Phelipe Sousa é poeta, escritor, compositor e estudante de Letras da Universidade Federal de São Paulo.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo o dia dormindo, então às cinco da manhã eu digo “boa noite” para alguém. Tenho dificuldade em dormir depois das nove da noite. Pode parecer romântico, mas é um problema. Problema que deve ser visto, revisado e resolvido, mas é que as coisas nem sempre saem como queremos. É preciso dizer a verdade. A verdade é que meu pai também é assim; de trocar a noite pelo dia. Não por romantismo, mas por alguma coisa que ainda não conseguimos resolver. Eu ainda pretendo, mas meu pai eu já não sei se conseguiria reverter. Teimoso. Quando acordo, leio algumas notícias, respondo algumas mensagens e depois perco algumas horas (às vezes muitas horas) pulando de vídeos para vídeos na internet. Acho que assisto mais do que leio e dizem que leio muito. É um vício também. Os vídeos. Um problema. Mais um. Vídeos de todos os tipos. De todos mesmo. Quando percebo já perdi algum compromisso, se não perdi, estou exageradamente atrasado. Outra coisa que me faz perder a hora é o banho. Fico muito tempo no banheiro. Não existe ninguém que tenha vivido comigo que não tenha reclamado disso: no banheiro eu não sei o que acontece; acho que fico repassando os vídeos que assisti; descartáveis, na maioria das vezes.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Acho que, no meu caso, o melhor momento para produzir um texto literário não depende da hora do dia, mas sim do nível da autoestima que nutri até o momento que decido escrever. Houve dias felizes nos meus textos em que eu produzi metade do conteúdo durante a tarde e outra durante a madrugada. Já concluí péssimas ideias assim, que depois foram descartadas. Por outro lado, já abandonei ideias de muita paixão por achar que “não tinha o direito de poluir uma coisa que poderia ser boa, mas que naquele momento se apresentavam na folha por um escritor medíocre”. Preferi as aspas para deixar claro que é um pensamento de terceiro, não meu. É um pensamento que passa, mas que me visita sempre que eu pretendo escrever alguma coisa. Às vezes eu consigo vencê-lo, às vezes não. Quando me sento para produzir um texto não organizo nada, deixo as coisas saírem grosseiramente. Não leio e guardo. Um tempo depois faço a leitura e então eu crio um roteiro. Aquela coisa de começo, meio e fim. Acrescento o que acho que é preciso e tiro o que acho que deve sair. Muitas vezes, o que decido que deve sair é a minha consciência e presença no texto. Então ele volta para o baú. Quando volto a trabalhar no texto, já enxergo com mais clareza, uma clareza de leitor. Assim tem “funcionado”. As aspas novamente porque funcionar é relativo. Muito relativo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Um sonho que tenho é poder escrever todos os dias. Não tem como colocar a culpa em ninguém, porque mesmo com a rotina metropolitana assustadora, eu poderia produzir mais do que produzo hoje. Acontece que, além do vício em vídeos de internet, também tenho um sério problema de desconforto. Não consigo escrever a mão coisas que não sejam curtas, como ideias para contos etc. Então meu consciente inventou uma tendinite. A verdade é que eu sinto dores mesmo, não consigo escrever com leveza, coloco muita força na caneta. Hoje o meu problema é também um computador; que não tenho. O que eu tinha se foi. Depois de onze anos de vídeos de internet, filmes piratas e documentos de Word inacabados. Estou ensaiando para comprar um novo, mas ai é outro problema. Eu ensaio muito e às vezes preciso usar dinheiro para outras coisas que se tornam mais importantes; calças, cuecas, filhos. Dinheiro é assim mesmo. Volta e meia eu tento estabelecer uma meta de escrita. Faço um blog e repito no espelho “Vou escrever um texto por dia”, mas acabo abandonando, esquecendo as senhas e eles se tornam cemitérios de textos no Google. Alguns eu nem sei mais como encontrar. Indigentes.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Primeiro a ideia. Depois eu despejo tudo que vier nas páginas. Deixo tudo adormecido por um tempo e depois retorno. Daí então parto para a pesquisa. Se vou falar de peixes, estudo peixes, falo sobre peixes, escrevo frases curtas sobre peixes e depois começamos a nadar. A pesquisa não é tão profunda quanto fiz parecer. Mas isso depende do destino do texto. Se for para a internet, sou tão desorganizado quanto ela; a internet. Se for para alguma outra coisa; não sei. Não sei mesmo. O que é mais importante no processo de criação literária para mim é justamente o fato de não perceber o movimento do pensamento para a conclusão da ideia. Não é “escrever por escrever” porque existe um compromisso. Não sei consolidar e dizer qual e como é esse compromisso, mas ele existe.