Como eu escrevo

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Como escreve Pedro Moreira

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Pedro Moreira é poeta, autor de “Malemá” (Patuá, no prelo).

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?

Até o dia de hoje não consegui estabelecer uma rotina constante de trabalho. Escrevo como dá, quando é possível. No contexto da pandemia, por exemplo, por ter ganhado alguns cadernos de brochura de uma amiga querida, pude sentar todos os dias para escrever até preenchê-los todos. Estabeleci uma espécie de contrato ou compromisso comigo mesmo, contrariando o que dizia Clarice Lispector. Sabe, às vezes é necessário mandar à merda tudo aquilo que grandes nomes da literatura brasileira disseram. Não por rebeldia profana, mas porque, muitas vezes, nos atrapalham. Antes que eu seja pego para cristo me explico: adoro a Clarice, mas, por muito tempo, me senti compelido a obedecer o que ela dizia do próprio trabalho, ou melhor, do próprio processo criativo. Se ela não se considerava uma profissional ou não estabelecia um comprometimento consigo mesma em relação à escrita, isso não significa que o que valia para ela valha, hoje em dia, para nós reles mortais. Ora, atrapalha porque não é tão óbvio assim a maneira que devemos lidar com a própria escrita. Ficamos, sobretudo no começo, onde me encontro agora, muito preocupados com aquilo que diziam os clássicos.  Cada um é cada um. Não há melhor conselho. Devemos olhar para todos os lados, mas é impossível ver tudo com todos os olhos. Seria poético, mas nunca possível. A gente vai achando um jeito que tem a nossa cara mesmo. Pode não estampar o rosto de uma Clarice, de uma Hilda, de uma Conceição, mas é o nosso rosto. Ainda que esse rosto não seja coeso.

O comprometer-se consigo mesmo em relação à escrita não é a profissionalização, necessariamente. É reconhecer-se enquanto ligado profundamente a esse gesto (de digitar, de rascunhar). Isso faz tanto parte do meu cotidiano, da minha vida, como andar, comer, rir e chorar. É natural porque se impõe como uma necessidade. Direito. Dever. Não existe a força maior que me obriga a isso. É sim uma atitude sem sentido, no sentido mais amplo do termo. Pois, uma vez que me ponho a escrever, não sou mais um, mas vários. Não sei de mais nada e, ao mesmo tempo, sei de mais do que deveria. A unidade, que é uma farsa, se apresenta de fato como uma farsa. O eu se encontra em absoluta dissolução. Não me compreenda mal, não digo que desfaleça no papel ou transmita a psique para ele. Pelo contrário, muito. Desse modo, chego no que importa para a pergunta: não é possível, pelo menos para mim, ao que diz respeito ao meu modo de agir, ter um projeto apenas. Ando às voltas com muitos parceiros. Não poderia dançar a noite toda com apenas um cavalheiro. Isso poderia se assemelhar ao caos. Sei que minha mãe sempre diz que eu promovo uma verdadeira anarquia com os meus papéis. É verdade. Caso tentasse organizar tudo estaria procurando criar outros caminhos. Tentar organizar a bagunça (ou anarquia) que promovo com meus papéis (essa festa desequilibrada) é montar outros livros. Organizar: esse momento já é por si só criar um projeto novo. Isso ocorre quando começo a juntar alguns contos ou poemas, por exemplo. Geralmente escrevo assim: anoto as ideias em papéis ou no bloco de notas do celular, na caixa de mensagens ou como um post (que deixo somente para mim). Depois, a ideia vinga ou padece. Deixo crescer, ajudo, ou decapto com as próprias mãos. Há muitos crivos, muitas etapas. Isso não assegura a beleza nem a perfeição do texto. É um método irracional. Sinto, aqui dentro, que precisa ser assim. Me constituí escritor dessa forma. Não sei escrever uma vez só, muito menos editar logo em seguida. Deixo tudo marinando nas gavetas do meu computador ou da cômoda por muito tempo, meses e até anos. Sinto uma agonia terrível por isso. Não descanso. Sou como uma senhora idosa esperando a vizinha chegar em casa. Não é possível fechar os olhos por muitos meses. Não é possível me esquecer, até que, finalmente, esqueço. E daí é uma alegria (ou absurdo) intenso. O espanto na vida diária do poeta pode ser quando a poesia brota ou quando ela reaparece de seu anonimato, de variados cantos. Eu adoro esse jogo de esconde-esconde. Me perco junto. Quantas vezes eu deixei de me reconhecer nos textos que produzi há algum tempo! E isso é fantástico, pois o ego já não é dono daquilo. Não se sente gerador, mas organizador. Então o escritor se porta como um curador de textos alheios. Deveria ter na capa o nome de organizador e autor desta coletânea.

Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?

Depois de ler o livro Rua da padaria (Record, 2013), da poeta Bruna Beber, resolvi que iria escrever um livro contendo poemas infantis. Repare, o livro dela é tudo menos infantil. Até na linguagem há uma melancolia muito adulta. Ou seja, um olhar bastante adulto sobre o passado, a memória. Mas o que pude fazer, esse projeto pensado anteriormente, foi um desastre, pelo que posso lembrar. Apenas um outro poema sobreviveu ou porque foi publicado em algum blogue que eu não tinha controle para solicitar a exclusão ou por esquecimento. O projeto se chamaria O meu lugar secreto, o que hoje me soa bastante incomodativo. Escrevi uns sessenta poemas ao longo de um mês de intenso trabalho e insistência. Joguei tudo fora. Não me arrependo, em absoluto. Ao escrever aquelas bobagens, aprendi muito sobre como não devo escrever um poema. Depois, planejei um romance. Outro desastre, adianto. Não revelo o nome porque estou aguardando que eu envelheça um pouco mais para continuar com ele, totalmente reformulado é claro. Aos poucos percebi que não é tão bom assim planejar demais um trabalho. Obviamente que é importante, mas não essencial. Preciso de uma ideia, não boa, mas que renda algumas páginas, depois eu colo o ouvido no texto e ele vai me dizendo onde deve ir. Não tenho controle absoluto. Tento dançar os passos que ele pede. É muito difícil ir adivinhando os próximos estágios, mas é bastante revelador. Claro que isso envolve muitas etapas de edição porque senão o texto seria inelegível. Mas gosto. É exaustivo, mas é uma aventura.

Começar é, usualmente, muito simples. Isso não quer dizer que aquilo será continuado. Continuar é penoso. Terminar não sei dizer. Não sou afeito a finais muito bem acabados. Acho que sempre acabo um pouco antes do que seria necessário, por segurança ou insegurança. Sei que é muito fácil destruir um projeto. Fico sempre preocupado que quem vai ler o meu texto esteja na expectativa de um final arrebatador ou que amarre muito bem tudo. Adoro ponta solta. Acho bonito, é isso. Gosto de cabelo solto. Coisa muito aparada, cansa. Mas é diferente: na poesia, tudo tem que ser bem trabalhado, na prosa nem tanto. Então, eu diria que a depender do gênero, do formato do projeto, o que acontece é diferente. Não sou um. Meus projetos não começam e nem terminam da mesma maneira. É bagunçado e eu gosto assim.

Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?

