Pedro Pereira Lopes é poeta, contador de histórias, docente e pesquisador no Instituto Superior de Relações Internacionais, em Maputo.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Uma rotina é um ritual. Evito criar raízes, a tradição e a repetição são fenómenos que me confrangem. Há dias que escrevo ou traduzo assim que acordo, há dias que leio; procuro sempre ter hora e meia de exercícios físicos pela manhã ou, quando sinto que o céu almeja desabar sobre a minha cabeça crespa, limpo ou lavo o carro, é o meu momento de meditação, zen. Gosto de chá verde, ovos cozidos e frutas, ao mata-bicho (pequeno-almoço). Como vivo só e a minha empregada visita-me em dias alternados, há dias em que lavo a louça, faço a cama e preparo a refeição do Hemingway, o meu cachorro. Nos dias em que tenho aulas, no instituto, a “rotina” sofre também emendas.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
A minha hora especial depende do dia, do local, da “invocação do mal” necessário. Se não escrevo logo que acordo, na cama, recostado em duas almofadas, procuro escrever quando o dia se finda, depois do jantar. Quando estou no instituto, escrevo entre os intervalos das duas aulas que ministro. Nos dias em que não tenho aulas, gosto de escrever durante as tardes, na cozinha, ou na sala, sentado no chão. Tem dias em que saio para escrever em lugares públicos – a escrita a portas abertas, como diz o Stephen King –, preferencialmente bares. Em casa, escrevo sempre sobre hipnose de alguma música clássica, às vezes; quase sempre jazz (Coltrane ou Chet) e, pouquíssimas vezes, sons psicadélicos ou rock metálico. Depende do mood! Dependendo do local, costumo bebericar chá ou whisky.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Tenho as mãos sempre em alguma coisa, de modo que, escrever diariamente é quase uma obrigação auto-imposta. Escrevo durante duas horas, por dia, no mínimo. Se não consigo, se a coisa não flui, compenso com a leitura. A minha meta é uma e simples: escrever todos os dias, escrever sempre; é um exercício obsessivo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A minha única disciplina é a escrita diária, parafraseando Ray Bradbury. O processo, em si, não é linear ou fácil, pelo menos não quando assim desejo que seja. Por exemplo, para escrever o policial fantástico “mundo grave”, o meu primeiro romance, fiquei seis meses a estudar o género: primeiro reli tudo o que eu conhecia, desde o Sherlock do Sir Doyle ao Jaime Bunda do Pepetela; depois passei outros tantos a ler ensaios e trabalhos académicos sobre o policial. Numa segunda fase recolhi o material complementar, informações sobre a organização da polícia, armas e sobre a religião tradicional africana. Depois de quatro anos de rescritas, dei-me por satisfeito e não voltei a ver o rosto do manuscrito. Como sou um pesquisador universitário, presto sempre atenção demasiada aos factos.
No fundo, é o estilo, o flow ou a voz do narrador que pretendo que determina a passagem da pesquisa à escrita. Enquanto eu não definir o tom do narrador, não consigo seguir. Tenho várias pesquisas feitas, mas a ausência de seus respectivos contadores adia o processo criativo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projectos longos?
Quando procurava saber mais sobre a escrita, li um “mandamento” que dizia: “Escreva todos os dias. Escreva mesmo quando não tiver o que escrever.” Tomo em conta a última parte da frase como um jargão ou jingle, simplesmente não aceito o facto e escrevo qualquer coisa, até mesmo sobre a incapacidade ou medo de não conseguir escrever. Como trabalho em múltiplos projectos, em simultâneo, em um deles procuro ser produtivo, por dia.
É evidente que a minha fórmula, embora eficaz, não é eficiente. Quando a ansiedade aparece, pego um “livro enorme” e fico a contemplá-lo. É sempre encorajador.
Quantas vezes você revisa os seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Como sou pessimista, nunca estou satisfeito com a qualidade dos meus textos. E por ser perfeccionista, reviso – rescrevo – vezes sem conta. Acredito assaz na revisão, na edição, escrever é um processo mundano, uma fantástica revisão é celestial. Tenho a mania de não gostar dos meus livros por estes quesitos, imagino sempre que a revisão não terá sido suficiente.
Creio que jamais teria publicado se não tivesse submetido os meus trabalhos a outros olhos. É, em parte, maturidade e coragem, em parte, humildade. Quem não o faz, não está preparado para ser autor. Tenho um grupo pequeno de amigos, espalhados por Moçambique, Portugal e Brasil, que sempre criticam os meus trabalhos.
Como é a sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Já escrevi contos inteiros à mão, no verso de uma monografia que estava a corrigir. Gosto de fazer notas, se não as faço num moleskine, então aponto no celular. Surgem-me sempre daí as primeiras ideias, por serem súbitas. Quando estou ao computador, já sei sempre o que vou escrever.
De onde vêm as suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Livros. Leitura. Ler é a maior e a mais importante ferramenta que um escritor dispõe para a sua forja. Leio de tudo. O cinema, o teatro e a música contribuem também enormemente. Escrevi uma pequena novela juvenil baseada em uma música. De todos os exercícios apontados, o convívio, o estar entre as pessoas, a observação e a audição, por assim dizer, são as minhas principais fontes de histórias. Estar entre as pessoas é como ser um agente secreto, como sugere Le Carré, é onde se dá o mais empolgante “eureka”.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros livros?
Ao longo dos anos, passei a gostar menos dos meus textos e, em contrapartida, passei a ser mais exigente comigo. Perdi o enlevo por mim mesmo como escritor, perdi também a espontaneidade. Sou mais cultista e conceptista, agora. Aprendi novas técnicas e conheci obras que me apresentaram a ideia de uma escrita universal, entretanto local.
Eu era muito novo quando o meu primeiro livro saiu, e embora não goste muito dele, há um público que o tem como “bom e autêntico”. Se eu pudesse voltar no tempo, teria feito exactamente o que fiz, nem mais nem menos, daí que não teria dito, a mim mesmo, alguma coisa diferente.
Que projecto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Fascina-me o romance histórico. Gostaria de escrever um, já fiz a pesquisa, tenho uma quantidade considerável de factos, entretanto ainda não tenho a voz do narrador. De outra forma, creio que ainda não estou pronto para escrever tal livro, pois exige mais responsabilidade e dedicação. O tempo é mister e um dia, num futuro próximo, farei o livro.
Gosto da história de vida Eduardo Mondlane, que, de origem humilde e, em pleno auge do regime colonial, fez os estudos fundamentais, depois estudou nos EUA, casou uma branca – enfrentando o regime racial –, foi professor universitário, funcionário das Nações Unidas e primeiro presidente da FRELIMO, movimento independentista de Moçambique. Ninguém ficcionou isso, ainda. Dava um bom livro!