Pilar Bu é poeta, autora de Ultraviolenta (2017) e doutoranda em Teoria Literária pela Unicamp.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu não tenho rotinas especiais. Em geral acordo, como alguma coisa e vou trabalhar. Tenho quatro gatos e sempre acabo dando um xero neles ao me levantar. Eu sou uma pessoa meio péssima de manhã, há um tempo venho tentando readequar a minha rotina para ser um pouco mais do dia, por que eu sou muito da noite. A noite é sempre muito produtiva para mim, mas com mil compromissos, rotinas, doutorado, escrita, eu tenho tentado virar essa chave.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu trabalho muito bem do meio da tarde para a noite, gosto muito. Hoje não consigo mais produzir de madrugada, por causa de prazos e horários, mas era um momento ótimo também. Eu não tenho rituais específicos não. Procuro estabelecer metas diárias e semanais em virtude do doutorado em teoria literária que eu faço, organizar leituras, cumprir prazos e separar momentos para escrever poesia. Faço isso de maneira mais orgânica e plausível, para não me gerar frustrações. São momentos de pesquisa diferentes, a acadêmica e a criativa, não que elas não possam estar juntas e se borrar, mas são processos diferentes. Eu gosto muito desse momento de pesquisa, de leitura, de trabalhar a palavra, concentrar meus esforços físicos e emocionais. Às vezes a gente está muito na gana de terminar e esquece que o durante é muito importante também. Escrever poesia, escrever artigo literário, demanda tempo, energia. Tem muito trabalho envolvido, eu não acredito em musas. Eu gosto de escrever com o corpo e com tudo que o meu corpo pode me dar, me abrir, criar possibilidades. É um processo de experimentação, sensorial.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu escrevo todos os dias muito em virtude dos projetos, das pesquisas e do doutorado, e acredito que existam muitas formas de escrita também. Então me concentro para separar tempo para a poesia, para trabalhar a palavra, para além do que parece mais sisudo, formal, como a academia. Acho importante ter esse tempo da escrita, nem que seja um pouquinho. As minhas metas são muito orgânicas, como eu já disse. Tem as que se estabelecem em virtude dos prazos acadêmicos e demandas de revistas e tem as da produção da minha poesia, para fechar meu segundo livro e criar outros projetos. Eu tento ser realista, respeitar meu corpo e meus momentos para que isso não gere frustração e tristeza. Procuro entender meus limites, literatura é trabalho, mas também prazer, vida.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu brinco que escrever é também ruminar. E nunca é muito fácil começar a escrever. Para trabalhos acadêmicos eu procuro fazer um esqueleto daquilo que quero dizer. Às vezes você pesquisa, elabora ideias, trabalha a palavra e não consegue fechar um poema, mas o exercício da escrita, que eu chamo de experimentos poéticos, é tão importante quanto escrever dez poemas numa tarde. Porque isso te dá chão, base, tranquilidade, é um sinal também de que tá fluindo. Tem poema que leva anos para ser finalizado. Eu guardo com muito amor a minha pastinha de experimentos, no computador ou os meus rabiscos nos cadernos.
Para o meu novo livro, o Bruxisma, eu cheguei num ponto em que estabeleci alguns temas dos quais eu gostaria de abordar, criei uma listinha com o que precisa ser escrito, o que precisa ser revisado e as coisas que tenho dúvidas. É um projeto, mas não é engessado e amarrado, é um esboço, daqui eu posso ir para qualquer lugar e é importante também perceber no meio do caminho se existe alguma coisa que é preciso abandonar. Ter esse esboço me mostra, por exemplo, que estou fechando esse livro, que estou concluindo onde quero chegar com essa poesia. É claro que muita dor e amor rolaram no meio do caminho. Percebi, por exemplo, que tinha uma parte do livro que não se encaixava, então tirei uns quinze poemas e penso em criar uma zine mais experimental e etérea, um outro tipo de construção poética. A composição tem disso, um certo processo de edição, de desamparo, de reconstrução.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Depois de muito bater cabeça eu entendi que não posso controlar tudo no mundo, é um pressuposto da vida, se deixar ir às vezes, ou se deixar ficar. Então eu lido como eu posso, vou ouvir música, me abrir pro mundo, ouvir histórias, o outro. O medo a gente sempre tem, eu que o diga, mas não posso deixar que ele me paralise, então vou criando válvulas de escape: gatos, música, amigos, compartilhar, dar aula de escrita, clube de leitura, essas coisas. Eu adoro escrever artigo acadêmico, então é um jeito também de me desopilar da poesia, ir para um outro lugar de escrita, pesquisar coisas que me desestabilizam, estudar. E faço muitas vezes o processo inverso também, uso a poesia como válvula de escape para a academia, que muitas vezes massacra e é opressora.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Nossa, isso é muito relativo. Uma coisa que é um ritual e eu nem falei antes e tem a ver com isso de revisar é ler a poesia em voz alta. Eu costumo me gravar recitando os meus poemas, daí vou acertando no ritmo, no tempo, na marcação, corto o que tá sobrando, incluo o que tá faltando, troco palavras e por aí vai. Eu tenho publicado muitos vídeos meus recitando, mas isso não significa que o poema está pronto. (risos)
O processo de revisão em si é bem intuitivo, porque sempre parece que tem alguma coisa para melhorar. Não dá pra fazer disso uma prisão, tem uma hora que o texto precisa ir pro mundo, escutar o que emerge dele é muito importante. Ir pro mundo para dar lugar ao novo, a novas composições.
