Pedro Moreira é escritor, editor da revista literária digital ID.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu me levanto às sete da manhã — na maioria das vezes, claro. Tenho bastante dificuldade de criar uma rotina matinal de escrita, já que tenho aulas todos os dias às 8h. Então, basicamente acordo no susto e com sono, me arrumo e vou para a aula. Quase nunca tomo café da manhã. Gostaria muito de ser aqueles escritores que acordam às 6h para tomar café, fumar um cigarro e escrever. Mas, isso não combina muito comigo não.
Nos finais de semana ou feriados, eu desperto naturalmente — por volta do meio dia, coisa de metabolismo, sabe? Se eu estou sozinho, gosto muito de passar as primeiras horas, não do dia, mas do meu dia, sozinho. Nesse período, eu gosto de me arrumar — ou não — demoradamente. É muito bom ficar à toa lendo coisas aqui e ali, caso eu não esteja lendo um romance, por exemplo. Tento organizar, ainda que mentalmente, as leituras que estou fazendo. Faço questão de me cobrar a leitura de alguns jornais online todos os dias. Pelo menos ler algumas crônicas, artigos e matérias relacionadas à política e à cultura.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Na verdade, escrevo a qualquer hora. Mas, como tenho os meus compromissos com o curso de Letras, tenho de me desdobrar entre escrever artigos acadêmicos, preparar apresentações e ler os textos solicitados. Isso praticamente rouba todo o meu tempo de escrita, aquela que eu considero literária, pelo menos. Ou relacionada a isso.
Desde a adolescência, eu tenho tido aulas de manhãzinha. Assim, eu me vi escrevendo sempre à tarde e à noite — os períodos que tinha livre. A primeira crônica que me lembro de ter escrito, por exemplo, foi de madrugada. No outro dia, cheio de sono e olheiras, fui mostrar para a professora. Descobri que era possível fazer alguma coisa interessante à noite: escrever — além de ler livros. Isso sempre preocupou meus pais que me viam entrando noite adentro ou com um caderno na mão ou com um livro. Depois de um tempo, eles pararam de me pedir para dormir.
Eu não costumo pensar muito sobre o meu processo de escrita. Sempre foi algo orgânico na minha vida. Simplesmente acontece. Agora, pensando sobre isso, percebo que não tenho nada definido e a minha produção é caótica. Gostaria de dizer que arrumo o quarto, abro a janela e faço um café, mas nem sempre tenho consciência desses momentos de escrita — que às vezes são raros ao longo dos dias.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo todos os dias, praticamente. Entretanto, isso não ocorre de modo regular e pensado, como disse antes. Pelo fato de que tenho escrito crônica, conto e poemas, cada gênero requer um tipo de atitude.
As ideias para contos sempre me ocorrem, muito embora nem sempre esteja à disposição para escrevê-los. Não sei se por preguiça ou pelo acabamento que quero dar a eles. Nunca consegui organizar tematicamente esse processo. Já as crônicas parecem surgir mais tranquilamente, ainda que o processo de escrevê-las, quer dizer, de dar-lhes um tom mais cotidiano e simples não seja tarefa fácil. A simplicidade custa. Os poemas são um caso à parte. É difícil dominá-los em termos de escrita. Eles surgem a qualquer hora do dia ou da noite. Tenho escrito muitos poemas desde 2012, mas publicado muito pouco. Alguma coisa em revistas de literatura. Tenho buscado conviver bastante tempo com eles. Desde a ideia até a sua realização no papel ou no computador. A ideia vem fácil, mas o processo de escrita é bastante árduo.
Tenho comigo uma meta de me manter escrevendo sempre. Não importa a quantidade. E coisa diversa. Gostaria de ter mais tempo para me dedicar aos projetos que planejo, mas me viro como dá. Sempre tenho muitas ideias que “dariam para fazer um livro”, porém pouca coisa engata. Estou bem no meio de um período de intensa produtividade, em se tratado da escrita de poemas. Contudo, nem tudo sobrevive. Jogo muita coisa fora e —geralmente — não guardo rascunhos à mão, embora eu os produza em grande quantidade. Se cair um caderno em minhas mãos eu dou conta logo de preenchê-lo: com rabiscos, desenhos e ideias.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não é muito difícil de começar. Como sou ansioso, adoro começar coisas novas. Fico animado. O difícil mesmo é terminar. Esse é o rosário que tenho rezado: como saber quando algo está pronto? Estudando teoria da literatura na universidade — que não foi suficiente para matar, em mim, a vontade de escrever, como acontece com outros — percebi que um discurso, mesmo o poético, não tem uma rigidez eterna. Os textos são como pessoas: deliciosamente inacabados. E tento tirar proveito dessa realidade.
Estudo vários assuntos e, muitas vezes, dessa pesquisa motivada, sobretudo, pelo grupo de estudos de tradução, do qual faço parte, uma ideia para poema surge. É bem misturado. Quando vejo já estou escrevendo versos ou tentando desenvolver uma metáfora que explique para mim mesmo o que eu gostaria de dizer (ou entender). Mas reconheço que esse projeto de dizer alguma coisa tem pouco valor; no fim, quem lê (ou não lê) é quem decide sobre o que se trata.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Já passei por alguns períodos sem escrever e isso é terrível. Parece mesmo ser uma morte. Quando essa usina para de funcionar, sofro de apagões. Escrever me tira e me doa energia. Longe de ser algo terapêutico ou de autoajuda, a escrita é uma forma de combater o eu. Porque escrever, para mim, é sair de mim mesmo e ir em direção ao outro — provocando ou pedindo diálogo. Respostas, talvez. Não ter esse diálogo me parece ser isolamento.
