Pedro Porciúncula é escritor e professor de inglês.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Manhãs sempre foram intragáveis pra mim, mesmo quando criança na escola. Eu começava a funcionar por volta das dez. Melhor época de escola foram a sétima e oitava série, onde eu estudava à tarde e depois na faculdade, que era à noite. Como desde metade de 2019 eu tenho trabalhado online, em casa e mandando no meu próprio nariz, minhas manhãs são reservadas ao sono. Eu sei que isso não é saudável e que ninguém recomenda isso, mas, como estou conseguindo viver dessa forma sem muitos problemas, eu prefiro do jeito como está.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
A noite é o melhor horário pra escrever. O silêncio, a calma, a energia. Não tem vizinho cortando grama, os cachorros só latem pra gatos e gambás no telhado e, também, pro lixeiro. Durante o dia, é como dizia um velho sábio “Não importa onde tu mora, tem alguém fazendo obra”.
A noite é vida. A noite é paz.
Sobre o meu ritual: fones de ouvido, mesmo que eu não vá ouvir nenhuma música. Posso até tomar uma cerveja, ou uma dose, mas nada que atrapalhe demais o pensamento — só consigo escrever sóbrio. Café ou chá não são essenciais pra eu escrever, só em caso de muito sono ou muita ansiedade, daí ajuda. E se vou escrever ficção, não consigo muito ouvir música, mas se for algo mais prosa poética, ou relato/crônica, pode rolar a música bem de boas. Mas é isso. Nada muito extraordinário.
Ah, um gato perto ajuda muito. Tipo, agora mesmo, tem uma frajolinha peludona deitada na minha bancada bem à minha direita.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu tento imaginar que o meu almoço do dia seguinte depende do que eu escrever hoje. Como eu tive a sorte de não precisar passar trabalho na vida, eu tento respeitar os autores que passaram pensando na minha arte, no meu trabalho, dessa forma. Escrever pra mim não é só expressar o que eu sinto e não consigo com palavras faladas. É uma necessidade a mais. As pessoas “normais” precisam basicamente de comida, água e oxigênio. Eu preciso dessas coisas e escrever, também. Apesar de ter me descoberto escritor meio tarde, aos 22 mais ou menos, eu não consigo mais me imaginar sem a escrita. O sonho é viver dela. Então, eu faço isso, eu coloco essa carga extra, não como pressão real, mas como um peso, uma motivação.
Obviamente tem dias que eu fracasso e que eu teoricamente não teria o que comer no dia seguinte. Tem dias que eu não to afim, que eu quero é assistir uma série, ou jogar alguma coisa com os amigos no horário que eu escreveria. Mas a meta é sempre essa: pouco ou muito, o suficiente para que eu sinta que aquele textinho, ou fragmento, tenha sido bom o bastante para que alguém lesse e eu tivessealgum dinheiro para pagar o meu almoço.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Apesar de consumir muito ficção, meus autores favoritos, meu estilo favorito, não é a ficção pura. Bukowski e Kerouac são meus “animais espirituais”. Então, muitas vezes aquela história já está escrita, só precisa ser lapidada. Mas, quando escrevo Scifi, eu gosto muito de pesquisar, especialmente assistindo vídeos no youtube. Fiz até uma playlist de “referências”.
Sobre a dificuldade de começar eu tenho a opinião de que, se está difícil, é porque a ideia ainda não está madura o suficiente, ou tu ainda não a entendeste direito, ou tu ainda não conheces o teu personagem o suficiente. Quem escreve romances históricos, ou histórias com muitos personagens, de repente, isso que estou falando não tem muito a ver, mas eu acho que é por aí. Pra começar, depende mais do quanto tu consegues enxergar/viver aquela história.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Acho que a trava da escrita é um tabu muito parecido com o broxar para os homens. Isso é normal e vai acontecer. Mas, também, precisas identificar o motivo. Foi só aquele dia, aquela semana? Tens te alimentado direito (lido, pego referências)? Tens dormido bem (descansar é importante também)? Tens te exercitado (literalmente, nem que seja sair pra dar uma caminhada e enxergar outra coisa que não uma folha de papel em branco e letras)? Se atirar de cabeça na história, no início, é essencial, porque ela ta borbulhando e tu te empolga e te vicia nela. Mas exigir da tua cabeça foco 100% naquilo o mês/semestre/ano inteiro é cansativo e o teu cérebro vai desligar, igual a uma máquina superaquecendo.