O silêncio é muito bom para alguns momentos. Terrível para os outros. Já tive que escrever em total calmaria e no meio do barulho. Não sei escolher. Vou muito pelo momento, pelo meu humor. Mas uma coisa é verdade: ter um canto só meu, um espaço onde posso deixar os papéis repousando tranquilamente (e espalhados) é bastante salutar. Sobretudo na hora de editar o que escrevi. Tem um conto meu, “Aqueles olhos azuis”, que levei vários dias seguidos para acabar. A ideia ficou martelando na minha cabeça por dias até eu me render a ela. Acordava mais cedo e escrevia sem parar ou dando continuidade ao que eu tinha começado no dia anterior. Foi intenso. Exigiu muita disciplina porque era uma ideia que eu nunca tinha trabalhado. Foi um dos primeiros contos que escrevi ao lado de “Relapso”. Era tudo novo e desafiador. Eu não tinha garantia nenhuma de que eu seria capaz de prosseguir com aquilo. Eu não sabia se ia conseguir produzir um conto decente. Tinha lido muitos contos e tinha uma ideia vaga de como um conto deveria ser, mas como minhas referências eram Lispector, Machado e Hilst, até aquele momento, eu tinha uma terrível escolha a fazer: que tipo de conto eu escreveria? Não tive como escolher. Não é um simples caso de imitação como dizem tanto por aí. Eu diria que é mais uma questão de identificação. Isso se deve ao fato de que eu, em meu interior, pensava de uma determinada maneira associativa, confusa e caótica. Não poderia escrever um conto com começo, meio e fim nos moldes convencionais. Eu nasci para a escrita depois de todas as transformações do conto moderno.

Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travado?

Isso daria um ensaio. Talvez eu escreva. Sou uma pessoa viciada em procrastinar. É duro, mas sou assim. Muitas vezes perco ideias por falta de ânimo para me sentar numa mesa para escrever ou para pegar o computador e digitar. Também acontece de eu ficar cozinhando uma proposta por muito tempo antes de juntar os ingredientes e ir para a cozinha. Andei conversando com alguns escritores sobre a temível questão do bloqueio criativo. No momento, estou passando por isso. Pode ser que dure algumas horas ou dias e até meses. Isso já aconteceu diversas vezes desde que comecei a escrever com frequência, o que soma uns dez anos. Inclusive responder a essa entrevista está servindo como um estímulo para voltar a escrever. Acredito que no que toca ao trabalho que envolve a escrita, o ócio é importante. Ele não deve ser confundido com preguiça. O que seria do poeta sem a contemplação? O que seria do prosador sem a vida cotidiana, as conversas intermináveis, os constrangimentos? É preciso muito silêncio e muita bagunça para que eu geste alguma coisa dentro de mim.

Cada vez que o bloqueio desce sobre mim, como um torpor vindo do alto, é necessária uma resposta diversa. Toda vez que pego um livro para ler, uma música para ouvir ou um filme para ver, me vem muitas ideias-respostas àquelas obras. Isso é frequente. Assustadoramente comum. Por muito tempo tive medo de ser um eterno “copiador”. Essa angústia, contudo, diminuiu quando me dei conta, a partir de textos teóricos, da falsidade d’o original. O que é imitar? O que é originalidade? Me parecem coisas que brotam em terrenos inóspitos. Sei bem que é uma contradição, mas é bastante verossímil. Passado o medo de copiar (exageradamente), me rendi a ter inspiração em tudo que me cerca: livros, álbuns, fotografias, paisagens, conversas, pessoas etc. Quando algo é muito bom me dou duas possibilidades: gritar de inveja (eu queria ter tido essa ideia, queria ter escrito isso!) ou morrer de admiração (é a coisa mais linda que já li, ouvi, vi!). Hoje mesmo li um poema inédito que o poeta Rafael Mendes, amigo meu, me enviou por e-mail. Gritei de inveja e morri de admiração. Era muito provável que um texto bom assim me instigasse a escrever. Contudo, o bloqueio e a insegurança, caminheiras conjugadas, me impedem de sequer tentar, de por as primeiras palavras no arquivo do computador. O que fazer então? Não tenho uma resposta para mim mesmo. Tive a ideia de pedir conselhos aos colegas escritores no Facebook. Me deram toda sorte de ideias: exercícios criativos, ver filmes, ouvir músicas, ler, ler, ler. Há também receitas de bolo, literalmente. De aconselhamento alcóolico a oração de mãe. A tradução figura, também, como uma porta de entrada para a criatividade. Tudo isso deve funcionar. Mas o que fazer com a apatia? Com a falta de vontade de se pôr em posição de trabalho? Uma coisa foi bastante irônica: ao responder os comentários dos escritores e poetas, eu fui obrigado a, inconscientemente, responder escrevendo. Assim eu resolvi um dilema. Quando vi estava digitando várias linhas. Eu tinha um propósito objetivo e específico. Soma-se a isso a alegria de me comunicar com tantas pessoas que admiro e acompanho o trabalho pelas redes sociais. Não tem outra ideia; para voltar a escrever, basta escrever. Mas como? Cada um acha um jeito. Temos que ter fé que o poço não seca tão logo o primeiro balde lançado ao fundo do buraco volta com apenas um pouco de água barrenta.

Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?

Questão impossível. Obviamente não se trata do nível de complexidade do texto em si, mas o que, ao escrevê-lo, é mobilizado em mim. Tem um conto que comecei a escrever, mas nunca pude completar. O conto se chama Bilhetinho em caneta azul. Trata da história de um estupro, de fuga e de vingança. Não é autobiográfico, mas me causou tanto espanto que até assunto de terapia esse bendito conto virou. Estou por continuar. Aguardo a maturidade para enfrentá-lo. Esse seria o texto que mais me deu trabalho para não escrever. No geral, qualquer poema é mais difícil, por essa mesma razão é o gênero que mais pratico. As formas breves são terríveis também, mas exigem outro tipo de esforço que não o da continência. Sim, muitos consideram importante os contos serem curtos, mas não dou muita importância a isso. Deixo que ele me guie pelas páginas, mesmo que pareça exagero. Qualquer coisa é só cortar. Não foi Machado de Assis que disse que escrever é tesourar? Ou algo parecido. Minha memória é péssima para citações. Também considero terrível escrever textos não ficcionais como o ensaio e, o pior de todos, o artigo acadêmico. As experiências que tive foram desastrosas. Foi aí que percebi que escrever prosa ficcional e poesia não me fez melhor pesquisador, pelo contrário. Há tantas regras e formatos prontos que minha capacidade de criar se anula. Nesse sentido, experimento os piores bloqueios que já vi sobre a face da terra.

Tenho trabalhado num livro de contos há alguns anos. Na verdade — devo confessar –, fui escrevendo os contos ao longo de quatro anos e, agora, o livro está tomando corpo enquanto um projeto que busca certa unidade. Acho que quatro anos é o tempo médio que eu levo para produzir material suficiente para compor dois ou três livros. Uma vez que a publicação, ainda que independente, seja complexa, vou levando os projetos de livro comigo pelo tempo. Há o projeto de um livro que fale dos afetos, de amor e desamor. Está me dando bastante trabalho, mas eu gosto assim.

Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém um leitor ideal em mente enquanto escreve?

Seria absurdo acreditar num leitor ideal. Não convivo com essa ideia nunca. Acho que foi Walter Benjamin que disse que não há esse tipo de coisa: uma obra não está endereçada ao apreciador. Entendo que, dentro de teorias linguísticas, um texto é sempre escrito para alguém que, segundo Benveniste, ao abrir a boca, um tu-hipotético é sempre acionado. Não estou aqui para discordar, mas, em se tratando de literatura, como o escritor, a escritora vai planejar um livro pensando num público-alvo? A autoria tenta produzir um texto que vai ao encontro de outras pessoas. Se fosse uma ponte, seria uma ponte sem rumo. Já caí na besteira de tentar escrever textos para crianças e saíram coisas grotescas. Agora não insisto na subversão de pensar em quem vai ler antes do texto existir. Depois de pronto (o que nunca é acabado, de fato) é possível presumir que determinadas pessoas possam se interessar, pelo teor, pelo estilo, mas nunca o contrário: o leitor é importantíssimo, mas ele é um estágio posterior da obra. Até acredito (num sentido de fé mesmo) que a obra se faça quase que inteiramente no ouvido, ou nos olhos, do leitor, mas sem o autor que primeiro escreve, sem o editor que primeiro lê, sem os outros profissionais que viabilizam a existência do objeto livro, o leitor teria que inventar o mundo.

