Priscila Lopes é escritora.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Adoraria ter uma rotina matinal para a escrita. Ou talvez esteja romantizando. O fato é que hoje eu tomo café e me sento para trabalhar na área de customer experience, que foi onde me profissionalizei para me remunerar. Não estabeleci com a escrita uma relação de dependência financeira. Escrevo porque preciso escrever, não porque preciso ganhar dinheiro escrevendo. E isso é tão libertador quanto duro de se admitir. Mas não chega a ser decepcionante.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Escrevo mais à noite. Mas escrevo melhor pela manhã. Que é quando estou desintoxicada dos excessos da vida e de seus ruidozinhos existenciais. Geralmente leio antes de escrever, a não ser que já tenha uma frase inicial em mente. Quase sempre é poesia. Sinto que a poesia desobstrui e expande. E sou bastante influenciável pelo clima. Se chove, talvez soe mais melancólica ou subjetiva. Se faz sol e venta, pode fluir um texto de natureza mais mutável e inquieta. E por aí vai.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Faço questão de deixar as metas para a empresa onde trabalho. Escrevo quase todos os dias porque é como um corpo que precisa de drenagem: se não faço, não morro; mas me dói tudo. Quando fui colunista do jornal Notícias do Dia por um ano, aqui em Santa Catarina, eu precisava encaminhar o texto até sexta-feira toda semana. Mas tinha semana que chegava a sexta e eu ainda não tinha conseguido inspiração para minha crônica. Por mais que tivesse me esforçado, às vezes até saindo para caminhar a esmo pelos quarteirões perto de casa, a ideia simplesmente não vinha. Batia um desespero. Eu pensava: agora ferrou, dessa vez não vai sair nada mesmo! Mas era me sentar para escrever que fluía: sob pressão já fui capaz de escrever textos admiráveis e textos de qualidade bem contestável. Para mim, não tem certo ou errado quanto à rotina. Depende de onde você quer chegar com isso. Eu não quero chegar a lugar algum. Escrevo porque é a forma como me organizo no mundo, como o enfrento. Porque escrever me conta mais sobre mim do que estou de fato contando a quem vai ler.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Nem sempre começo do início. Mas só percebo depois que já avancei bastante na escrita. De repente, me vem uma ideia. Passo às vezes dias com essa ideia, dilapidando-a dentro da minha cabeça, esboçando frases, possíveis enredos. Finalmente paro para escrever. Enquanto escrevo, percebo o que me falta de pesquisa e anoto, mas raramente interrompo o fluxo. Termino e releio. Faço a pesquisa e adapto o texto. Releio outra vez, e me dou conta: isto é um conto. Não, isto é o capítulo de um romance. Preciso escrever alguns capítulos anteriores. Não, daqui sigo para os próximos capítulos. No caso do romance, que exige um domínio grande sobre linha do tempo e consistência de personas, eu uso atualmente o Trello para me organizar. É uma ferramenta gratuita na qual você pode organizar as informações e pesquisas de forma mais visual.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Sou bastante complacente comigo. Talvez por não enxergar a escrita como obrigação ou, minimamente, como ofício. Escrevo por prazer, então? Em parte, sim. Mas escrevo porque não posso conter. Antes de aprender a escrever, eu contava histórias. E desde que aprendi a escrevê-las, parei de fazer contação porque o que eu queria era na verdade me contar histórias, e a escrita me possibilita isso. Mas tenho sol em virgem e faço portanto constante autoanálise, e tenho tamanha autocrítica que ouso dizer que a maior expectativa que busco alcançar é a minha própria. Por isso publico tão pouco. Por muito tempo também escrevi à sombra de corresponder à expectativa da minha família e de meus mestres em geral, de escritores que admirava. A terapia, a maturidade e a independência financeira contribuíram muito para me desfazer desses pesos, e seguir na escrita mais leve e honesta comigo mesma.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso meus textos incontáveis vezes, e em todas elas faço ajustes. Nos últimos oito anos também costumo solicitar o olhar da minha companheira, que é jornalista e uma leitora bastante crítica. Eu encaminho o texto para publicação geralmente por exaustão: porque não consigo mais olhar para ele; dificilmente por considerá-lo pronto, uma obra prima. Tanto é que a cada oportunidade de republicá-lo, envio uma versão diferente.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu tenho um caderno de anotações sempre à mão. É geralmente nele que escrevo com assiduidade. É quase um diário, não fosse a quantidade de ficção que ponho lá. Até na forma como relato meu dia, me invento. Tenho enorme dificuldade de me ater aos fatos. Fora isso, se já estiver deitada quando o desejo de escrever chega, escrevo à mão mesmo: seja um poema ou trecho de romance. Caso contrário, escrevo no computador, direto no Google Docs, que é para não correr (nunca mais) o risco de extravio. Sim, mesmo tendo dito anteriormente que não tenho como hábito escrever com a finalidade de publicar, me preocupo em arquivar.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As ideias vêm de um interesse de entender, muito mais do que de um interesse de explicar. Ler é o melhor exercício para quem gosta de escrever e deseja se manter ativa. Então, procuro ler diariamente. E não me permito me fidelizar em um gênero literário: me desafio a variar bastante, mesmo que leia só um trechinho. Fora isso, ouço muita música. Sinto enorme prazer em descobrir artistas, dos mais variados gêneros e países. Tenho admiração pelo rap. Embora a minha poesia de hoje não costume levar rimas, acho admirável como as palavras são trabalhadas através do rap. E assisto também a filmes e documentários que acabam atuando como plataforma para o que vou vir a produzir em seguida e nem sei ainda.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Posso soar contraditória, mas eu teria me incentivado a publicar e me expor mais. Tenho textos que a Pri Lopes de 37 anos não vê mais sentido em publicar, mas que aos 23 teriam surpreendido. Mas buscaria um bom editor, e não apenas uma editora a fim de me publicar. Para mim, o trabalho do editor é um exercício doloroso para o ego da autora ou do autor, mas fundamental para o seu desenvolvimento. Com o tempo, me tornei menos disposta a dividir o que escrevo, mais questionadora das minhas motivações. Quando jovem, eu tinha o ímpeto, mas tinha também a insegurança, e ela acabou prevalecendo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu adoro encomendas de trabalho em que preciso me inspirar em outros formatos de arte para escrever. Já fiz alguns poemas inspirados em arte visual, por exemplo, e adoraria me lançar em um projeto assim. Também me atrai muito a ideia de um livro de contos inspirado em depoimentos de mulheres. Toda vez que vejo um documentário no estilo do Eduardo Coutinho, me recordo e recobro disso. Agora, o livro que eu gostaria de ler provavelmente já existe, eu é que não dei conta de chegar nele ainda. Cada vez que me deparo com uma leitura que mexe comigo, imediatamente penso: gostaria de ter escrito isto. Esse é o livro que eu gosto de ler.