Nesses períodos, passo a ler muito mais do que quando estou em produção ativa. É como aquele conceito de “input”. Quando a fábrica entra em greve, é o momento do tal do “input”. Leio livros — há séculos se acumulando na minha lista de coisas para ler—, assisto filmes e escuto músicas. Pensando melhor, é um momento bastante interessante e não deixa de ser um diálogo com o outro, não é mesmo? Um tipo de pós-morte, na verdade, e não o absoluto nada. Engraçado como responder sobre o processo de escrita, me faz conhecer melhor meu trabalho. Preciso praticar mais essa reflexão sem me perder ou ficar encabulado.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso muitas vezes. Esse é o processo mais cansativo porque parece não ter fim. É como varrer o chão debaixo de uma fogueira, onde as cinzas teimam em cair, apesar da tentativa de limpeza. Fico enxugando gelo até me sentir farto disso, então largo o texto como está. É muito importante deixá-los dormindo um pouco. Tem poemas que comecei a escrever em 2016 e que ainda não dei como terminados. Muitos eu escrevo direto no computador, então não tem como perceber o processo por trás do resultado (quase) final.
Muito raramente mostro algo inacabado. Tenho um medo tenebroso de expor um texto sem ter considerado minimamente terminado. Não gosto que vejam os poemas quando estão ainda cheios de líquido amniótico e com o cordão umbilical. Gosto de apresentá-los penteados, vestidos e com o umbigo cicatrizado, se possível. Quando a dúvida me obriga a mostrar algo para ter uma opinião externa, envio para um amigo próximo que estuda Letras e que também escreve. Ele nem sempre responde como eu gostaria. Já me disse uma vez que ele precisou ler muitas vezes para não entender nada. Ri e tentei “consertar” esse defeito da não compreensão. Pois que a simplicidade está em alta, como o dólar.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Embora eu tenha nascido na era digital — ou quase isso —, passei boa parte da infância sem ter acesso a computadores, por exemplo. O objeto tecnológico mais próximo sempre foi a televisão. Adoro escrever à mão, de qualquer forma. Uma amiga me ensinou a costurar cadernos. Agora não quero outra vida. Adoro escrever nele. Mas gosto muito de escrever direto no computador, também. A ansiedade me faz querer ver como o poema vai ficar digitado. O caderno eu uso para aquele momento das ideias, das anotações rápidas, dos primeiros rascunhos e da organização; tenho feito muitas listas, recentemente — coisa que aprendi de outro amigo. As ideias para títulos — coisa essa que me tira o sono — escrevo quase certo nesse caderno ou em, literalmente, qualquer folha.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Acredito que o olhar sobre o mundo, a partir dessa lente que se chama percepção, me entrega o material que uso para escrever. Cursei filosofia por um tempo e dessa experiência trago comigo a busca pelo espanto. É muito bom quando o espanto se apresenta a você, mas não dá para depender disso. Vou atrás daquilo que me falta, então. É humanizador esse processo de ir ao encontro dessa estranheza. Olhar as coisas como se fosse pela primeira vez é fundamental para escrever, na minha concepção. Por isso, gasto muito tempo tentando desviar o olhar dos lugares-comuns da minha vida em busca de alguma surpresa, que é mesmo como um pequeno milagre quando acontece.
Não tenho hábitos estabelecidos, mas adoro ouvir conversa alheia no ônibus. O povo brasileiro é muito rico em se tratando de construção sintática e ritmo. Já descobri tons, línguas e metáforas muito boas assim. É claro que faço uma transformação. Na verdade, o que roubo das pessoas — em termos poéticos — é aquilo que eu compreendi delas, então está tudo bem; não estou retratando nada além de uma interpretação. Por exemplo, uma vez eu estava no ônibus sem bateria no celular e comecei a compor ideias para contos a partir do que se passava: as pessoas falando sobre um assalto bem no dia das mães. Mas essa história ainda não escrevi.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu aprofundei algumas práticas. Já comecei anotando ideias soltas e até frases inteiras. Ainda faço isso, tentando ser um pouco menos caótico — o que tem falhado bastante.
Se eu pudesse voltar no tempo, diria a mim mesmo para ler Octavio Paz antes e estudar muito mais os textos que eu lia; reescrever com objetivos mais claros e ler o mais variado possível. Também gostaria de dizer para não perder tempo querendo ser quem eu não era.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Uma peça de teatro sobre Eva e Maria num encontro mítico, mas subvertendo tudo. Doido, não? E também gostaria de trabalhar com vídeo-poemas em série. Misturar o que mais gosto: poesia e audiovisual.
Quando eu era criança, quase enlouqueci minha mãe e minha professora, pois eu exigi o livro que contivesse o mundo inteiro. O Livro do Mundo — algo assim. Não soube explicar direito nem elas me entenderam muito bem. Me lembro de terem indicado a Bíblia e eu acabar com um livro de geografia nas mãos. Definitivamente não era esse tipo de “mundo” que eu queria ler. Afinal, talvez eu mesmo deva escrevê-lo — ambição boba que sei que nunca vou cumprir.