Petrilson Pinheiro é professor do Departamento de Linguística Aplicada do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meu dia começa como o dia de muitos pais com filhos em idade escolar. Acordo cedo, tomo café com a família e levo minha filha para a escola. Gosto muito desse momento, pois em nossas viagens diárias relativamente curtas a caminho da escola, conversamos sobre suas expectativas de aula: “O que você acha que vai aprender hoje?”
Depois disso, então, vou para meu espaço de trabalho na Unicamp. Antes, porém, de enfrentar a labuta, tomo meu cafezinho matinal, que me prepara para meu longo dia de trabalho, e, como já virou também rotina, leio os e-mails da minha caixa de entrada que, em gral, não são poucos.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Aproveito justamente o período da manhã para escrever, pois confesso que é nesse período em que me encontro mais concentrado e criativo para produzir. A energia matinal, sem dúvida, me impele a escrever textos acadêmicos, que, por envolverem muita pesquisa bibliográfica, se desenvolvem melhor para mim logo nas primeiras horas do dia.
Bem, escrever um texto acadêmico (um artigo científico, por exemplo) engloba algumas etapas fundamentais: primeiramente, é preciso estar, de fato, disposto a escrever. Não acredito que a escrita surja de repente em nossa mente, como um passe de mágica. Longe disso, ela é laboriosa e exige muito mais dedicação (transpiração) do que inspiração. Não estou com isso dizendo que as boas ideias não são importantes. Muito pelo contrário. Elas não apenas são valorosas, como nos motivam a escrever. Todavia, não podemos simplesmente contar com elas, acreditando que o restante do processo é apenas uma consequência natural. Escrever é, pois, empenho, devoção e até sofrimento, mas, talvez por ser justamente tudo isso, é também uma experiência satisfatória inigualável.
A segunda coisa que destaco é que nunca começo a escrever quando sei que não terei tempo minimamente para realizar tal intento. Quando, então, começo a trabalhar em um texto, não delimito rigorosamente o que vou escrever e até que parte vou chegar. Procuro deixar-me à vontade, pois o desenvolvimento da escrita vai depender do que estou escrevendo e de como estou no dia.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Uma regra básica que tenho é que, se não vou ter pelo menos duas horas corridas (com pequenas interrupções previstas, é claro) para me dedicar ao texto, eu nem o inicio. Normalmente, começo a escrever lá pelas nove da manhã e vou até a hora do almoço, que pode variar dependendo do relógio do meu estômago. A fome é, de fato, o melhor alarme que tenho para me avisar do fim da minha labuta matinal linguajeira.
Raramente consigo escrever no período vespertino. A vida de professor universitário não é fácil. Nós nos desdobramos em várias atividades acadêmicas, algumas (infelizmente, não poucas) são bastante burocráticas, embora necessárias. Por isso, quando não estou ministrando aulas, procuro, dentro do possível, reservar minhas manhãs para escrever textos. Como isso nem sempre é possível, complemento minha jornada de trabalho no período noturno. No final das contas, cumprir minha meta é conseguir garantir um tempo exclusivo para sentar em frente ao computador para escrever, mesmo que esse tempo não seja aquele que gostaria de ter.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Se há uma coisa que aprendi com a experiência de escrita acadêmica é que as ideias não provêm do nada; elas são construídas sempre com base em outras ideias, conceitos, experiências empíricas, experimentais e/ou teóricas. Por isso, não há como escrever um texto acadêmico sem se reportar aos conhecimentos prévios e às múltiplas vozes que os constituem. Isso é o que o filósofo da linguagem Mikhail Bakhtin chamaria de “polifonia”, que é, em essência, o princípio composicional de um texto, que congrega em si uma multiplicidade de vozes e mundos, sem a qual a própria escrita não existiria.
Em termos práticos, procuro antes de tudo montar um esboço do que vou escrever, trazendo como aporte possíveis vozes que vão compor o tecido do texto. Algo que ajuda é montar uma espécie de “banco de dados bibliográficos”. Tudo aquilo que leio e que pode ser de interesse para algum texto que estou escrevendo ou que estou pretendendo escrever vai para pastas específicas do meu computador. Trechos interessantes de livros e artigos que posso vir a usar como citações são salvos com marcações e anotações específicas, que muito me ajudam no momento em que preciso recuperá-los para compor meus textos. Se os livros são impressos, copio para o computador ou indico as páginas dos trechos que podem ser usados futuramente.
