Pepita Sampaio é escritora e odontóloga.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não tenho uma rotina matinal diária porque me dedico a várias atividades além da escrita literária. Minha formação acadêmica foi em Odontologia, e ainda a pratico como professora universitária e ortodontista em consultório privado. Assim, cada dia da minha semana começa diferente. Lógico, que um bom café da manhã é sempre bem-vindo. Até porque, só me sinto desperta o suficiente após as nove da manhã.
Há dias em que ministro aulas desde as oito da manhã, há outros, em que me encontro com pacientes no consultório ao longo de todo dia. E há ainda aqueles, como hoje, em que me debruço nas teclas do laptop, sentada num cantinho da minha sala e aproveito o silêncio de uma manhã recheada de ausências temporárias, de filho e marido, para exercitar pensamentos e escrita.
Gosto dessa sensação de solidão criativa, embora, não seja sempre necessária para meu processo de escrita.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Pela manhã sou sempre mais lenta e sonolenta, mas prefiro escrever pela manhã. Admiro as pessoas que as seis já se exercitam enquanto o sol ganha os céus do Rio de Janeiro. Mas para mim, não é tão fácil. Quando não sou obrigada pelos compromissos a despertar por um cuco eletrônico, tendo a me deixar ficar na cama um pouco mais. E realmente, começo a ser produtiva, principalmente para escrita, após as nove. Daí para frente, o motor engrena e só desliga a contragosto, no mínimo, com as 12 badaladas que anunciam a madrugada.
Não sei se tenho rituais. Quando escrevo em casa, é importante uma certa ordem das coisas ao meu redor, um lugar para sentar com o laptop, um copo d’água a mão. Não gosto de mesas, prefiro sofás, poltronas, um tatame e até um chão fresco para sentar ou deitar. Vario lugares e posições.
Para escrever prefiro a cabeça vazia das influências externas e, portanto, o período da manhã é bem-vindo. Evito a leitura de jornais, e-mails, mensagens de todo tipo. Me desligo do fora e tento me conectar com o dentro.
Tento escrever sem preocupações ou direcionamento de qualquer tipo (mercado editorial, moda, exigências externas), deixo fluir o pensamento e espero o véu de palavras preencher as páginas. Às vezes, numa marcha lenta e constante, outras vezes, numa rápida avalanche que começa e termina num piscar de olhos.
Só depois começa sim meu ritual de lapidação do texto: ler, reler, pontuar, cortar, acrescentar, guardar na “gaveta”, desengavetar e começar tudo de novo. Lapidar o texto, isso sim é um ritual. E meus textos sempre, sempre descansam por um bom tempo. Tempo suficiente para o desapego, para um distanciamento que permita uma leitura mais crítica e menos passional.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Justamente por me dedicar a várias atividades profissionais não tenho uma meta de escrita diária. Mas percebo a importância de exercitar a escrita, minimamente que seja, para deixar a mente aberta a ideias e criações.
Não acredito em “inspiração” no sentido romântico que essa palavra pode dar ao processo de escrita. Acredito no exercício e na observação, no olhar apurado para coisas simples, para sentimentos, para o outro e para nós mesmos. É daí que nascem as provocações que despertam as palavras.
Assim, quando tenho algum projeto de escrita procuro me dedicar a ele um pouco todo dia. Ou, defino um ou dois dias da semana e mergulho nesse processo tentando abstrair-me do mundo. Mas as vezes, quando uma história ou personagem chega de supetão e escancara a porta, faço minhas anotações como e onde é possível.
Tento escrever o máximo de dias por semana, mas só consigo que seja uma atividade diária em período de férias ou em períodos concentrados, em que realmente mergulho na escrita e no desenvolvimento de algum projeto especifico.
Na minha concepção, leitura e escrita andam de mãos dadas, assim, se tenho uma “meta” diária é ler. Tenho por hábito ler dois ou três livros ao mesmo tempo, seja em papel (de preferência) ou digital. Funciona como uma terapia e um estímulo permanente.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo varia muito.
Muitas vezes, chega para mim primeiro uma personagem, a história ainda não está bem definida e vai se delineando à medida que a escrevo. Foi assim, com Aquarela, livro infantil e juvenil publicado em 2016 pela Editora Paulinas. Aquarela, nome da personagem principal me seguiu por algum tempo em sonhos e pensamentos até que eu contasse sua história. Antes disso, eu sabia apenas seu nome e um pequeno cenário no qual ela sempre aparecia, próximo a uma janela. Depois de algum tempo vendo Aquarela em todas as janelas para as quais eu olhava achei que estava na hora de sentar e escrever.
