Rachel Facó é jornalista, escritora e profissional de marketing.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Despertando pra vida, assim começo todos os meus dias. Como a maioria das pessoas. Sem saber onde ele vai dar, mas acordando disposta a que ele me leve pr´algum lugar.
Não vivo da escrita, ainda que ela me mantenha respirando sem aparelhos e artifícios. Meu maior instrumento (e, talvez, único) é a palavra. Aquela desenhada no papel, com meus garranchos; refletida numa tela pelos meus pensamentos ou ouvida por quem tem paciência. A palavra sustenta os meus dias, mesmo quando não me suporto sobre eles.
Escolhi jornalismo por isso: por amor à escrita. Hoje trabalho com comunicação e marketing e mantenho esta relação estreita, dando novos e possíveis contornos à minha vocação pra ser feliz e pagar minhas contas.
Minha rotina envolve cuidar da minha filha em guarda compartilhada, viajar pra São Paulo com frequência, trabalhar com gente que admiro e… olhar. Olhar muito e por aí. Coisas miúdas me param: o voo de um pássaro, o sol refletido num prédio, uma música, um filme, uma folha que vejo pairar do céu ao chão, um pensamento fixo, um canto da rotina de alguém ou de algo. Paro e escrevo.
Pela manhã, só acordo, levanto e vou em frente.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Se eu fosse um animal seria uma formiga com desejo de cigarra. Trabalho quase 100% do meu tempo com tudo ou qualquer coisa que me deem pra fazer. Sou a famosa expressão: “pau pra toda obra”. Fui talhada pro trabalho. E gosto disso.
A minha escrita nasce desse meu jeito de estar no mundo. Não tem hora, nem lugar. Às vezes, estou numa reunião de trabalho e me vem uma palavra em mente: precária, por exemplo. A palavra fica dançando na minha cabeça com vontade de virar texto. O contexto, o entorno e o fora dele geram a minha escrita. Normalmente, intuitiva, em versos e brincando com os significados, a polissemia das palavras. Escrever, pra mim, é sobre brincar com elas, os sentimentos e os sentidos. Dar forma e leveza aquilo que não consigo compreender e apreender. Não há rito, preparação ou organização. Sinto, escrevo. Não sinto, escrevo. Sofro, escrevo. Feliz, escrevo.
Meu rito limita-se a não deixar de capturar o peixe e ser anzol. Tudo é isca.
É seguir sendo formiga, envolvida com os afazeres diários, buscando brechas pra cigarra que me habita.
Sobre o precário, de outro dia, deu origem a um poema. As duas primeiras estrofes foram:
“Um amor precário
Sente-se de longe
Quase um relicário
Carrega-o sem o possuir
E o possui sem o sentir”
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrever, pra mim, é contra-meta ou contra-regra. É justo o fora da lei que me mantém conectada com a melhor parte de mim. Escrevo pros outros? Certamente. No entanto, escrevo especialmente pra mim. Pra me ler. Pra me dar um rumo. Pra escolher uma estrada ou fugir dela.
Penso que mesmo que vivesse da escrita, ela continuaria a ser a minha revolução particular. Sou avessa à rotina. Se pudesse, acordava todos os dias a hora que o meu corpo determinasse – isso seria depois de meio dia, aposto. Conheço meu corpo. Ele detesta que lhe digam o que fazer, como fazer, que horas fazer. Vai ver, por isso, também não frequenta academias. Ele se exercita quando tem vontade.
Admiro quem tem método, foco, rotina. Eu sou o caos. Escrevo só pra tentar me organizar. E esta, pode acreditar, já é uma tarefa hercúlea.
É bem verdade que quando fiz, durante cinco anos, a Oficina de Literatura Infantil e Juvenil da professora Ninfa Parreiras, na Estação das Letras, no Rio de Janeiro, escrevia pelo menos um texto por semana, com foco e orientação. Estimulada pela riqueza das leituras, dos motes propostos, do grupo acolhedor e aberto à escuta e, especialmente, pela condução da mestre que teve e tem o dom de acessar cada um pelo que é.
Por isso, pra quem é o caos como eu, se tiver tempo, recomendo envolver-se em grupos de leitura e escrita. Eles nos ajudam a abraçar uma rotina de criação. Um bom casamento. Fui separada a fórceps pra ganhar a vida, mas a escrita não me abandonou. Só voltou, mais rica, à sua forma original e caótica de sempre.
Minha meta diária é sobreviver. E a escrita me ajuda de sobremaneira neste feito.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
É sempre difícil começar. “A vida só é possível reinventada”, escreveu Cecília Meireles. É sempre sobre “Isto ou aquilo” ou sobre olhar a esperança cair louca do 12º andar do ano e acreditar no recomeço, como no poema de Mario Quintana.
