Priscila Rossinetti Rufinoni é Doutora em Filosofia pela USP e professora da graduação em Filosofia na UnB.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Bem, eu não sou muito notívaga, não me lembro de ter passado a noite estudando, embora talvez precisasse. Mas gosto bastante de dormir, então não sou muito regrada de acordar cedo para trabalhar. Ou seja, não sou nem um pouco exemplo de dedicação nesse quesito. Quanto à rotina, sempre tem de ter café com leite, eu acordo, passo roupa e faço café para meu marido, depois que ele sai, acabo com toda a garrafa durante a manhã. Ritual ou manias, não sei, eu sei que não fico muito tempo sentada fazendo uma coisa só, costumo escrever fazendo mil outras coisas, penso que isso ajuda a pensar, ou talvez seja só dispersão mesmo, sou muito muito dispersiva. Inclusive isso aparece na minha forma de escrita. Agora mesmo eu estava lavando louça e pensando na entrevista. Não é incomum eu escrever lavando o banheiro, arrumando a casa, tudo ao mesmo tempo, essas coisas. A rotina é sempre essa, de um lado para o outro, quanto mais empolgada por um texto, mas dispersiva ele me faz. Acho que gosto desse trabalho mais manual, para contrabalançar. Quando eu não estou muito empolgada na escrita, aí a dispersão é mais pela internet, eu costumo ler tanto sobre questões político-sociais quanto sobre futebol e bobagens em geral, algumas coisas ajudam a pensar, outras só dispersam mesmo. Eu até coleciono umas coisas dessas, pequenas tragédias, pequenos lampejos do dia a dia, mas nunca fiz nada com isso, para ser sincera.
Acho que são várias as situações de escrita. Existe aquele escrever profissional de preparar aulas, para as quais eu tento ter um caderno específico, mas nem sempre fica tão organizado quanto eu queria. Meu ideal de organização é estético, não funcional. Pensando friamente, é um pouco como um ritual, o caderno de cada disciplina, mais do que projeto organizacional no fundo; existe uma escrita com prazo marcado, eu escrevi por encomenda, por exemplo, recentemente, um livro sobre Portinari para a Folha de São Paulo, que tinha uma data absurda de entrega, pelo menos para os padrões da academia. Topei por insistência de uma amiga. Aí a gente veste a personagem do escritor fumando diante da máquina de escrever, achei uma experiência divertida, mas não sei se o resultado me agrada. E existe a escrita de artigos, às vezes com data marcada também, mas não sou mais muito preocupada com esse tipo de produção, se der tempo deu, pelo menos não é o que mais consome minha energia de escrita. Já consumiu muito, artigos, apresentação de congressos, palestras, hoje em dia sou bem descrente desses mecanismos de legitimação acadêmica. Prefiro dedicar energia à aula…
E, por fim, existe aquela escrita mesmo, aquela que você considera a verdadeira escrita, que é um pouco roubada ao tempo do trabalho. Nesse sentido, adoro janeiro, quando parece que posso me dedicar a coisas desse tipo sem culpa por não estar nos cadernos das aulas, nos pareceres, textos e artigos que preciso revisar, meus e de outros.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Geralmente de dia. Já falei de alguns rituais: cadernos para cada uma das disciplinas, na tentativa de ser mais organizada; eu gosto do meu teclado antigo, e tenho a tendência de juntar mil coisas na mesa, lápis, pedrinha, tranqueiras de todo tipo. Sei lá se faz parte da escrita, mas quando eu limpo a mesa, logo vou juntando novamente um monte de tralhas, sementinha, bolinha, borracha, lápis etc. Eu gosto bastante de escrever à mão também, em mil e um cadernos. Tenho uma agenda que eu uso como suporte para tudo, mas não é usada diariamente, como uma agenda mesmo, não costumo esquecer compromissos, não preciso exatamente de um lembrete, uso como um caderno comum, que dura alguns anos comigo. Lá tem de tudo, resumo, partes de textos, organização das revistas que eu ajudo a editar, anotações de reuniões, desenhos, telefones. Eventualmente, até lembretes próprios de agendas. Eu fiz artes visuais antes de cursar filosofia, então cultivo um pouco o prazer manual de escrever e desenhar, aquela coisa com lápis de cor e canetas variadas. Da garatuja. A delícia de ir passear em papelaria… E pensar, pensar de verdade, tenho a impressão que é sempre com uma caneta na mão, ou um lápis para riscar. Faço textos direto no computador, eu digito bem rápido, não tenho nada contra, nem sou tão contra a tecnologia, ao contrário, eu mando e-mail o tempo todo e vivo olhando coisas na internet. Só não gosto de redes sociais… Mas talvez o texto mais cuidado, mais assim, acarinhado, seja aquele que começa, se estende pelos cadernos, passa de um para o outro, às vezes por anos. Embora talvez nem seja o melhor da gente. Há coisa que escrevemos por anos, que se reescrevem tantas e tantas vezes, mas nem sei se são as melhores. Elas se gastam também…
