Philippe Wollney é poeta, produtor cultural e editor da Porta Aberta.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Bem, fora períodos específicos que estão relacionados há algum tipo de escrita sob demanda ou cumprir uma data, as manhãs estão mais dedicadas as leituras, das mais diversas. Mas não tenho em si uma rotina de horários bem definidos para a produção literária. As manhãs são sempre de uma espécie de vazio ou predisposição mental (forma mais pedante de dizem), para receber, me deixar contaminar ou de se poluir.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não tenho um horário definido pra trabalhar sobre os textos, ou cria-los. Percebo que existem vários tempos, momentos da escrita. O processo de criação é muito vário, às vezes a ideia salta e você anota, às vezes é um fragmento aparece e você desenvolve (que pode ter vários caminhos, possibilidades estéticas), às vezes é algum projeto em desenvolvimento em que se precisa ir construindo. Nesse momento da escrita, qualquer hora é hora, se faz no momento que se tem ou quando a palavra, o verso, a imagem lhe assaltam. Às vezes é num momento inoportuno, quando se é possível captura-la, maravilha, quando não, se perde, mas eu acredito que sempre se é possível traçar um caminho, seguir abrindo a trilha (que não é uma boa imagem, já que geralmente não há nada de muito novo a se desbastar, talvez a melhor imagem seja, deslizar).
Mas, o que eu prefiro é poder possuir um bloco de tempo de horas, sempre que posso ou é possível, para ir tramando os textos. Quando falo de momentos da escrita, existem outros processos que me interessam, que são os de revisar, lapidar, refazer, costurar e destruir. Todos eles contribuem para o resultado final dos meus livros.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Bem, eu tento trabalhar diariamente nos textos, que pode ser criando, no sentido usual de começar com a página em branco, ou revendo, relendo, lapidando, relocando partes, agrupando os textos em pastas, encontrando seus vasos comunicantes. Ainda sobre começar da página em branco, que é apenas um jeito de começar, às vezes é a ideia que chama, porém de uns anos pra cá, é geralmente sobre alguma ideia ou tema, que quero desenvolver. Sento e imponho uma série de dez ou cinco poemas, por exemplo, ou se tenho uma ideia para um livro que estou interessando vou traçando, escrevendo, tentando. Quando digo que a página em branco é apenas um jeito de iniciar, é porque com o exercício de agrupar textos chega um momento que os poemas juntos começam a criar uma ideia central, começam a exigir ou melhor dizer, ofertar, oferecer caminhos e descaminhos. Escrever em série, como exercício, tipo dez poemas sobre alguma coisa, sempre pode render um livrinho, um zine, uma pequena publicação, que você pode inventa qualquer explicação ou justificação numerológica, cabalista, astrológica, cartomântica, que justifique a quantidade e soltar por aí.
Mas gosto de escrever, ou tentar escrever diariamente, como exercício, tipo como musculação (suor e excreção), escrever como desafio, como desaforo à rotina que externamente nos impõe, às escrever só pra dizer que parei, sentei a bunda e que me nego a ser sepultado pela vida lá fora. Já basta os infernos dentro da gente. Usualmente escuto a pergunta “porque escrever, já existe muita coisa”, aí penso, no sec. 1 a.c em Alexandria, se alguém lê-se um rolo de papiro por dia, se passariam 1500 anos e não se terminaria. No século 19 o mesmo questionamento sobre a oferta de leitura. O excesso não impede o que se tem que escrever. E outra coisa, essas palavras em excesso são de quem? Mulheres, negros, indígenas, periféricos, terceiro mundo? Eu ando cansado é de ler sim, as palavras da hegemonia.
Também gosto de escrever sob demanda, acontece mais com canções, quando algum parceiro pede uma letra sobre alguma coisa, ou manda uma melodia. Gosto de pensar que os textos também estão sempre disponíveis ao diálogo, a adequações rítmicas, e de imagens.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Na minha escrita um dos momentos que mais me dá prazer é a pesquisa, ou seja, ato da leitura investigativa, interessada. Meus livros estão impregnados de citações, e cada vez mais se radicalizam. Juntar citações é pra mim um modo de trazer outras vozes, assombrações, vultos, os mortos ou vivos (como queiram), para dentro do meu projeto. Nunca estou só, escrever não é pra mim um ato solitário, como se diz, meu nome é Legião, e somos muitos.
Gosto de pensar o livro, como um projeto, onde está incluso os meus textos, as citações, as ilustrações, a forma dos poemas e formato do livro. Tento deixar as publicações como um projeto que possa ser desdobrado em várias linguagens e que o livro impresso se pretenda acomodar as diversas linguagens.
Como já havia escrito anteriormente, minha escrita abarca não só a criação do texto a partir da página em branco, e também, agrupando ou destruindo textos, refeituras, reciclagens.
Eu sempre me deixo contaminar e me poluir com as leituras e pesquisas, não tenho problema com isso, e de certo modo até me interessa o espaço nebuloso entre o que se pesquisa e se escrever. Bem, meu nome se escrever com muitos “pês”, Philippe, desse nome troncado, gosto de um descrição que o Jomard Muniz de Britto faz do seu próprio trabalho, ele se referencia como “poético, político e pedagógico”, e também gosto de como Miró de descreve, “poeta, preto, pobre e periférico”, muitos pês, hein? Nesta pátria pária que nos pariu: poesia, pesquisa e publicação.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Bem, exceto quando alguém vai me pagar pra escrever para alguma coisa, e até agora ninguém me pagou pra escrever um livro de poemas, não sei te dizer sobre procrastinação na escrita. E sempre que me pagam, eu entrego o mais rápido dentro do possível que é pra receber logo.