O meu livro Malemá, que vai sair pela Editora Patuá em breve, é uma coletânea de poemas. Não escolhi os temas, mas era um desejo antigo, tão antigo quanto a minha idade permita, de fazer um livro de poemas que falassem da minha terra natal, Itaí (SP). Era o desejo de reunir textos com o sabor das palavras do interior, com o jeitinho de lá. Mas não se engane, não é uma forma de imitação. É, antes, uma mistureba. O título Malemá já existiu desde o princípio, mas o projeto do livro, com suas divisões, não. Eu não sabia onde ia dar, como iria realizar a empreitada. É bastante autobiográfico, embora nem tudo ali seja realidade, de fato. Esse livro é o tipo de projeto que gosto muito de produzir. Existe a ideia inicial e a inevitável transformação no processo da escrita. Alguns poemas que foram escritos para o livro foram rejeitados, outros que surgiram depois que o livro estava quase fechado pareciam ter sido escritos para ele, tendo até espaços de vacuum onde, mais tarde eles se encaixariam. Os temas se impõem ao longo do tempo. Nesse sentido, a intenção do poeta não garante os sentidos levantados na recepção.

Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?

Quase nunca me sinto à vontade para mostrar para as pessoas. Um texto nunca nasce pronto porque ele nunca termina. Atinge-se um ponto em que ele é razoavelmente legível, compreensível, mesmo que o sentido não seja o mais importante, quer dizer, que ele não produza os mesmos sentidos para diferentes leitores. Depois de um período de descanso, como se fosse a massa de pão descansando para o fermento agir, eu reviso, edito, corto, reescrevo. Então, é possível mostrar essa versão para alguém. Algumas vezes as pessoas gostam ou não. Se gostam, é terrível, pois exigem que o texto fique daquela maneira, com os defeitos que lhe são inerentes. Se não gostam, sou forçado a um caminho árduo de revisões sem fim. Se preciso de ajuda mesmo, se não me sinto tão embaraçado assim, mostro para alguns amigos que se interessam por literatura. São escritores e poetas que acreditam que é bastante proveitoso compartilhar textos no processo de escritura. Trocamos opiniões sobre eles por texto ou conversa. Mas isso não é tão corriqueiro ou essencial. É comum que ninguém leia até que seja postado numa rede social ou enviado ao conselho editorial de alguma revista literária. Recentemente tenho tido trocas de textos em processo com o poeta Rafael Mendes. Tem sido bastante proveitoso. Damos pitacos nos textos um do outro. Discutimos sobre o fazer poético, a vida na literatura etc. Também participei de um grupo de estudos no qual discutimos os textos uns dos outros.

Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?

Em 2009, aos catorze anos de idade, depois de dizer que seria artista (ator, cineasta). Escrevi uma crônica sobre uma árvore que capturava a minha atenção no caminho de casa para a escola. Era uma árvore branca, sem folhas, meio como um zumbi do The walking dead caminhando encurvada no meio da plantação. Eu disse baixinho que seria escritor apesar dos apesares: de ser pobre e do interior e, mais complicado, morador de uma comunidade rural em que a escrita ou a leitura eram praticamente preteridas por completo, a não ser pela escola. Nessa época, eu já tinha consciência que eu estaria nadando contra a correnteza. Não tinha certeza da força nem da perícia em nadar, mas ousei. Uma coisa que a criação matuta me deu foi uma espécie de ousadia ressabiada. Não ter medo de dizer grandes coisas. E de desdizer logo depois. De se contradizer. De esquecer. De sonhar. O caipira olha muito tempo para a paisagem que o circunda. Eu fui assim. Eu sou assim. Nunca tive ilusões de sucesso. Não condicionei o meu comprometimento com a escrita a isso. Sempre desconfiei que seria preterido por escrever sobre coisas que não eram levadas à sério ou vistas com importância para quem é da capital. Nunca escrevi tentando agradar o povo que vive nas grandes cidades.