Outras vezes, a história chega pronta e é fácil transcrevê-la para o papel. Foi assim, com o Engolidor de espelhos, meu primeiro livro publicado pela Editora Rovelle em 2015 e que foi selecionado para o Catálogo da Feira de Bolonha do mesmo ano. Essa história narrada por um brinquedo já vivia em mim e na minha infância, chegou pronta, pulou para o papel no tempo de um suspiro.
Tem outras vezes, que empaco e só tempos depois consigo terminar. Foi assim com o Livroeiro. Comecei a escrever esse texto muito tempo antes de conseguir concluí-lo. Eu sabia qual história queria contar, mas não encontrava a melhor maneira de fazê-lo. Assim, deixei alguns parágrafos escritos e uma pequena sinopse da ideia original e tempos depois lendo uma proposta de concurso da FNLIJ, de estalo, soube como escrevê-la e terminá-la. Esse texto foi vencedor do prêmio Off-Flip em 2017 na categoria infantil e juvenil e foi publicado em 2018 pelo Selo Off-Flip.
Na maioria das vezes, como me dedico a literatura infantil e juvenil, meus textos são mais curtos. Assim, realizo a pesquisa durante o desenvolvimento da escrita e a medida que ela se faz necessária.
Mas acho que a pesquisa é uma forma de aproximação do autor com a história que ele quer contar. Não só a enriquece e a torna verossímil, mas pode ser a partir dela que um norte é determinado e que vai guiar a construção da narrativa.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Desde 2010 me dedico a um curso de estudo e produção textual na área de literatura infantil e juvenil no Instituto Estação das Letras. Foi com essa literatura que me identifiquei desde o início. E através desses encontros semanais me mantenho estudando e praticando. Funciona como um exercício e vínculo contínuos com a literatura, e isso já facilita e muito a lidar com as travas da escrita.
Tive muita dificuldade de enviar meus textos para editoras e concursos por medo de não corresponder às minhas expectativas. Mais difícil do que o olhar do outro é o nosso olhar crítico sobre o que produzimos.
Em 2011, tive coragem de participar do primeiro concurso de contos pela Editora UFF e tive meu texto selecionado. Mas só bem mais adiante, tive coragem novamente de enviar originais para editoras. Daí, foram publicados meus dois primeiros livros infantis: O engolidor de espelhos, 2015, e Aquarela, 2016. Em 2017, participei do concurso Off-Flip, e meu texto selecionado virou meu terceiro livro infantil publicado em 2018, Livroeiro. Tudo devagar, no tempo necessário para o amadurecimento da escrita e para o aprendizado de lidar com a autocrítica.
Acredito que para desbloquear é necessário exercitar-se com as palavras. Mesmo que de cada página redigida se aproveite pouco. É assim que podemos quebrar as amarras. Quanto a corresponder as expectativas, prefiro tentar não me preocupar com as alheias, já é muito difícil lidar com as minhas.
Penso que o texto, a partir do momento que vira livro e pode ser lido por outros, deixa de ser meu. Vira uma terceira história. Vai agradar a alguns e a outros não, cada pessoa vai tirar da minha história a sua própria e pronto, está cumprido seu papel.
Gostaria de me dedicar a projetos longos, mas sinto que precisaria de mais tempo, e de exclusividade para escrita e por enquanto infelizmente não consigo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso meus textos a quantidade de vezes necessária para considerá-los prontos. Isso varia muito de projeto para projeto. Por vezes, eles dormem nas gavetas por muito tempo. Quando sinto que já não consigo evoluir ou concluir, peço para alguém ler e opinar. Acho que essa troca de olhares com uma ou várias pessoas é muito enriquecedora.
Acho importante o texto descansar e ser retomado após um período de distanciamento, isso facilita os cortes e a lapidação. Mas tenho sempre tenho vontade de tirar ou acrescentar algo nele mesmo depois que é publicado. Por isso, também tento respeitar aquele momento de criação, afinal, aquele texto é o retrato daquele tempo e da experiência que carreguei até ali. Se escrito hoje seria outro.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Prefiro escrever no computador. Consigo digitar na velocidade dos meus pensamentos, o que não é possível quando uso lápis e papel. Na maioria das vezes, é no laptop que inicio meus rascunhos e ideias.
Porém, tenho sempre na bolsa um caderninho e na cabeceira também. Assim, se alguma história me surpreende fora de casa ou durante a noite, faço anotações para não perdê-la no caminho.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Escrever não é tarefa fácil. Para cada frase que fica, milhares são jogadas ao vento. Tem dias, que as palavras saltam para o papel, as histórias chegam prontas e no tempo de um suspiro. Em outros, pingam uma a uma, saem suadas, parecem não querer virar prosa ou verso.