Eu li um livro esses tempos dum cara chamado Damon Knight sobre a escrita de histórias curtas (não tem em português e só achei ebook na Amazon) e ele diz o seguinte sobre o processo dele, que eu achava que era uma certa procrastinação minha, mas descobri que sim, isso é um processo e tem mais gente que nem eu haha (é mais ou menos assim): “Existe uma parte da tua mente que as pessoas chamam de inconsciente, mas isso não é inconsciente, porque essa parte é ativa, ela age e está sempre contigo. Como ninguém sabe o nome direito, eu chamo de Fred e vocês podem chamar do que quiserem. Fred diferente de ti, não se comunica com palavras. Fred não sabe escrever e também é mudo. Mas, Fred te manda sons, músicas, imagens, cheiros, gostos… E Fred também é um excelente solucionador de enigmas, mas do jeito dele. Então, quando tu estiveres preso numa parte da história, joga pro Fred. Chama ele/a e diz ‘O, meu, dá uma força aí’. Depois disso, tu sai da frente do computador. Vai caminhar, vai tomar um banho, qualquer coisa. Até o fim do dia, ou da semana, dependendo do que for, Fred vai te chamar. Ele vai te trazer um cheiro, um gosto, uma imagem, um som, o que for. Daí corre pro computador, pega o teu papel e caneta, ou só uma caneta e anota na mão. Não importa onde estejas, anota isso que o Fred te falou e tu vais conseguir desbloquear as travas da tua história.” Ele fala também que tu sempre deves dar ouvidos ao Fred e fazer o que ele ta te dizendo, senão, o Fred vai pensar “por que eu vou ajudar esse babaca agora se quando eu mando a solução pra ele, ele se diz ocupado demais pra me ouvir?”. É por aí.
E sobre procrastinação, eu consigo entender quando a gente ta falando de reescrever. Não é um trabalho muito empolgante pra muita gente. Mas se a pessoa que está escrevendo, que se diz escritor, ainda não entendeu que escrever é só 20% do trabalho… Eu tenho más notícias. Ou boas, de repente, porque isso pode não ser pra ti e tu só está perdendo tempo. Desculpa se fui muito grosseiro, mas é a real.
Tem aquele papo de autores que escrevem numa sentada só, né? Isso acontece, mas se tu não é esse tipo de gênio, aceita e vai reescrever. Ou estuda pra melhorar a tua técnica a ponto de não precisar. Não existe fórmula, mas reescrever, na grande maioria dos casos, é o fundamental.
Já a procrastinação por qualquer outro motivo que não seja algo assim, cara, eu acho que a pessoa só não está afim de verdade mesmo, sabe? Ele não depende daquilo pra viver. Tu não procrastinas respirar, comer, etc.
Já o medo eu acho que uma boa pedida é fazer como eu disse antes. Imagina que se tu não publicar aquele texto, aquele poema, amanhã tu não come. É o que eu fiz no início quando dava esse frio na barriga. Mas eu nunca tive medo de publicar as coisas.
Quanto a tudo isso em relação a projetos longos, bem, depende do projeto também. Eu tenho um no Wattpad chamado World Litter Tour, onde eu faço minicontos de mais ou menos 1 página inspirados em músicas. Já são uns 19 e estou nisso desde novembro do ano passado. Posso dizer que é um projeto longo, mas são histórias bem curtas, né? Meu livro, Epifonia (Chiado Boooks), é uma novela. Comecei a escrever em 2014 embalado pela leitura de On the Road do Kerouac. Era pra ser um conto, mas foi se tornando algo muito maior. Senti que minha técnica ainda não era boa pro estilo que eu queria colocar no texto e deixei descansar. Em 2018 eu finalizei. Toda essa história pra dizer que depende do projeto, mas tendo essas certezas na minha cabeça me ajudaram a não sofrer em cima disso. Acho que um pouco da inocência quanto a mercado, também haha.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Nunca parei pra contar quantas vezes reviso. Varia de texto pra texto. No dia 23 de março de 2021, eu postei um dos meus textinhos curtos lá no Wattpad. Eu levei uns quatro meses escrevendo, reescrevendo, apagando tudo e recomeçando do zero. Em compensação teve alguns deles que foi só eliminar alguns “queísmos” e repetições de palavras. Mas já ouvi falar que o ideal é revisar até decorar o texto. Com o meu livro, Epifonia, foi assim haha e eu ainda olho pra ele e penso “podia ter escrito dessa outra forma aqui”. Só que existe uma célebre frase que um primo me ensinou: “Feito é melhor que perfeito”. Se tu ficares buscando e buscando essa perfeição do texto, por mais nobre e compreensível que seja essa busca, tu nunca vai largar nada no mundo. Isso também não quer dizer que tu devas entregar uma obra feita nas coxas. Não é isso. O negócio é: existe um limite saudável. Tu não podes ficar procurando pelo em ovo. Agora se tu realmente não está nunca contente com o teu texto, pode significar duas coisas (na minha humilde opinião): 1) O texto está ruim mesmo e tu deves recomeçar do zero; 2) Isso é medo/procrastinação e tu deves procurar um profissional que te ajude a quebrar essas amarras.