Eu adoro compartilhar, essa troca é muito poderosa e eu sou muito disponível pra isso. Eu tenho várias pessoas para quem mostro meus escritos, algumas amigas escritoras com quem gosto de trocar figurinhas, meu companheiro, pessoas próximas que não têm nada a ver com a literatura, mas me dão um outro olhar. Esse semestre que passou fui monitora do Marcelino Freire, no B_arco, e foi maravilhoso poder compartilhar naquele grupo de escrita criativa, o ouvido atento e a escuta sensível são muito importantes para a composição de todos nós como leitores e escritores. É um desejo também voltar a dar aula de escrita e, mais do que isso, criar novos grupos de escrita e de leitura. A gente precisa se ouvir, criar redes, eu acredito muito no afeto que se mobiliza a partir daí. Escrever é um processo solitário, mas não precisa ser só isso, pode ser algo de potência, de encontro, que tem um viés de subversão muito importante e poderoso. Eu acredito muito em construção coletiva, transbordamento. Acho importante.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu uso os dois. Tenho vários cadernos espalhados por todos os lados, na cabeceira, na bolsa, na mesa, na sala. Sempre quero ter à mão. Ao mesmo tempo eu sou uma aficionada pela mancha do papel. Jogo o texto no computador e vejo como ele se comporta, como ele funciona, que mancha ele provoca. De certa forma é também um jeito de revisar. (risos) Eu não sou o ser humano mais versado em tecnologia, mas sou curiosa, gosto. Estou aos poucos alimentando meu canal no YouTube, o Ultra Pilar Bu. Isso de me gravar recitando poemas é muito engraçado porque é um outro lugar que se pode estar. Fico bem tímida, e eu nem sou tímida, mas a exposição me deixa num lugar diferente, é divertido. Gosto de me desafiar também.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm de tudo, do que o mundo e as pessoas me oferecem, do que eu ofereço a mim mesma e ao mundo. Sou muito sensorial, de ver, sentir, ouvir, tocar, e sou também uma leitora voraz. Isso de se manter criativa pode ser uma prisão também, então eu acho que o que eu cultivo é mesmo esse ouvido, essa coisa de recolher histórias, de me abrir e possibilitar.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que muita coisa mudou e está tudo bem. Eu sinto que sou mais segura ao criar poesia, projetos, ao estabelecer e reconhecer meus limites e ao entender o lugar disso tudo na minha vida. Hoje eu me sinto muito mais focada. Sobre a escrita da tese eu ainda estou em processo, não terminei. Daqui uns anos talvez possa me dar esses conselhos sobre hoje. Agora, se eu pudesse dizer alguma coisa para a Pilar poeta pré-adolescente, eu diria: “calma, você vai sobreviver e vai ser mais forte”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Nossa, eu tenho tantos planos de dominação mundial. (risos) Eu acredito muito no poder transformador da literatura e da escrita, tanta coisa pra fazer: fechar livro de poemas, fechar zine, criar projetos de leitura e escrita de mulheres dentro da academia e fora dela. Sobre a segunda pergunta eu também não sei, a capacidade de criação do ser humano é incrível, estou sempre aprendendo e me surpreendendo. Nenhuma leitura é igual a outra, existe sempre um ineditismo porque não somos as mesmas pessoas toda vez que lemos um livro. Acho que o que eu quero ver é mais e mais mulheres, negros e indígenas, LGBTs ganhando protagonismo, produzindo muito e sendo reconhecidos. A literatura ainda é um lugar de muita exclusão, ainda bem que isso está mudando, que barreiras estão sendo derrubadas.