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Depende, eu sou capaz de cumprir prazos sim, pelo menos, já cumpri, na verdade, sempre cumpri, para o bem e para o mal! Faço um desenho geral do texto, penso: aqui entra isso, aqui entra aquilo. Uma espécie de mapa, inclusive eu preciso quase que desenhar como serão as partes em um caderno, dou títulos aos capítulos, dou forma a tudo no projeto. Mas isso só em casos de encomenda, ou tese, o que para mim foi uma experiência rara. No geral, a meta é a de tentar preparar as aulas escritas nos cadernos e não negligenciar nunca, naquele mote “ah, já dei esse curso tantas vezes e tal”. É muito fácil entrar no modo automático na sala de aula. Porque aula é um trabalho muito muito duro e pouco valorizado, mas é onde se pensa realmente, onde se articulam ideias em conjunto com seus estudantes, o lugar realmente fértil do pensamento no qual se produzem coisas duradouras. Tenho certo bode de congresso, palestra, artigo, muito do que se publica – e eu sei por experiência de editora – é texto de ocasião, se publica porque tem dinheiro da Capes para fazer o livro dos anais, porque saiu a verba e temos de fazer números para a pós graduação etc. Já fiz muito disso, não é uma satanização também, faz parte. Mas se perde, muitas vezes, o tempo de amadurecer uma ideia, e os textos mais cuidados e de fôlego, porque não respondem às demandas imediatas e não se vinculam facilmente a anais e congressos, acabam não sendo publicados, ou são publicados na forma resumida de pequenos artigos de coletâneas.
Na sala de aula, as reflexões podem ser mais livres dessas amarras, mais amplas, pode-se voltar atrás, não é apenas texto de ocasião, um curso se repete, se adensa. Mas essa, claro, é a opinião de alguém que viveu a academia dos tempos produtivistas, então espero que as novas gerações mudem o panorama. Minhas metas hoje são modestas, mas não é fácil, nem sempre consigo cumprir. A meta é não negligenciar o preparo constante dos cursos, como se fossem os primeiros sempre, para permanecer viva a reflexão. Procuro mudar sempre os programas, reescrevê-los, fazê-los vivos…
No mais, não sei se escrevo todo dia…acho que sim, entre os vários modos de escrita. Coisas mais importantes para mim por vezes ficam em segundo plano, não consigo ser organizada sem prazos externos. Fica tudo para janeiro…
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Como eu tenho muitos cadernos de aulas, as coisas vão fermentando por longo tempo. Às vezes, quando eu vou escrever um artigo, eu saco um caderno e tenho lá muitas partes praticamente prontas. Não tenho muita dificuldade não, só se eu não estiver movida pelo tema, se eu não quiser mesmo escrever sobre o assunto. Mas também, posso me considerar um pouco “inédita”, o que facilita, eu tenho muita coisa não publicada, então não é como um profissional que já publicou muito e tem aquela crise de repente. Eu só abro a gaveta (ou as pastas desorganizadas do computador) e há muito ainda para burilar. Tenho muita massa bruta para mexer e modelar. Escrever pra mim tem um pouco desse movimento de modelar partes, reorganizar, montar pedaços. É um pouco uma montagem. Agora, se eu não tivesse esse arquivo, ou quando ele acabar, aí não sei…
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Acho que não cheguei no momento das travas. Tenho muita sobra, restinhos aqui e ali. Embora eu já tenha certa idade, e certo tempo de academia. Também não sou muito de procrastinar, exatamente pela mesma questão. E na verdade, tenho certa facilidade para escrever, eu gosto, o que não significa que esteja contente com os resultados. Ao contrário, pode ser ruim a facilidade, a gente passa a se enganar com isso… As coisas estão prontas esperando, às vezes alguém me solicita um texto, eu digo: olha, tem isso e aquilo… serve?