Faço esse um gancho pra segunda pergunta: ter um networking com gente que tu consideres bons escritores para opinar no teu texto é muito bom. Ninguém ali é necessariamente o tipo de profissional que eu me referi acima, mas se tu tens alguma relutância, ter uma opinião positiva e até uma crítica negativa (e construtiva) é muito bom. Eu fiz o curso de escrita criativa do Carreira Literária em 2019 e formei com meus colegas um grupo no whatsapp onde a cada semana uma pessoa posta um texto e todo mundo opina. A cada 4 semanas, fazemos uma reunião pelo skype onde debatemos os textos daquela rodada. Lá se vão quase 4 horas na frente do computador/celular, mas é sempre muito produtivo, porque, quando tu percebes erros, sejam lá quais forem, no texto de alguém e tenta ajudar a pessoa a contornar aquilo, tu estás TE ajudando também. Tu aprendes junto.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu já fui um romântico quanto a tecnologia. Já corri atrás de preços de máquinas de escrever, inclusive, pra me sentir mais raiz, mais igual aos gênios e meus ídolos, sabe? Mas, um belo dia, eu li um poema (acho que era um poema) do Bukowski já nos seus últimos anos e ele fala que comprou um computador e de como a vida da escrita dele ficou muito mais fácil. Aquilo me deu um tapa sobre a realidade da arte, que não importa se for digital ou físico: o importante é o conteúdo, aquilo que está escrito, ou seja lá qual for a tua arte. Tenho amigos ilustradores que raramente usam papel e tinta, por exemplo, e acho que eles estão certos de certo modo. Não digo que o papel e lápis devam acabar, mas eu vejo muitos escritores resistentes demais à escrita e leitura digital. A história mostra que a tecnologia não deve ser combatida e sim abraçada, entende? Acho que é isso que quero dizer haha (pode escrever haha aqui? to fazendo direto). Por isso tenho focado esses meus últimos anos de escrita na internet. Seja pelo Instagram, ou mais recentemente no Wattpad. Tenho tentado me adaptar a esse público e, como eu mesmo não curto muito olhar para um textão e ler, tenho escrito histórias bem curtas, botando um limite máximo exagerado de uma página e meia.
Mas adoro rascunhar poemas e haikus na base da caneta e papel hehe. A arte de riscar e rabiscar combina muito com o meu processo de poema. E se a pessoa procrastina demais, não recomendo escrever a mão, porque ainda vai ter o trabalho de passar pro computador pra poder imprimir/enviar pra editor, etc.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
O universo e a natureza são muito inspiradores. Eu digo que a natureza é bela e a merda ta na sociedade, assim, eu sempre tento engatilhar a poética da prosa no universo, depois eu entro com a bosta falando dos nossos problemas humanos. Meu livro, Epifonia, se passa num ano complicado, 2013. Dois amigos totalmente perdidos no que fazer da vida, um em relação a carreira profissional, o outro no amor. Aí, eles vão até um show de rock em Porto Alegre pra fazer daquilo um marco pra uma vida melhor (Tá lá na Amazon). Viu? Uma merda totalmente voltada a nossa sociedade. O que o sol, a areia, a chuva e o giro em espiral da galáxia ao redor de um buraco negro supermassivo têm a ver com essa baboseira?
Gosto muito de ficção científica, também, e esses canais de influencers que falam sobre ciência, como o Ciência todo dia, Star Talk, What If?… Acho que eles trazem a física e a ciência que nos colocam no nosso lugar quando pensamos no universo. Sim, eu sou um niilista/existencialista.
Inspiração da Música. Em especial rock e metal. Se for algo progressivo/psicodélico melhor ainda, porque eu gosto muito de colocar sinestesia na minha escrita, então, se eu conseguir fazer a pessoa sentir um gosto, um cheiro, ou até mesmo uma epifania com o meu texto, eu já fico muitíssimo feliz. Fora o ritmo e musicalidade que as palavras precisam ter. Não sou perfeito, muitas vezes não vou conseguir que fiquem da forma ideal, mas to sempre colocando isso no texto. Não é a toa o World Litter Tour lá no Wattpad haha.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Mudou bastante e o “culpado” foi Bukowski. No início eu escrevia muito naquele estilo mais… Não sei chamar de outra forma senão comercial, mas não quero soar de forma nenhuma pejorativo nem nada. Meu maior ídolo era André Vianco e seus vampiros e criaturas sobrenaturais. Aprendi umas técnicas bem legais lendo ele e sem saber que existiam técnicas pra escrever (eu disse que eu era um escritor muito tardio). Aí, um dia, me botaram Misto-Quente do velho safado na mão e disseram “Lê isso. Talvez tu não curta, porque é muito diferente do que tu ta acostumado, mas tenta”. Abri e fui lendo. Lá pela página 40 eu já sentia o mundo girando na minha volta e eu mudei pra sempre.
(Tentando) Sendo objetivo na resposta, eu acho que o mais mudou é a forma de ver o mundo e a escrita em si. Saber que nem sempre é uma jornada do herói, descobrir que existe o anticlímax e que a gente pode falar da gente sem ser a gente mesmo… Acho que é por aí.
Sobre o que dizer a mim mesmo, acho que boa parte de tudo que falei até aqui, especialmente sobre revisão e reescrita. E terapia. Fazer terapia é importante. haha
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho alguns na verdade. Mas destaco dois: uma comédia Scifi e uma distopia cyberpunk. Não consigo dizer muito além disso porque, é como eu disse lá atrás: Não comecei porque ainda não entendi bem a ideia, então, to deixando pro Fred ir me ajudando aos poucos.
Um livro que eu gostaria de ler, mas que não existe ainda… Uma distopia, ou um mundo não necessariamente distópico, mas anarquista. Desculpa a ignorância se ele já existe, é que eu não conheço.