Pók Ribeiro é poeta, escritora, professora, coordenadora do Coletivo “Vozes-Mulheres: além das margens”.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo o dia bem devagar… Pela manhã sou mais lenta mesmo, mas sempre busco um café amargo para estimular os sentidos e organizar as ideias. Não gosto de rotinas, mas o início das minhas manhãs são bem mecânicos e silenciosos: Café, olhar vago, trabalho…
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sem sombra de dúvidas, rendo mais e melhor a partir do fim da tarde. Tudo faz mais sentido e vou acelerando conforme a noite vai chegando. Para a escrita, a noite e a madrugada são os melhores horários, eles me permitem uma maior conexão com o Universo e com as vozes que se avolumam em mim. É pela noite que consigo refletir, sentir as energias, analisar as conjunturas sociais e políticas, sentir mais…Consequentemente, sentindo mais a escrita tende a fluir.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não estabeleço metas ou prazos para a escrita literária, mas busco estar conectada com as energias que me movem para sentir e escrever. A criação literária, para mim, tem vida própria, cheiro, som, sabor e suor; a palavra chega, se apossa do meu pensar, da minha mão e vai acordando outras palavras, enquanto o texto nasce costurando olhares, sentidos, reflexos das vivências em meu corpo social e das múltiplas experiências que atravessam a nossa existência de mulher, nessa período cada vez mais obscuro. Já para a escrita acadêmica, busco escrever um pouco por dia ou por período estabelecido.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo de escrita literária é bastante livre, no sentido mais amplo de liberdade mesmo, e assim a criação flui melhor. Em geral, a transposição para a escrita se dá depois de algum processo de reflexão/meditação/observação de algo que me toca, seja de modo reconfortante e prazeroso ou despertando minha indignação. É meio como sentir, deglutir e depois derramar no papel ou na tela; então o texto sai logo inteiro, total, como um parimento mesmo, em que uma palavra ou frase vai puxando outras, incontinentemente. Daí, depois, já aliviada do sentir, faço algumas análises linguísticas e estruturais para, enfim, organizar o produto final, mas nada que lhe altere o sentir primeiro.
Na escrita acadêmica é meio no caminho diverso; leio bastante sobre os temas, anoto, rabisco, pinto, faço esquemas no caderno e a lápis que só eu entendo ( quando entendo) e só depois me ponho a escrever e, ao final, também reviso, desisto, recomeço…
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Evitar projetos longos me ajuda a seguir mais leve…Tenho buscado me conectar ao presente, entendendo cada vez mais a necessidade de pensar, agir e escrever sobre este tempo-espaço, sobre a urgência do agora. É que como a minha escrita é mais um exercício de ser e viver, ela centra-se neste instante de ser e sentir que se completa.
As travas sempre surgem, sobretudo, quando a gente sente demais… É como se as palavras fugissem, se amotinassem e deixassem espaço ao silêncio ensurdecedor. Hoje, entendo a importância desses momentos de não criação e de ausência de criatividades e o valor desses instantes de aridez para não seguirmos mecanicamente, engolidos pelo fluxo de produzir por produzir. A pausa, o vácuo, nos sacodem e incitam à (re)conexão com nós mesmos e com o mundo, consequentemente, com a retomada da escrita.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
É bastante relativo… não há uma regra para revisões, reescritas. A depender do texto, reviso apenas uma vez e sinto que ele já pode voar sozinho. Em outras situações, entretanto, o texto carece de um período de convalescência e de releituras, até que esteja pronto. É o texto quem diz. O texto também diz se quer ser compartilhado com algumas pessoas próximas, antes da publicação ou se quer se resguardar. Eu sempre escuto as palavras.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Hoje, escrevo quase tudo no computador ou no celular, aproveitando, inclusive, quando as ideias chegam em situações inusitadas. Porém, não abro mão dos caderninhos, lápis de cor, canetas de várias cores, eles sempre funcionam para dar uma forma à palavra que se recusa a ser escrita. Gosto muito dessa possibilidade semiótica de criar e sentir.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Sinceramente, eu não saberia determinar de onde vêm minhas ideias… elas chegam e pronto! Entretanto, elas estão permeadas de sons, cheiros e formas das minhas vivências pessoais e sociais, do meu contato com a espiritualidade, com as mulheres de mim, com as experiências em sala de aula, em contato com jovens invisibilizados e silenciados pelo sistema e, sobretudo, da minha luta pelo direito das mulheres serem o quê e como quiserem ser!