Se referindo aos poemas, eu tento de algum modo, diariamente, escrever (de várias formas) ou pesquisar para alguma escrita. Acho que o trabalho sobre um texto ou livro não falta, gosto de pensar e agir desse modo no lugar de acreditar que tenho que diariamente escrever a partir da página em branco.
Bem, todo livro pra mim é um projeto, então ele sempre é uma articulação de muitas partes e camadas, textos, imagens, tipografia, formato do livro, e isso nunca é um trabalho rápido, e dessa forma foram feitos os meus livros, o “poemas de um eu cretino”,”caosnavial: ou o sabor sujo”, “mas esse ano eu não morro”, “ruinosas ruminâncias”, “trago é guerra dentro de mim”, e outros que ainda não estão publicados.
Sobre não corresponder às expectativas… queremos ser lidos, todos nós que estamos escrevendo queremos encontrar uma oportunidade para falar sobre nossos livros, encontrar pessoas que já tiveram contato com nossos escritos, já que essa porra toda também é vaidade, concordo. Mas, em nosso contexto, ou melhor, no meu contexto, essa questão é o que menos acaba pesando, porque como canta o Belchior “o meu delírio é sobre coisas reais”, então, se para escrever o termômetro for a quantidade de livros que se vende, a quantidade de resenhas, a quantidade de pessoas que nos retornam as leituras, se for por isso, não faria. E todos sabem disso, todos sabem que um escritor não vive de livros vendidos, vive de oficina, palestra, cursos, coisas do ramo. Eu me autopublico, até quando puder ou receber ou aparecer uma proposta melhor, mas pelo menos assim percebo mais de perto a relação com os livros, o quanto alguns saem mais, ou menos, quando por algum motivo se tornam revisitados, ou quando por preguiça eu os esqueço e os abandono.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Talho, costuro, reagrupo, refaço, quantas vezes me for preciso para ter como efeito uma inteireza, que procuro, quanto unidade, e também o texto possa estar alinhado ao conjunto do livro. Para mim, a unidade é o livro, que pode ter 10 poemas ou 80, mas a unidade é o livro, e a temperatura de satisfação é quando eles se resolvem na dicção, boa parte do que escrevo, mesmo tendo experimentações na forma, a grande parte é para ser resolvido na fala, no pulso da fala, no caminhar e apropriação pelo fôlego, pela musculação da língua.
Bem, eu mostro para algumas pessoas sim, muito mais interessado em possíveis falhas de fluidez. Como eu fico bastante saturado com o material, a gente acaba ficando cego em certas coisas que aparentemente o autor imagina não haver problemas. Para minimizar isso eu tento ler o material em diversos suportes e formatos. Depois de arranjados, geralmente faço no programa Word, exporto em PDF, releio, depois volto pro Word novamente com as correções, depois imprimo tudo, revejo, volto. Quantas vezes achar necessário.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo com o que tiver em mãos, celular, PC, caderninhos, folhas soltas, em folha de rosto do livro que tiver lendo. Escrevo no que tiver em mãos. O analógico e o digital pra mim se complementam e fazem parte do processo dos livros. Agora, respondendo a essa entrevista, percebo que nenhum livro, eu montei por estarem prontos só pelos cadernos. O computador me ajuda bastante em transitar, identificar e agrupar ou reagrupar os textos.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Costumo escrever sobre coisas que me inquietam, que me provocam, e que estão ligadas as minhas investigações e reflexões. Não é muito lógico, mas possui uma racionalidade por trás. As ideias vêm de muitos lugares e modos e situações, vivências, frustrações, derrotas, quedas, abismos, textos, imagens, cinema, música. Mas nas questões anteriores eu acredito que tenha falado desses processos e hábitos, mas de resumo é, lento, diariamente, e trabalhando manuseando os textos, de diversos modos. Há sempre trabalho, um livro é insaciável.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Poxa, nesse sentido não diria nada. Gosto de todos os meus erros de percursos. Eu sempre desconfiei de tudo e de todos, e nunca me achei, desde muito cedo, um autor satisfeito, sempre cultivei a dúvida. Mas no mesmo tanto, nunca me deixei ser intimidado para bloquear o meu desejo de comunicar e publicar. Mas o que eu gostaria é de ter tido acesso, no início da adolescência, era de uma boa biblioteca, de ter acesso a mais livros, e outros materiais, coisa que só me veio depois que tive acesso à internet.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Que ainda não comecei, é um romance ou novela, que ainda está como pesquisa. Eu passei muito tempo sem o menor interesse para prosa, os meus poemas internalizam muito de estruturas narrativas, então de certo modo, narrar está presente nos poemas. Mas do ano passado pra cá, me veio essa vontade. Tenho uma história, e acho que ela se resolve melhor como prosa, bem, ou pelo menos é o que espero, vai que no final se torne um livro de poemas. Por enquanto é um livro sobre os primeiros tipógrafos, ou os fracassos deles.
Já a pergunta sobre o que eu gostaria de ler, é foda, porque é sempre uma lista extensa, mas um que está pra ser o próximo, com certeza é “A letra e a voz” de Paul Zumthor, livro esgotado, que baixei, irei imprimir, encadernar e seguirá como mais um dos meus piratas.