Prisca Agustoni é poeta e tradutora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Muito do que irei comentar ao longo da entrevista se relaciona com o fato de eu ter uma vida bastante complexa, atrás da simplicidade do cotidiano: sou mãe de dois filhos, tenho uma vida familiar que prezo muito e que tento manter saudável (no sentido de valorizar as pequenas e grandes coisas do cotidiano), sem contar que tenho parte da família morando fora do Brasil, o que também é um aspecto que me exige tempo e dedicação; além disso sou professora universitária (dou aula, pesquiso, oriento um bom número de mestrandos e doutorandos e eventualmente desempenho tarefas administrativas, quando não tem jeito de fugir delas!), e por fim, escrevo e traduzo. Então fica difícil ter uma rotina muito arrumada, não é?
Em geral, ajeito minha rotina semestralmente, de acordo com meu horário de trabalho na universidade e com os compromissos incontornáveis dos filhos que crescem.
Sou por natureza um ser noturno, e antes de eu ter o segundo filho, conseguia trabalhar noite adentro. Mas agora tudo se complicou bastante. Em termos gerais, durante o ano escolar, consigo reservar as manhãs, entre 8h30 e 11h30, para a escrita. E muitas vezes, algumas noites, entre 21h e meia-noite. Minha grande sorte é que sou uma pessoa que precisa de poucas horas de sono! (risos)
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não tenho hora especial ou ideal para a escrita, nem ritual (afora o café com leite sempre do lado). Mais do que a hora do dia, sinto que sou mais produtiva quando tenho a calma (interior e exterior), o silêncio onde nada ecoa na cabeça – nenhuma tarefa iminente, nenhuma responsabilidade pendente, nenhuma resposta urgente -. Esses momentos são raros, mas estou começando a aprender a me respeitar mais, a me isolar mais e deixar o resto correr. Estou me colocando no centro da prioridade. Não é uma estratégia organizadinha, é a única chance de encontrar uma saída para fazer algo que é essencial para mim e para o meu bem-estar. E como consequência disso, a convivência com os outros se torna mais leve, mais intensa.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Depende do que estou escrevendo no momento e de como anda minha vida. Como professora universitária, há momentos em que se condensa muito trabalho, muitas leituras, orientações. E se eu tiver uma meta diária, é frustração na certa. Portanto tento não me impor metas nem expectativas muito altas. Mas tenho, claro, minhas metas internas. Os desafios que mantêm vivo o fogo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A resposta varia de acordo com o que estou escrevendo ou pretendo escrever. E da língua na qual vou fazê-lo (pois escrevo em italiano, francês e português, e sempre projetos distintos). Há livros de poemas que nascem a partir de um fato vivido que é reelaborado, mas que fica sempre como um eixo central e condutor. Há livros que partem daquilo que não vivi e se servem com total liberdade da imaginação para abrir caminho. E há livros que nascem mais pensados, como projetos ao redor de um tema ou de algo que pesquisei longamente. A dúvida, talvez a única, que me trava um pouco no começo, é qual será a língua que vai hospedar tal ou tal outro projeto ou poema ou ideia. Às vezes a resposta é natural, o texto já surge na língua que será a escolhida. Outras vezes preciso deixar a ideia descansar um tempo, mas há gradações diferentes de representação do mundo que podem entrar num texto meu de acordo com a língua que vou usar. É um ateliê meio confuso o que está na minha cabeça, mas que tem sua lógica que funciona instintivamente, e confio nela, a deixo falar mais alto.
Em geral tenho sim muitas notas, muitos cadernos, anoto frases, ideias e projetos de livros onde der, muitas vezes quando estou no ônibus, ou nos cafés na cidade. Gosto muito desse movimento de estar na multidão anônima, isso move meu pensamento, e depois me recolho, no isolamento da casa e do verde, para extrair o sentimento/ pensamento experimentado naquela circunstância. Adoro esse ir e vir da vida fora, “real”, para o dentro, da multidão para a solidão, da gente para o indivíduo.
