Rafa Ireno é escritor e crítico da periferia de São Paulo, doutorando em cotutela na Universidade de São Paulo e na Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu gosto de acordar cedo, tomar café devagar e, depois, sentar para escrever até o meio-dia mais ou menos. Não gosto das tardes, nunca gostei, acho a pior parte do meu dia, se possível retomo o trabalho apenas depois das 17hs. Entretanto, isso seria uma rotina ideal e, infelizmente, acontece muito pouco, sempre tem outras coisas para fazer, daí, adapto-me.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
De manhã, como disse acima, é a melhor parte do dia para mim. Gosto de escutar músicas e ler as notícias e, daí, começar por aquilo que escrevi na véspera. Com a cabeça mais fresca, prefiro fazer a revisão e já começar a desenhar os caminhos futuros do texto. Não tenho rituais, mas dois processos diferentes acontecendo ao mesmo tempo: de um lado a escrita crítica, a qual me acostumei a fazer esquemas, listar as ordens de argumentos, etc… Trata-se de algo bem organizado, de modo que ao iniciar o texto já tenho em mente o caminho quase inteiro a seguir. Enquanto, por outro lado, a produção ficcional é caótica. Eu faço anotações de palavras, frases, fragmentos, num caderno e as deixo lá. Eventualmente, vejo que há alguma coisa crescendo ali, certas ligações entre os rabiscos. Quando sinto que dá pé, sento no computador e digito – engraçado é que geralmente saí uma coisa completamente diferente das primeiras anotações. Meu objetivo, isso já vem de alguns anos, é misturar mais as coisas, ou seja, trazer um pouco da liberdade de meu processo ficcional para os textos críticos e vice-versa – a rigidez do trabalho para minha literatura.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
A escrita sempre foi algo doloroso para mim; minha alfabetização aconteceu numa escola pública da periferia de São Paulo, com professores pouco amistosos – não tive muita sorte – e ainda por cima, acho que tenho algum grau de dislexia, que até hoje, se estou cansado, me faz trocar os pares p/b, v/f, t/d por exemplo. Mesmo assim, ironicamente, fui parar numa faculdade de Letras. E lá, diante do meu sofrimento com as avaliações, um grande amigo sugeriu que escrevesse todos os dias. Isso foi mais ou menos em 2007, comecei uns diários (além dos trabalhos, artigos e provas). Então, faz mais de dez anos que escrevo diariamente, agora, não se trata mais de uma obrigação, nem tenho mais diário por exemplo, tornou-se algo quase natural para mim.
Tendo prazos, que são geralmente apertados, eu coloco certas metas ou, pelo menos, me organizo para poder me dedicar aos textos. Aprendi que consigo focar na redação durante 1h, 1h/30 até 2hs se não estou cansado, as condições são boas e o assunto me interessa muito, mais do que isso, para mim, é impossível. Prefiro fazer uma pausa e retomar mais tarde.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Acho que já respondi essa pergunta acima: o processo anterior da escrita é bom, o ato de escrever é doloroso para mim. Não tenho dificuldade em começar, o problema está na releitura, na revisão, no momento de abandonar certas partes, às vezes, parágrafos inteiros que demoraram para serem construídos e, de repente, percebo que não servem naquele texto.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu sofro demasiadamente com medo de não conseguir escrever, de não corresponder as minhas próprias expectativas, que são altas e, às vezes, injustas. Eu não tenho ansiedade quando os projetos são longos, eu gosto, funciono melhor com longas preparações – os prazos curtos me incomodam mais. Geralmente, eu tento fazer coisas que me distraiam para lidar com isso, assistir a um filme, sair de casa, andar, correr… Mas, a verdade é que, enquanto não resolver o texto, não consigo relaxar, sinto-me preso, isso vale tanto para a ficção quanto para a crítica. Não é nada saudável, torno-me uma pessoa horrível, dramático, cruel, questionando minhas escolhas, arrependido de seguir um caminho em que a escrita é imprescindível, etc. Sinceramente, não sei como me suportam neste momento. Daí, respiro e volto ao trabalho. Felizmente, os bloqueios são raros. Como me acostumei com uma rotina, eu sempre escrevo, a redação não para, somente que, em certos momentos, ela toma rumos diferentes do que imaginei, então, o trabalho de voltar aos trilhos exige muito esforço e há, no final das contas, sempre uma frustração por não ter conseguido expressar exatamente o que eu queria dizer, a gente nunca consegue.