Claro, eu tinha a expectativa de conseguir publicar mais (e melhor) quando era jovem. Com os anos, nos acostumamos a muitos nãos, ficamos muito chateados, mas se aprende muito com as recusas, os pareceres negativos. Fica aquele medo de nunca completar, de não publicar, e perder algo que se acha que podia ser bom. Por outro lado, pensando como pesquisadora agora, e não do ponto de vista pessoal, nem sempre o que o autor crê ser o melhor o é realmente. Muitas vezes o que se está produzindo é tudo que merece vir a público mesmo, as condições de escrita, do ponto de vista do produto final, suas intenções, nem sempre são centrais para a avaliação do texto. Eu, pessoalmente, posso achar que seria melhor, entretanto, a avaliação dos leitores, da comunidade, do tempo, pode ser outra. Mas sim, eu tenho uma angústia de achar que só publico coisas menores, coisas de ocasião, que nunca consigo publicar textos de mais fôlego. É uma impressão constante, angustiante mesmo. Imagino que de todo mundo…
E os longos projetos… sempre falo para os estudantes, não percam a chance de fazer um doutorado bem feito, porque é um período maravilhosos em que você tem não só o tempo e um suporte para escrever, mas também um leitor comprometido, com sorte, um grupo de leitores comprometidos. E um momento em que você pode, deve, escrever algo de fôlego. Depois, só esperam de você que pingue de tempos em tempos um artiguinho de congresso, é o que se publica, o que seus colegas se dispõem a ler e ouvir. E olhe lá. Claro, existem os grupos de pesquisa, os núcleos de interesse, mas o produtivismo, as publicações de ocasião subsidiadas, isso é muito difícil de processar, de transformar. Novamente estou falando da minha vivência particular. É uma impressão apenas, nada de refletido, mas é impressão bastante viva.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Muitas. E olha que sai erro pacas, eu escrevo de forma um tanto curva, oblíqua, favorece o deslize, e sou um tanto prolixa também. Eu leio em voz alta, para ver o ritmo da frase, evitar repetição, essas coisas. Acho que até escrevo em voz alta, enquanto faço outras coisas. Mas eu gosto muito dessa parte de pós-produção, eu gosto de revisar, de editar textos, meus e de outros. Não é à toa que eu participo de duas revistas – Pólemos e Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea – e que integrei várias organizações de livros, muitas vezes só como editora mesmo, só na parte técnica da coisa, sem participação, digamos, intelectual. Eu gosto do lado braçal em si, de rever nota, revisar mil vezes o texto, colocar figura, legenda, organizar segundo afinidades os vários artigos de uma coletânea, escrever editorial, a introdução que dá uma inteligibilidade ao todo. Gosto até de editoração, odeio quando fica óbvio que quem diagramou não leu, porque não percebeu onde terminava a citação para blocar, não percebeu que faltou o itálico no título, nuances assim delicadas, sutis, mas que fazem toda a diferença. Tudo isso, para mim, faz parte do texto final, é tudo parte integrante de como o texto expõe seu objeto, não gosto da distinção que fazem entre forma e conteúdo. Forma é conteúdo, todo o conteúdo está na forma, não fora. Não se resume texto, não se transforma um texto em outra coisa, como se a informação pudesse ser extraída de um bagaço inútil.
Quanto aos leitores… bem, eles são cada vez mais raros. Meu marido é um revisor e leitor fantástico, e super sincero, mas nem sempre tem tempo. Tenho uma amiga, Samira Margotto, professora de teoria da arte, inteligentíssima, também é leitora constante de muitas coisas… mas eu acho que ela não é sempre sincera, porque eu sou muito difícil com críticas.
Bem, um dos maiores elogios que meus amigos me fazem é que eu sou uma boa leitora (embora eu preferisse que eles me achassem uma boa escritora!)