Mas nunca vivo o começo como um trauma, algo difícil. É um território onde me sinto bem, onde ficaria mais tempo, se tivesse. Uma casa que sempre está aberta à minha espera, a escrita.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Bom, não tenho grandes travas da escrita, a não ser o que comentei antes. A língua. O som íntimo da língua. O grau de vivência do mundo a ser criado que cabe numa língua (nasci na Suíça italiana onde vivi até meus 18 anos mas onde falava o dialeto em casa e o italiano na escola e na rua; vivi quase 10 anos, talvez os mais marcantes na minha formação, numa cidade francesa e o francês é uma língua que aprendi com 8 anos de idade, e que amo profundamente, mas foram 10 anos durante os quais, por razões pessoais, praticamente só se falava espanhol e francês ao meu redor; e moro no Brasil faz 15 anos ou mais, e esta é a língua do amor e recentemente da raiva, no contexto político, é a língua que uso com meus filhos, com aquilo que me é mais íntimo, e no entanto, é uma língua que não nasceu dentro de mim como criança, e sim já como uma adulta. Isso muda muito a relação com uma língua, e acho isso fascinante). O plurilinguismo é uma realidade concreta que me habita e me formou inclusive afetivamente e psicologicamente. Viver durante quase 30 anos falando 3 ou 4 línguas ao longo do dia, com naturalidade, acaba sendo uma experiência de radical estranhamento com relação à noção de pertença a uma língua única como única moradia, a uma tradição única, a uma maneira única de falar sobre o mundo.
Afora essa questão de natureza íntima, não tenho grandes travas quando estou escrevendo. Tento ser fiel a uma noção e uma expectativa minha de “qualidade” literária, dialogando com as autoras e autores que me inspiram, vivos ou mortos.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Boa parte do tempo envolvido na “escrita” de um texto é dedicado à releitura, revisão, correção do mesmo. Sim, tenho alguns leitores dos meus textos escritos em português, em italiano também. Valorizo isso muito. Em casa, com meu companheiro, também poeta, era mais comum a troca de originais antes da chegada dos filhos. Agora temos mais dificuldade em partilhar os textos. Mas acho saudável que tenhamos outros olhos leitores, externos ao convívio familiar.
Em francês é mais difícil, estou fora de lá faz muito tempo. Os dois livros que publiquei em Genebra pela Editora Samizdat (uma editora muito respeitada no campo da poesia), chegaram às mãos das editoras (duas irmãs gêmeas artistas sexagenárias, mulheres fantásticas!) sem terem tido prévia leitura. De onde minha profunda alegria e gratidão pela aposta em me publicar (em 2012 e em 2015). É até estranho quando penso no meu trabalho em francês: radicalmente solitário, talvez por estar vivendo fora do contexto de produção contemporânea (embora o acompanhe de longe, tentando sempre me atualizar), essa solidão me deixa menos sujeita à auto-avaliação, digamos que me sinto mais livre na escrita. Tanto em poesia quanto em prosa, pois estou trabalhando também num texto em prosa em francês, devagarinho.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Anoto muitas coisas à mão antes, em cadernos, folhas etc. Mas o processo de escrita é todo realizado no computador. No entanto, para reler, anotar, corrigir, revisar, preciso do papel e da caneta.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As ideias surgem do olhar que lanço sobre o mundo; e que o mundo me devolve. Das perguntas que não encontram respostas. Da atitude de escuta, fundamental, para a vida, nesse movimento que já comentei do fora para o dentro e vice-versa.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O que mudou foi a intensidade da escrita. Hoje sinto que tenho muito mais a dizer, com mais agudez, talvez, e muito menos tempo. Mas digo isso sem recriminar ou lamentar o que “poderia ter feito mais e não fiz”, etc. Acho que é parte do nosso percurso humano, não é? Ganhamos em certa sabedoria, certa lucidez diante da vida, e isso se traduz numa visão de mundo mais densa, mais encorpada. Mais angustiada, inclusive.
Leio meus primeiros textos publicados com serenidade, me reconheço em parte neles. Reconheço a pessoa que ali está e que fui e que me ajudou a me tornar o que sou hoje. Gosto deles. Já quando olho para a autora que fui vinte anos atrás, quando comecei a publicar, diria a ela, tomando um bom café, me servindo de muito humor e muita ironia: “vem cá, querida, senta aqui. Relaxa. Vamos conversar. Se prepare a ter paciência. Vais encontrar muitas barreiras, muita cordial indiferença, pois ainda não é comum mulher que pensa e entrar de sola no mundo altíssimo da literatura e dos amiguinhos literatos. Mas vai fundo sim. Continua teimosa e perseverante como és, não abaixe a cabeça e não se venda fácil ao que vem fácil. Não perca a capacidade de ser plena na vida, a escrita vem por contágio. Ria muito por dentro, que a frustração corrói inclusive a escrita. Não se envergonhe em ser apaixonada pela vida, como és, vai ser sua salvação, sua quota de vacina e verdade diante dos ossos do ofício. E acima de tudo: tenha paciência e nunca desista”. E daria uma boa risada!
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Ah, muitos. Muitos projetos me esperam em fila na porta do ateliê. E se tiver a sorte que teve minha avô, de viver 100 anos com a cabeça de uma mulher de 40, ainda conseguirei fazer boa parte deles! No momento estou empenhada com a finalização do meu primeiro romance escrito em português. Um momento especial, de virada. Que espero inaugure uma nova fase de outros textos narrativos.