Pena Schmidt é produtor musical, trabalhou com Titãs, Ira! e Ultraje a Rigor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tenho uma rotina matinal que vai se modificando lentamente, de pular da cama para o chuveiro até um despertar vagaroso que precisa de um ovo e meia hora de leitura no celular. Em questão de meses vou de uma a outra rotina. Tenho a impressão que estou num ciclo bem preguiçoso nesta fase atual.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Também varia na mesma velocidade esta coisa do melhor horário. Gosto de pensar que sou noctívago, que escrevo melhor depois das dez, mas não acho que seja verdade, tenho escrito em todas as horas do dia, sem pressão.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho metas nem surtos, a não ser que haja um prazo final e, sim, costumo empilhar para bem próximo do fim do prazo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Busco construir um esqueleto de argumentos ou pontos mentalmente, num processo de exercitar a repetição da construção até que aparentemente o esqueleto tenha suporte, a tese pare em pé. Descarto argumentos que não me convencem, acho pelo caminho argumentos que desconhecia, acredito e pratico a intuição como método pragmático de avaliar possibilidades e investigar impossibilidades improváveis que escondem o óbvio que me fugia. Às vezes faço rascunhos para não esquecer uma linha, geralmente os rascunhos são imprestáveis, mas servem para achar o mote, o tema que uma vez ouvido é fácil de improvisar e seguir em frente.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não escrevo para ganhar a vida, geralmente é uma atividade de profundo prazer e realização, um exercício de imaginação, mesmo que esteja fazendo um texto sobre algum assunto específico. Nestas condições, escrever é um privilégio, um gozo. Assim, a procrastinação faz parte do processo de acumular pensamentos, delírios, imaginar tratamentos e inventar ganchos. É preciso um tanto de pressão interna para garantir um texto sem espuma, que jorre na vazão correta. Trabalhei em alguns projetos mais longos e o processo é diferente, requer um ritmo de caminhada, um fluxo mais controlado. Não seria meu fluxo mais natural e esportivo. Não chega a se transformar em ansiedade, mas cansa um pouco mais. O medo de não corresponder às expectativas acontece mas passa logo, a autoestima aqui é insuportável.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Alguns textos serão revisados eternamente, geralmente os que têm conteúdo mais formal, que precisam se parecer com a verdade ou com a voz da autoridade, onde supostamente eu devo saber do que está sendo dito. Odeio esta necessidade de fechar os significados, de evitar o mal-entendido, a interpretação dúbia. Por isso o processo de aplainar os innuendos, eliminar o sarcasmo e as piadas, na busca infrutífera do olho de Deus que relata O Que Vê, é um pé no saco. Sou fã dos meus textos que me surpreendem a cada leitura, que têm riscos imensos de serem mal compreendidos, os que saem paridos e não esculpidos. Muito raramente mostro antes de publicá-los. Precisam ter ingredientes políticos para que eu busque apoio antes da publicação. Ultimamente, ao escrever as Peripécias de Pena, estou citando pessoas e já fui mostrar para um ou outro personagem, até para revisar a memória.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sou um tecnólogo por profissão, montei meu primeiro Apple 2 e já sai escrevendo e adorando o poder da edição infinita, do polimento exaustivo. Apreciei as possibilidades, mas não fiz disso meu estilo. Hoje lastimo um pouco a volatilidade do meio. Perdi muito do que escrevi sem publicação, à medida que iam se superpondo as camadas de formatos, os disquetes, os HDs, os sites como Geocities e outros que desvaneceram. Hoje dou um valor incrível a pedaços de papel que sobreviveram nos guardados, uma folha pode ter muitas camadas de memória, os rabiscos, os números de telefone, os nomes garranchados na margem, tudo pode ter significado agora, cinquenta anos depois. Subitamente tive um impulso de procurar e comprar canetas tinteiro, vidros de tintas coloridas e cadernos de papel japonês, como se eu fosse finalmente escrever tudo de novo à caneta. Dá vontade.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As ideias vêm de um lugar onde elas não cabem mais. Brotam, extravasam e não acabam nunca, sobre qualquer tema que seja desafiado a ter ideias. Foi assim a vida toda. Ideias eu dou de graça, eu cobro para implementá-las. Eu adotei e pratiquei isto como mote profissional. Jamais entrei numa reunião ou numa conversa com medo de ter as ideias roubadas, são todas suas, pode ficar com todas elas, não me farão falta. Eu li muito durante meus primeiros cinquenta anos, posso ter lido milhares de livros, dezenas de milhares de contos e artigos, fiz isso com máximo prazer e mínima dificuldade, só li saboreando. Muita ficção, muita invenção e muitos relatos da realidade, pouquíssimas teorias e abstrações. O universo das ideias é onde vivo. Manter-se criativo sendo um implementador de ideias não foi difícil. Curiosamente eu ganhei o cargo de Gerente de Pesquisa e Desenvolvimento de ideias, na Continental Discos, em 1979.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar aos seus primeiros escritos?
Acho que conquistei o direito de reconhecer a minha voz na escrita. Relatório de gestão do Centro Cultural São Paulo ou posts no face, artigos no Medium ou propostas de Lei da Música. Consigo me reconhecer e me sentir fiel à voz. Acho que vem com a idade, consequência da prática, aquela mesma careta em todas as fotos.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Peripécias do Pena, o livro, finalmente estou me propondo a escrever sobre o que vi e as conclusões disso. Por um lado, todo dia me convenço de que não é tão importante assim, mas que é uma obrigação tipo herança, legado ou pirâmide marcando meu ponto de partida para outra. Por outro lado, tenho me divertido bastante com as possibilidades da escrita quotidiana, um pequeno prazer secreto.