Quando perguntamos por produtos culturais sobre o interior de S. Paulo, produzidos por pessoas daqui, com a linguagem que lhe é própria, ouvimos um grande silêncio. Isso não quer dizer que não temos artistas talentosos que nasceram na região onde nasci. Posso citar a pintora Djanira da Motta e Silva (Avaré, 1914 – 1979), o escritor Herculano Pires (Avaré, 1914 – 1979). Os filmes que tratam do interior são costumeiramente de comédia: Tapete vermelho (2006) e Marvada carne (1985), para ficar em dois exemplos. Sem falar nos lendários filmes de Amácio Mazzaropi (S. Paulo, 1912 – 1981) que retratam um estado engraçado, de fala macia. Contudo, S. Paulo não é feito apenas de comédias. Cito, por isso, os poetas nascidos no interior: Orides Fontela (S. João da Boa Vista, 1940 – 1998), Ricardo Domeneck (Bebedouro, 1977), Ledusha (Assis, 1953), Carlos de Assumpção (Tietê, 1927) com obras que, de um modo ou de outro, engrandecem a língua do interior. Dito isso, eu gostaria de ter ouvido e ter sabido que é melhor falar naquilo que conhecemos de perto do que tentar soar como um paulistano ou um carioca. Na minha inocência infantil, acreditava que alguém como eu não poderia escrever, que não poderia assumir a escrita como um caminho. Há muita violência por aqui, muitas mortes de jovens. E tudo isso é preterido pelos grandes centros culturais. Tenho um grande desejo de que isso mude cada vez mais.

Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?

Não tenho um estilo próprio. Sou muitos. Espero que nunca condicione a minha escrita a ter uma voz. Pode parecer estranho dizer isso, mas caso eu fosse agregar às minhas angústias, essa de ter uma voz, não escreveria uma só linha. O ser humano muda. É vário. Sou humano, logo sou variado. A ideia de um eu único e idêntico a si mesmo já não foi muito desafiada?  Se nem a nossa psique é unificada, se nem a língua portuguesa é uma só, como haveria eu de ter uma voz? Um estilo? Deus me defenda de tal atrocidade. Quero a liberdade de incorrer em diversos erros. Deus me livre de concorrer para o mito da unidade. Eu não. Morro defendendo que todos somos muitos de uma vez só.

Muitos autores me influenciaram e me influenciam. Não convém falar muito neles. Os contemporâneos, justo eles, os que são de difícil acesso — há uma questão financeira nisso. Os mortos, sobretudo. Gosto muito da Conceição Evaristo, da Hilda Hilst, da Clarice Lispector, do Machado de Assis, do Guimarães Rosa, do Fernando Sabino. Alguns poetas como Robert Lowell, John Ashbery, Sylvia Plath, Anne Sexton, Maya Angelou, Solano Trindade, Edimilson de Almeida Pereira, Paulo Leminski, João Cabral de Melo Neto,  Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade etc. etc. Os meus amigos eu não cito. Seria covardia, mas os amo todos. Acho que foi o Andy Warhol que disse que ser pop é gostar das coisas. Me coloco em diálogo com tudo quanto posso perceber a minha volta. O funk, o rap, o sertanejo. Um estilista famoso, do rabo de cavalo grisalho disse — vi na série We are who we are, do Luca Guadagnino — é preciso se interessar pelo que está acontecendo agora. No começo, me apeguei com Aluízio de Azevedo e Machado de Assis. Mas quando percebi que eu seria um garoto de catorze anos ancorado no século XIX, decidi pelo contemporâneo. Não há nada mais retrô do que isso. Mas é assim mesmo. E gosto assim.

Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?

Difícil de dizer um. Recomendo os seguintes:

Night sky with exit wounds, de Ocean Vuong

Ladainha, de Bruna Beber

Seiva, veneno ou fruto, de Júlia de Carvalho Hansen

Vicente viciado, de Renato Negrão

Duração do deserto, de Nina Rizzi

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    José Nunes é editor da Colenda.

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