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Muitas vezes eu reviso meus textos, quase nunca acho que estão completamente prontos, apenas considero que chegaram ao ponto máximo do que consigo fazer naquele instante. Acho que esse cuidado de revisar representa uma forma de respeito, quero dizer, a escrita seja na ficção seja na acadêmia pressupõe um leitor e o mínimo que posso fazer é tornar a redação satisfatória. Isso não significa que tenho que escrever para agradar ninguém, só penso que as minhas ideias devem chegar sem ruídos causados por um possível problema técnico, o que também não tem a ver com gramática, muitas pessoas dominam as regras gramaticais e, entretanto, não se comunicam.
Sim, mostro os meus trabalhos para outras pessoas, sempre! A escrita para mim tem uma lado coletivo muito forte. O olhar do outro é essencial. Tenho sorte de ter bons leitores ao meu redor, além de muito generosos por disponibilizar seu tempo para minhas coisas. Minha companheira, Rosemay Joubrel, é a primeira leitora, muito arguta e sincera; depois, muitos amigos participam desta atividade, aos quais, aproveitando a oportunidade, agradeço de todo meu coração.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Antigamente, quando tinha muita dificuldade, eu sempre escreviaà mão primeiro, depois passava para o computador, daí, eu imprimia, reescrevia à mão, redigitava, inclusive, repetindo esse processo quantas vezes fosse necessário para que o texto se resolvesse. Agora, com um pouco mais de experiência e menos tempo, sobretudo, o trabalho acadêmico já passo direto ao computador. Para a literatura, eu ainda mantenho alguns cadernos, em que anoto constantemente coisas fora de ordem, mas, engraçado, é só quando começo a digitar que consigo dar uma forma mais “potável” para a coisa. As duas atividades na minha escrita, às vezes, se opõem de tal modo que evito até usar as mesmas fontes, é a Times New Roman para os textos acadêmicos e a Calibri ou Arial para a ficção.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
De diversos lugares, na verdade, o mais importante se refere ao instante, pois, tenho ideias quando estou distraído, andando de ônibus por exemplo – acontece bastante. Gosto de escutar pessoas, catar palavras aleatórias, que fazem eco em mim. Minha vó é, com certeza, uma fonte de minha produção literária, escutei tanto suas histórias, que se tornaram as minhas. A repetição tem aí um papel importante, ouvir a mesma música, passar pelos mesmos caminhos em horários diferentes, enfim, não há regra.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Não gostaria de voltar a minha antiga escrita, porque minha maneira de escrever atual representa uma conquista, que envolveu muito suor, sofrimento e superação. Mudei muitas coisas em mim e toda transformação, se traz muitos lados positivos, também implica numa série de perdas, traumas e derrotas – a escrita é o resultado disso. Contudo, se pudesse voltar, eu diria para prestar mais atenção na diferença entre comentários construtivos, que destrincham novos caminhos, abrindo possibilidades; daqueles destrutivos, inversos, que fecham as portas e não te dão opções, a não ser se chocar constantemente com um muro até que ele quebre ou você. Por sorte, tive mais comentários do primeiro tipo, no entanto, experimentei mais do que gostaria o segundo, sei o quanto podem ser maléficos para a escrita e para o emocional.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de rescrever Os Sertões de Euclides da Cunha. Agora, quanto aos livros, eu me contento com os que já foram escritos e eu ainda não li… rs.