Em cada momento sou tocada, provocada, por algo que pode vir de uma notícia , da contemplação do céu, de uma memória de infância, de um comentário obtuso numa rede social, de uma leitura ou da dor pélvica; as ideias vêm da existência mesmo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Mudamos muito! Sendo minha escrita esse processo de codificação da existência, é natural que ela vá se modificando comigo, com os meus sentidos e sentimentos, com o aguçar do meu olhar para determinadas direções e com o corte de alguns elos não produtivos. Creio que minha escrita tomou um corpo mais denso, assumiu uma poética-política de resistência e enfrentamento aos padrões. Esta escrita atual é resultado daquela de anos anteriores, ela é fruto de um processo, constante, de ressignificações. Então, se eu pudesse voltar àquela menina escrevente das primeiras linhas, diria para ela seguir firme, teimando, convicta dos seus ideais.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Quero muito poder produzir e lançar, junto como mulheres escritoras independentes, antologias, coletâneas de suas obras literárias e ampliar os espaços de visibilidade e dizibilidade dessas mulheres.
Um livro que eu gostaria de ler e ainda não existe? Hum…Talvez, ele já tenha sido escrito em um caderninho, em folhas avulsas de papel ou só esteja montado nas ideias de alguém, sem espaço e voz para se concretizar e circular. Então, eu gostaria mesmo é que todas as pessoas pudessem escrever, produzir e circular seus livros. Logo, teríamos mais leitores/as despertados/as e satisfeitos/as.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Quando se trata de projetos maiores, como um livro ou sarau, por exemplo, toda a produção é planejada previamente, revisitada, analisada, mas sem travas. O planejamento é apenas uma sistematização das ideias e dos sentidos que fluem.
Tenho mais dificuldade em encerrar, parece que a última frase/verso sempre foge e outras se achegam ocupando seu lugar.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Tento sempre ir realizando aquilo que é mais urgente, mas geralmente sou raptada por aquele projeto ou texto que mais ganha vida e toma as rédeas de si mesmo. Confesso que a pluralidade; estou sempre lendo dois livros ou mais, ao mesmo tempo, escrevendo textos diferentes ao mesmo tempo, pensando em criações multimodais, gravando e editando poemas em vídeo e áudio, atuando em mais de um projeto e, nisso, as tecnologias digitais facilitam bastante.
O que motiva você como escritora? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Escrevo para (sobre)viver! Escrever é mesmo uma necessidade vital. Escrevo para não perder o fôlego, a fé, a força. Escrevo para acalmar a fome e ecoar os gritos abafados. Escrevo para (re)existir!
Não sei bem mensurar quando passei a me dedicar, de fato, à escrita, mas minhas primeiras memórias me levam à infância/adolescência, quando escrevia em caderninhos coloridos, repletos de figurinhas, em papéis de cartas perfumados ou até nos troncos das árvores aquilo que eu sentia.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Demorei um tanto a compreender que eu não precisava seguir um modelo, me parecer com algum canônico, pois o que conta é a potência e vivência que se derrama na escrita. Entendi que devia ser eu em cada linha, em cada verso recitado, performado e, nisso, a escrita de Conceição Evaristo ou suas escrevivências, como ela mesma denomina, foram muito importantes. Também as escritas de Paulo Leminski, Hilda Hilst e Manoel de Barros foram me dando mais segurança para que eu seguisse o meu instinto criativo e existencial.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Eita!! Apenas três é castigo! (risos). Vou tentar:
Poemas da recordação e outros movimentos de Conceição Evaristo é um livro lindo e necessário, em que as vozes das mulheres ecoam em nós e nos chamam à reação, pela linguagem poética.
Toda Poesia de Paulo Leminski é uma coletânea fantástica, de tirar o fôlego, que nos mostra que na Literatura e na existência não cabe regra, mas liberdade!
O feminismo é para todo mundo: Políticas arrebatadoras de bell hooks é uma leitura fundamental para refletirmos acerca dos discursos dominantes, dos espaços construídos e da importância de garantirmos as vozes das mulheres em todos os espaços, inclusive na Literatura.