Essas pesquisas e registros bibliográficos são primordiais para construir um esboço do texto que escreverei, pois, além de ser um passo fundamental no processo de escrita de um texto acadêmico, que, como disse acima, precisa estar embasado em outras referências, também me ajuda a realizar a tarefa que para muitos, inclusive para mim, pode ser difícil e até hercúlea: começar um texto.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
O primeiro ponto dessa pergunta, de como lidar com a questão da procrastinação em função do medo de não corresponder às expectativas, é particularmente interessante para quem tem como ofício produzir textos acadêmicos. Digo isso porque, embora todos nós, professores universitários, saibamos que escrever artigos e livros acadêmicos seja parte importante do nosso trabalho, cada um de nós sabe o quanto também somos cobrados por órgãos de fomento, cuja lógica quantitativo-produtivista nos impele cada vez mais a produzir, produzir e produzir, sem que a qualidade e muito menos o retorno aos maiores interessados daquilo que se produz sejam necessariamente a principal motivação. Daí, resulta uma pergunta fundante para todos nós que produzimos conhecimento científico: o quanto desse conhecimento, de fato, retorna para a sociedade, não se limitando a ser usado para “engordar” o currículo lattes de professores e pesquisadores?
Essa pergunta está, a meu ver, fortemente relacionada à questão da procrastinação e do medo de não corresponder às expectativas, que, não raro, permeiam o meio acadêmico. Tudo isso, somado às nossas múltiplas tarefas de professor universitário, pode se tornar um óbice para desenvolver projetos longos, como escrever um livro, por exemplo, cuja elaboração demanda um tempo de estudo e dedicação considerável, que muitas vezes não temos.
Agora, quando se tem que trabalhar em projetos longos, é importante também montar uma agenda de compromissos de escrita, como, por exemplo, quanto vou escrever por dia (parágrafo, parte, capítulo?). Isso ajuda não apenas a estabelecer prazos, como também a cumpri-los, o que, no nosso contexto acadêmico, como disse acima, é, de fato, algo fundamental.
Bem, lidar com essas questões não é tão simples, mas creio que o que se deve fazer – e é o que tenho feito há vários anos – é continuar trabalhando, sempre procurando priorizar o que tem que ser feito, mas, é claro, sempre tentando juntar o “útil ao agradável”, já que é preciso, antes de tudo, escrever com prazer.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Revisar textos é algo interessante. Digo isso porque, em princípio, não parece ser uma tarefa do escritor. É como se se tratasse de uma outra persona que nós, escritores, precisamos incorporar para que ela funcione. É, de fato, uma outra identidade que exercemos no processo de escrita. Por isso, para que eu incorpore bem a identidade de revisor, preciso de um certo distanciamento espaço-temporal do texto. Assim que termino de escrever um artigo, por exemplo, nunca faço a revisão dele logo em seguida. Deixo-o guardado na pasta do computador à espera de revisão por, pelo menos, dois ou três dias. Somente depois desse período mínimo de “quarentena”, de distanciamento do texto, me sinto mais apto a retomá-lo para realizar, enfim, a sua revisão.
No entanto, no meio acadêmico, é comum termos nossos trabalhos revistos por outras pessoas. Com efeito, isso ocorre, mas apenas depois de submetermos nossos textos à publicação em revistas acadêmicas, cujo processo de avaliação é feito por nossos próprios colegas professores e pesquisadores, que exercem a função de pareceristas ad hoc (eu mesmo atuo como parecerista em algumas revistas nacionais e internacionais). Essa avaliação por pares acaba, portanto, sendo fundamental no processo de publicação de textos acadêmicos, cujo olhar do colega, que nesse caso assume a persona de revisor, consegue nos apontar questões e problemas que nós, ainda fortemente ligados ao nosso próprio texto, muitas vezes não somos capazes de ver.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Hoje, devido à praticidade e facilidade oferecidas pelo computador, não escrevo mais rascunhos à mão. Creio também que a grande maioria dos meus colegas faz o mesmo. Como o texto acadêmico é fortemente embasado em outros trabalhos acadêmicos, cujas fontes têm cada vez mais migrado para o meio digital, torna-se, de fato, mais fácil escrever diretamente no computador com acesso à internet e a todos os recursos de recuperação e pesquisa de informação disponíveis tanto no próprio computador quanto na rede. Embora respeite e até considere que haja um certo charme em escrever à mão, não chego a ser saudosista quanto a isso, pois acho mesmo que precisamos escrever nos valendo dos recursos tecnológicos que nos possibilitam aprimorar nosso trabalho autoral. Também devo confessar que minha caligrafia se tornou quase ilegível.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Como os textos que escrevo lidam com linguagem e educação, a origem das minhas ideias é bem variada. Elas podem vir desde um livro publicado no século XVI a uma notícia ou mesmo um post publicado em uma rede social. Por isso, um dos meus principais hábitos é variar bastante minhas fontes de leituras, pois acredito que é justamente por meio dessa variedade que tenho a possibilidade de expandir as discussões que tento fazer em meus textos.