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Ah, disso eu já falei um pouco, as duas coisas, gosto de canetas de muitas cores, lembrança daquela coisa volta às aulas da infância, cheiro de caderno novo, de lápis apontado. Mas também vou direto para o computador, escrevo às vezes muito rápido, um artigo sai em alguns dias, um comentário mais político, no calor da discussão, em horas, ou nem isso, direto… depende do fígado, do impulso que eu tenho para escrever, e do tipo de texto. Mas não é texto de ocasião no sentido das redes sociais, aí eu tenho muitas críticas, não participo… texto, escrita, é um produto da razão pública, algo que tem de ser cuidado, pensado como argumentativo, não pode andar misturado a fotos e comentários privados. As redes funcionam, muitas vezes, como uma descaracterização desse espaço público.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Eu cultivo interesses que são, ao meu ver, também compromissos sociais, políticos, então estou sempre nisso, não entendo quando falam que uma coisa é trabalho, outra é a vida mesmo. Aula, evidentemente, é trabalho. Mas o que move a aula, o interesse pelos temas, não necessariamente fica circunscrito, se expande para tudo, para todos os momentos. As ideias são articulações desses interesses, são sínteses. Claro, eu gosto de textos não acadêmicos, de tentar escrever em outros formatos em que há mais criação, mas não sei se obtenho bons resultados. Criatividade não é necessariamente uma coisa boa de pronto, um elogio. Eu acho que posso ser considerada muito criativa, no sentido comum do termo, tenho facilidade em juntar coisas de forma diversa, de modos diferentes, facilidade imensa em criar histórias, analogias, metáforas, como diz Isaac Bábel, eu também sou muito mentirosa, mas não sei se a síntese que consigo é boa no final. Acho que o mais importante ainda é o tempo, a maturação… e o interesse que move as ideias. Mais que a novidade em si. Embora, claro, eu adoro experimentar… juntar coisas….
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Eu diria o que digo para meus estudantes: escolha um tema que lhe interesse realmente, seja honesto consigo mesmo antes de tudo. Escolha um tema e uma forma que lhe sejam visceralmente importantes. Não por um espontaneismo qualquer, para ser mera novidade, mas por ser aquele motivo que vai realmente mover sua reflexão. Aí todo o trabalho de rigor acadêmico parece fazer outro sentido. É difícil dizer isso, porque a minha tese implicou muitas pessoas e eu acho que o tema era muito importante em si mesmo, a personagem que eu tratei, e conheci, uma pessoa espetacular. Mas… bem, se eu pudesse escolher outro tema, talvez o fizesse. É um texto que não utilizo em aulas, de que nunca falei em cursos ou palestras, e sobre o qual publiquei poucas coisas… ou seja, perdi uma oportunidade única de fazer um texto de fôlego. Isso do ponto de vista pessoal. Mas o texto está lá, eles têm vida própria como estruturas argumentativo-históricas. Ele existe, talvez tenha até ajudado na pesquisa da área, o que não é desprezível. Não sei. Realmente, não trabalho mais com aqueles temas e nem sei se é algo que ajudou ou não. Espero que ajude. Nesse sentido, os novos pesquisadores é que vão alterar a perspectiva do tema. Eu tento pensar que os textos são estruturas em si mesmas, que as pesquisas vão além do nosso interesse (e apreço) pessoal, que elas têm um potencial próprio, que agem para além de seus autores, e mesmo contra eles. Nesse sentido, o texto é um em si, essencial, é o que é.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu tenho um projeto de escrever um livro experimental sobre Espinosa e a língua portuguesa do século XVII imanente à argumentação do filósofo. Seria um texto ao mesmo tempo de filosofia e do problema das diferenças intrínsecas a cada língua, a cada forma linguística de articulação do pensamento. Penso que ele teria uma ressonância, ainda, em questões sobre a perspectiva atual do conhecimento, encapsulado na forma amesquinhante do paper, que, indo além, fala de uma constante reducionista da nossa ideia de cultura, de civilização, de linguagem, de ciência. O latim, a língua de escrita de Espinosa, o seu inglês, por assim dizer, e a forma geométrica de exposição do filósofo, de algum modo fazem um expurgo da linguagem como linguagem, mas, por isso mesmo, a questão se faz central, pois se põe como intransparente a si mesma, como histórica, cultural etc. Mas é um projeto muito quimérico, sequer sou especialista na filosofia de Espinosa, uma área muito bem representada no Brasil. Só escrevi uma página até agora, em um caderno meio perdido.
Um livro que eu gostaria que se escrevesse seria um romance sobre o que vem acontecendo no Brasil. Um romance no qual as tensões atuais fossem expostas em suas contradições suspensas.