Tem história que nasce de sonho, outras, de paisagem. Tem as que inspiram sorrisos e as que nublam o olhar. Tem as que nascem da falta, algumas, do excesso. E tem personagem que bate primeiro à porta e toma conta de tudo. Tem as que se inventam sozinhas e muitas que dormem tempos na gaveta para criarem coragem. Tem história, que eu nem sei!
O que sei é que a escrita me ajuda a ver melhor, a desvendar coisas importantes e aquelas sem importância alguma. Tem dias que é doce, em outros, amarga. Mas o ofício me fisgou numa rede de tramas improváveis de se romperem. Os hábitos que me mantém nessa trama são o da leitura e escrita, sempre que possível, diários.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Com o tempo minha escrita tornou-se mais enxuta. Hoje, sei quais palavras são desnecessárias num texto. Evito excesso de adjetivos, conjunções, pronomes e etc. Também passei a identificar algumas características inerentes a meu estilo e as minhas histórias. Conhecendo essa tendência, me sinto estimulada a experimentar outras construções textuais, com estruturas e narradores diferentes, por exemplo. Gosto que cada história seja contada de uma nova forma.
Escrever para criança não é simples. Somos adultos escrevendo sobre e para elas. A necessidade de manter a verossimilhança desse olhar seja na ficção ou fantasia é fundamental para criar literatura. Um texto repleto de diminutivos, rimas pobres e tatibitates subestima a capacidade dos pequenos. E eles são imensamente capazes de conhecer, entender e de preencher as lacunas deixadas pelo autor usando a imaginação e o senso crítico desde muito cedo. É esse o papel da literatura infantil. E entender isso como escritora foi fundamental para exercitar minha escrita.
Se eu tivesse que começar novamente e voltar aos meus primeiros textos, não mudaria em nada o percurso ou o processo. Foi através dos erros que alcancei os acertos. Foram essas experiências que me trouxeram até aqui e continuam me levando adiante.
Talvez dissesse a mim mesma apenas para ser menos crítica, escrever mais e ter menos apego ao que foi escrito. Isso torna o processo de lapidação muito mais fácil.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de me dedicar a um projeto já iniciado e provisoriamente intitulado de “Cartas ao pai”. Um texto juvenil, que envolve relações familiares complexas e um universo de sentimentos que exige cuidado e dedicação para guardarem na medida certa a verossimilhança com a voz da criança e do adolescente. É um texto que precisa de um mergulho mais profundo, sinto necessidade de dias seguidos só dedicada a ele, sem outras atividades no caminho e por isso ainda não consegui leva-lo adiante.
A minha escrita começou pela leitura. Lembro da professora que trazia o mar no nome e nos olhos. Foi dela que ganhei o primeiro livro. Na infância, lia o que chegava em minhas mãos. Lia o que a mãe lia. Foi nos livros que descobri que o mundo pode ser vários. Foi neles que fiz as primeiras viagens.
Assim, leio todo tipo de livros. Lógico, tenho minhas preferências, mas gosto de ser desafiada. Voltei a poesia quando inicie meu curso com a poetisa e escritora Ninfa Parreiras em 2010. E hoje a poesia mora em mim e na minha cabeceira. Redescobri seu poder!
Gosto pouco de policiais, embora ler Rafael Montes esteja nos meus planos. Gosto pouco de biografias, embora tenha amado a de Gabriel Garcia Marques. Autoajuda é um desafio que dispenso. Gosto mesmo e mais de romances, menos de contos, embora Marina Colasanti e Conceição Evaristo tenham contos que me encantam.
Infelizmente, não li muito na infância por falta de livros e oportunidade. E hoje, leio o máximo que posso sabendo que seriam necessárias muitas existências para ler tudo que me encanta, cativa ou desafia.
Tem autores nacionais que gostaria de ler a obra completa e, assim, todo ano me comprometo a ler mais um ou dois livros. É o caso por exemplo, dos livros de Bartolomeu Campos de Queiros e de Lygia Bojunga. Fora eles, gostaria de ler todos os clássicos da nossa literatura e da estrangeira, mas teria que ser muitas, então, sigo lendo aos poucos aquilo que se encaixa nos meus momentos.
Acredito que o livro ou os livros que eu gostaria de ler já existam no papel ou na cabeça dos escritores. Eu só ainda não os encontrei.