Assim, acho que precisamos estar abertos a “ler o mundo”, como dizia Paulo Freire. Ler aquilo de que gostamos, mas também aquilo que nos faz “torcer o nariz”. Leio, por exemplo, textos em sites com os quais não concordo nem um pouco do ponto de vista ideológico. Também leio certas páginas na internet onde sei que vou, muito provavelmente, encontrar informações incorretas, incluindo até datas e nomes de eventos históricos. Os dois casos me interessam particularmente, pois tanto as informações ideologicamente enviesadas quanto os “erros” encontrados em meio à miscelânea de leituras que faço acabam se tornando não apenas uma rica fonte de pesquisa como também estimulam minha criatividade como autor.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Se há, a meu ver, uma coisa que melhora com o tempo, penso que seja justamente o processo de escrita. Escrever é obviamente corolário de um processo mais amplo de experiência de vida pessoal, profissional, intelectual e afetiva. Na medida em que envelhecemos e nos tornamos mais experientes, portanto, nossa escrita também ganha em experiência, que vai desde o alargamento do nosso conhecimento de mundo às escolhas mais refinadas dos textos sobre os quais nos baseamos para escrever nossos próprios textos.
Por isso, quando leio um texto hoje, não o leio da mesma forma que o li há dez anos. Coincidentemente, há poucos dias atrás, reli uma boa parte da minha tese de doutorado e, como já não sou o mesmo Petrilson que escreveu aquela tese, algumas partes não passam despercebidas de algumas críticas. Obviamente, a primeira coisa que me vem à mente quando leio meus textos passados é fazer uma reflexão e até uma revisão sobre as referências que utilizei, posto que meu repertório bibliográfico se ampliou consideravelmente. No entanto, confesso que, para além da questão das referências, fiquei, com o tempo, particularmente mais chato em relação à construção do texto em si e, por isso, se pudesse voltar à época em que estava elaborando minha tese, eu diria àquele Petrilson para rever a coesão de alguns parágrafos.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Noam Chomsky, a meu ver, o maior intelectual vivo no mundo, disse recentemente algo interessante: “as pessoas se sentem menos representadas e levam uma vida precária, com trabalhos cada vez piores. O resultado é uma mistura de aborrecimento, medo e escapismo. Já não se confia nem nos próprios fatos. Há quem chame isso de populismo, mas na verdade é descrédito das instituições […]. A desilusão com as estruturas institucionais levou a um ponto em que as pessoas já não acreditam nos fatos. Se você não confia em ninguém, por que tem de confiar nos fatos? Se ninguém faz nada por mim, por que tenho de acreditar em alguém?”
Com efeito, as estruturas institucionais (governo, escola, igreja etc.) são o que, historicamente legitimam o conhecimento que subjazem nossas crenças, valores e atitudes. No entanto, em uma época em que as pessoas se desiludem com as instituições, muito do que acreditamos é colocado em xeque. Vou ainda mais longe: em um mundo em que o conhecimento se tornou cada vez mais efêmero e fugidio, é a própria verdade que se coloca em xeque.
Em um artigo publicado em 2014, apresentei e discuti o termo “multissinóptico”, que, a meu ver, caracteriza o momento sócio-histórico atual, em que não apenas poucos observam muitos (panóptico), muitos observam poucos (sinóptico), mas, também, paralelamente, muitos observam muitos por meio de uma multi-interação constante entre pessoas no mundo inteiro pela internet. Com isso, busquei mostrar no artigo como a era atual do “multissinóptico”, por meio de mudanças particularmente pela Web 2.0, não apenas traz transformações cruciais para as questões do “saber” e do “poder” no/por meio do ciberespaço, como também possibilita, particularmente, um repensar sobre questões relacionadas às práticas de letramento escolar.
Um ponto crucial que debati nesse artigo foi que a internet, por ser um ambiente aberto e público, pode ser útil tanto para revolucionar quanto para controlar; tanto para divulgar informações relevantes, quanto informações de caráter duvidoso (do ponto de vista conceitual, quanto ideológico). Assim, é necessário não apenas saber buscar informações na rede, mas, sobretudo, ser capaz de analisar e avaliar as fontes de informações disponibilizadas no mundo digital, bem como suas regras e convenções, isto é, compreender os diferentes mecanismos que regem a produção, reprodução e difusão do que circula na internet.
Bem, entender este mundo multissinóptico é, a meu ver, apenas a primeira grande tarefa. É preciso, pois, ir além. Creio que o grande projeto que se coloca para todos nós que pensamos e escrevemos sobre as práticas do mundo social – com o qual gostaria de trabalhar mais profundamente – é justamente como lidar com a questão ética na atualidade. Talvez pensar não exatamente em uma ética “para o mundo”, mas “com o mundo”; uma ética, portanto, que seja capaz de poder agir nas “entranhas” de contextos locais e globais, permitindo, assim, uma sociedade mais justa e democrática.