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Um amigo poeta disse uma vez que sou “o contista procrastinador” e concordei com ele. Porque por muito tempo eu dividi ideias que as pessoas diziam serem maravilhosas, mas eu nunca as colocava no papel. Sempre fui melhor falando sobre elas. Não quer dizer que sou um contador de histórias também, porque já tentei e não deu certo. As minhas travas são determinadas por coisas que as pessoas que convivem comigo acham ridículas e eu compreendo. Minha casa, meu quarto, minha prateleira, tudo tem que estar arrumado e limpo. Caso contrário, não consigo me sentar para digitar uma linha que seja. E daí é que alguma coisa sempre está bagunçada. Eu preciso de silêncio, preciso estar sozinho para poder ler em voz alta, para encenar. Essas coisas nunca estão a minha disposição. Além disso, sou dislexo. Acho que meu consciente inventou essa dislexia para colocar em baixo do tapete os anos de drogas, álcool e Diazepam. Não consigo organizar as ideias muito bem e isso é uma coisa que a faculdade tem me ajudado (a força). Eu tenho ideias para dez romances. Fantasio sobre qual começar primeiro, mas é preciso ir com calma. Digo isso todos os dias e meu corpo se acostumou com isso. Ansiedade.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Os textos para internet eu faço do mesmo jeito que a internet faz comigo; posto e obrigo quem gosta de ler a errar comigo, se estiver errado. Os textos que faço fora dela; reviso do jeito que posso. Isso porque eu me conformei com a minha falta de gramática. Não lido bem com as regras mais básicas. Já tentei ler alguma coisa do Brechara para ver se consigo aprimorar, mas confesso que a prática textual, o erro e as rasuras acadêmicas, tem me ensinado muito mais. Claro, existe um preço; notas medíocres. Gramática é poder, concordo com Marcos Bagno. Eu prefiro viver nas sombras. Eu entendo isso como razoabilidade e não conformismo, mas esse sou eu.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Falo que sou analógico pela inabilidade com eletrônicos. Minha filha tem seis anos e sabe mais funções do android do que eu saberei. Mas não posso dizer que não uso, tudo hoje é computador. Meus rascunhos estão num bloco de notas de papel, mas no celular eu tenho quatro tipos diferentes de blocos também. Normalmente eu anoto frases no celular e quando estou escrevendo um texto, na parte final, busco o que deixei salvo no celular para ver se posso aproveitar alguma coisa; às vezes tenho sorte.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
De filmes, livros, músicas, vídeos, quadros, das doses de velho barreiro e conhaque, dos sonhos, das pessoas que conheço e das que não conheço, do programa do Datena, mas na maioria das vezes elas fazem upload e eu não sei explicar de onde vieram. Eu já tentei entrar nessa de me concentrar para sentir a criatividade, mas é um fluxo incerto. A criatividade vem e vai embora quando quer. Comigo é assim.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Dizem que minha escrita mudou. A forma, o vocabulário, a intensidade. Agora eu escrevo com mais comédia apesar da melancolia. Mas eu só consigo notar essa diferença quando leio um texto de dez anos atrás. Se eu pudesse voltar justamente nesse período diria a mim mesmo para ler mais, muito mais. Me faltou leitura, muita leitura. O problema é que já me conformei que não há como voltar e tem livros que eu nunca vou ler. Já foi.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho esse projeto mutante de contos que eu demorei muito tempo pensando e que tem um objetivo feroz; causar sentimentos violentos. E às vezes, pensando neles, tenho a sensação de que isso vai acontecer. Mas é preciso limpar minha casa, comprar um computador e sentir que tenho propriedade para colocar para fora. Caso contrário, não tenho o direito de começar. Um livro que ainda não existe e que eu gostaria de ler é qualquer coisa que esteja na mente do Evandro Affonso Ferreira. Se sua mente fosse um livro e eu pudesse ser uma linha que fosse do que ele escreve; me contentaria em falar somente aquilo que o parágrafo que ele me deu foi designado a dizer. Tenho certeza de que o título seria algo majestoso; algo como “De quando aprisionei um escritor medíocre em linhas de um romance carpideiro”. Seria um título do caralho!