Começar qualquer texto envolve reinvenção, escolha e fé.
O que torna um texto original? Aquela ideia nunca foi abordada antes?
Sinto, por gostar de ler tanto quanto de escrever, que não há nada que não tenha sido dito, escrito ou eternizado. Suspeito, sem ter certeza, que o salto é quando encontramos, em nós, um cantinho de difícil acesso. Uma memória, um amor, uma experiência vivida, sonhada ou as duas coisas juntas. Dentro da gente. A única coisa original nesse mundo é o que cada um é. Esse é o começo: de onde você veio, quem te gerou, o dia que você nasceu, quem te criou, se você vem da roça ou da cidade, a sua infância, o que te forma, o que te encanta, o que te machuca, quem te rodeia, o que você lê.
Portanto, o meu processo de escrita envolve um percurso por dentro de mim mesma. Às vezes, doloroso, outras vezes de puro gozo. E tem relação com a linguagem que preenche o chão do caminho: de pedra, asfalto ou areia, o veículo da minha escrita procura passar longe do lugar comum.
Participei de duas antologias, “Depois do Silêncio, escritos sobre o Bartolomeu Campos de Queirós” e “Mapas Literários, o Rio em histórias”. Também reuni alguns escritos no blog Esquina do Conto, desde 2010, tempos de oficina e rotina.
Em todos os casos, sou eu por escrito. Não no sentido biográfico, mas em essência.
Na primeira antologia, escrevi a quatro mãos com uma amiga-autora-irmã, Pepita Sampaio. Somos nós duas em texto para um autor que amamos. Não foi à toa que optamos por escrever uma carta, “De nossa parte, um fio de saudade”. Costuramos trechos dos livros do Bartô com os nossos sentimentos. Relemos toda a obra, marcamos cafés pela cidade, relembramos os textos mais queridos, partilhamos aqueles que mais nos tocavam, trocamos inúmeros e-mails. E fomos, parágrafo a parágrafo, nos entrelaçando: eu, ela e ele. Reinvenção.
No Mapas Literários, uma homenagem aos 450 anos do Rio de Janeiro, o desafio foi escolher um bairro e uma personalidade ligada ao lugar. No meu caso, não poderia ser outro bairro, nem outra pessoa. Escrevi sobre o Méier, bairro em que nasci e fui criada, e Millor Fernandes, que contava em suas entrevistas ter se formado na “Universidade do Méier”, na Escola Municipal Isabel Mendes, a mesma onde fiz o primário. O meu conto “Entremear” envolveu muita pesquisa, visita à antiga escola e o que me moveu foi a memória. Escolhas.
No blog “esquina do conto” estão alguns textos e versos do meu período mais produtivo, ainda que siga usando as redes sociais como uma aluna que ousa escrever no quadro negro da sala, diante de renomados professores e toda turma. Acaba sendo sobre não deixar de ser quem sou. De, em mim, ter fé.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Lido em versos, por estrofes, com frases iniciais. Como agora: “o medo desiste quando chega às mãos, é o dedo que aponta a direção ou as palmas que se unem em oração. O medo morre antes de tomar meu coração.”
Quando tudo de ruim me acessa e paralisa imagino gente como a gente, que sente como eu sinto e segue em frente. Escrever é não dar branco ao papel e virar a página constantemente. Se não hoje, amanhã, de repente.
Nunca tive um projeto longo de escrita. Acho que venho fugindo dele há 45 anos. Um tipo de medo que se escondeu em algum refúgio, longe da minha mão.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Meus textos são como eu, preguiçosos. Gostam de dormir. E isso me parece bastante saudável. É preciso deixar um texto descansar para brincar novamente. Ele acorda mais disposto a ser livre, relaxado e menos apegado. Texto de sono leve é bicho de difícil trato, é que nem filho novo, a gente fica cheio de dedos. Não convém ser possessivo com texto novo.
É bom deixar o texto ganhar o mundo depois de se formar num fundo de gaveta, depois dos toques dos “de casa”, de umas boas cortadas. Texto sem mimo, preparado pra ser forte, íntegro, original.
Meus textos publicados tiveram a sorte de brincar de roda, de ganhar pitacos, de serem enriquecidos por diferentes pontos de leitura. E sou grata às leituras compartilhadas. Elas não melhoram apenas o texto, mas quem os escreve. É um exercício de desapego e de humildade.
