos Abraços, do Eduardo Galeano. Nesse livro, Galeano consegue um balanço incrível entre poesia e prosa; cada texto é um pequeno retrato, um fragmento da sensação do abraço.