Agora, tenho um problema sério. Gosto de revisar os textos. Mudo as palavras de lugar, mudo os sentidos. Leio em voz alta. É um processo tão prazeroso que sou capaz de não sair dele. Em ensaio eterno, corro o risco de não deixar um texto estrear.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
“O risco
do passo
É pássaro”
Esse pequeno verso escrevi no celular, andando pro escritório em São Paulo, pensando nos diferentes riscos: nos abismos que nos lançamos e nos traços que desenhamos ao andar. No passo que dou aqui ou em qualquer lugar. E no pássaro, no som da palavra e naquilo que representa, o voo. E com isso, em três versos, o risco do passo é ser voo, tocar o ar, o inesperado. Ou pode ser só um tracejado num céu particular. Um passo apenas.
Tudo isso pra dizer que a minha relação não é com a tecnologia. É com a palavra. Escrevo onde der e como der. Escrevo bastante no celular, pois está sempre à mão, mas adoro escrever em guardanapos, em cadernos e no laptop, como agora.
Minha letra é um garrancho. Às vezes, escrevo à mão só pra não esquecer da caligrafia que me deu origem, do jeito que pego no lápis, diferente da maioria das pessoas. Eu o agarro com todos os dedos. Pode-se dizer que escrevo errado. E escrever à mão me lembra disso: do erro, das rasuras. E preciso dos meus erros para me inscrever.
Para os textos mais longos uso o laptop, mas muitas ideias nascem aos pedaços, anotadas no celular, em papéis soltos, num caderninho perdido na bolsa. Depois, meu quebra-coração (sim, os escritos são partes de cor) dá origem às batidas que me fazem pulsar inteira. Texto pra mim tem vida.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Viver é matéria suficiente pra escrita. Minhas ideias vêm quando me ligo no que acontece ao redor e também quando me desligo. Vivo aqui e num planeta particular, alimentando minhas fantasias, ressignificando meus dias, pensando nas dores alheias e as sentindo como minhas. Muita coisa ou quase tudo me afeta.Ainda assim, tenho um conjunto de hábitos:
Leio muito e de tudo, especialmente poesia. Quando às vezes o mundo me pesa e não consigo engrenar uma leitura mais densa, não abro mão dos poemas. São pílulas diárias de alento. Adoro música, cinema, teatro, exposições. “A arte existe porque a vida não basta” (Ferreira Gullar) e uma imensa parte de mim precisa da arte pra escrever. Depois que me separei, ouço, desde então, mais música do que vejo televisão.A casa entra numa áurea especial. Acho que, nestas horas, capaz de me encontrarem em Marte. Amo viajar. Conhecer outros lugares, outras culturas, me perder de mim, me encontrar em outros. Isso, sem dúvida, acende a minha criatividade. E, por último, beber vinho. Sem Baco e sem festa também não há escrita.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
A escrita amadureceu comigo. Não sei o que diria pra Rachel dos 16 anos, que participou de um concurso de poesia da escola com o pseudônimo Ocaf e teve dois poemas publicados… Honestamente, não sei. Se ela fosse diferente, mais confiante e mais elaborada, não seria eu. Se ela escrevesse melhor tão nova também não seria eu. E, em 45 anos de vida, tudo que persigo ao escrever é ser uma versão possível de mim mesma. Imagino que não há outro jeito sem ser a história que fui e sou. Não que isso queira dizer alguma coisa. Até hoje mantenho minhas inseguranças, carências e defeitos de escrita e estilo. A diferença é que fui sendo aperfeiçoada no percurso pelas pessoas, pelas leituras de mundo, de livros e dos outros.
Talvez, pr´aquela menina só peça que jamais vá embora, que continue por aqui. Escrevendo comigo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho um projeto inacabado, em fase de ensaio eterno: uma coletânea de textos e poemas que nominei de “Feito de voo”. Sem pretensão, lembra o livro “Para viver um grande amor”, de Vinícius de Moraes, que intercala um conto ou crônica com uma poesia. Seria bom vê-lo voar um dia. Preciso tirá-lo do fundo da gaveta e revisá-lo uma vez mais, pois há mais de quatro anos não o vejo.
Tudo o que quero ler já foi escrito. Quero terminar o Inferno de Dante, encarar Cervantes, ler mais Valter Hugo Mãe, terminar a biografia de Leonardo Da Vinci, reler todos os dias meus poetas, em especial Cecília, Vinícius e Pessoa. Somente assim, descubro o que existe em mim. São as leituras que me acessam e revelam o que desconheço. Quero o espanto diante da página, do verso, de uma linha. O que não existe é apenas o que não li por ai e em mim. Mas está lá, escrito.