Pedro Mohallem é poeta e tradutor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Devagar, sobretudo durante a semana. Gosto de acordar mais cedo para me dar o luxo de lavar o rosto, ferver a água do café e não fazer nada de útil por um tempo. Se escrevi ou traduzi um poema no dia anterior, aproveito esse período ocioso para relê-lo com a cabeça descansada.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
O acontecimento do poema se estende por tempo indeterminado: às vezes é instantâneo, às vezes dura anos. Há primeiro a manifestação do poético, sem hora exata para se dar, decorrente de um dedo de prosa (lembro que pelo menos dois poemas meus nasceram de versos que encontrara quase prontos em frases de amigos, em conversas que nada tinham a ver com poesia), de uma palavra pinçada num livro, de uma cena presenciada da janela do prédio em SP ou no quintal de casa em Minas – essas coisas banais que nos penetram, desafiando a passividade e o automatismo do dia a dia. Ou pode vir de algo interno, mesmo: uma inquietação constante, um cismar sabe-se lá com o quê, que precise da escrita para se exorcizar. Há ideias que se verbalizam quase que imediatamente, e outras, mais caras, que ainda não consigo manejar como gostaria. Esse deve ser meu ritual de preparação, ou o que o valha.
O ato da escrita em si, por sua vez, requer de mim – e de qualquer poeta, penso – atenção integral à palavra, e lido melhor com isso em momentos de reclusão. Estes variam bastante, mas se dão principalmente à noite e, como já dito, pela manhã, embora eu a reserve mais para a releitura do que tenha escrito no dia anterior. Até eu chegar ao ato definitivo de me sentar e escrever um verso, é preciso destilar muita coisa.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Funciono em temporadas: escrevo muito em poucos dias, passo semanas sem escrever um poema sequer, torno a produzir em número razoável, abandono a escrita, e por aí vai… Não tenho meta diária nem para os poemas que traduzo sob encomenda. Aliás, a própria ideia de me impor uma meta parece conflitar com minha ideia de fazer poesia, talvez porque a considere algo indissociável de meu estado de espírito: há dias em que simplesmente não estou com cabeça para isso, e prefiro não forçar. Alguns chamam de indisciplina, mas quem sou eu para querer disciplinar a natureza?
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Gosto de pensar que o poema leva em si um pouco da escultura e um pouco da música: sua concretude estende-se no tempo, edificando-se na leitura e ruindo após a mesma.
Então, meu processo de escrita é basicamente tatear a matéria verbal, errando, demolindo, refazendo o caminho das pedras até encontrar uma harmonia que se firme sobre o silêncio, sonora e significativamente. Vivo mutilando, suturando, suprimindo e enxertando meus versos. É preciso forjar a espontaneidade e, para isso, abdicar de certas ideias (e formas) fixas: já escrevi poemas que, a princípio sonetos, se concluíram com a metade dos versos necessários e dizendo justamente o oposto do que eu pretendia dizer, e outros que, insuficientes em si, abriram espaço ao longo das leituras para mais três, quatro estrofes inteiras.
Em vez de notas, reúno palavras, versos, expressões para uso futuro na poesia: mantenho num bloco de notas fragmentos de todo tipo, de versos acidentais encontrados em romances a estrofes engavetadas há anos… Quanto a temas, sempre pesquiso um pouco antes de escrever sobre certos assuntos. Por exemplo, compus dois poemas recentemente, um sobre Ganimedes e outro sobre Helena de Troia. Ainda que o uso das personagens tivesse fins para além da mera exposição de suas histórias, foi preciso estudar um pouco a mitologia grega e a presença dessas figuras na literatura e na arte de um modo geral para dizer bem o que queria.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
O fato de não me impor metas de escrita me deixa bem tranquilo em relação a isso tudo, mas também me deixa mal-acostumado: tendo a ficar impaciente em alguns momentos e procrastinar em outros quando lido com projetos longos. Felizmente, tenho aprendido a me conter e dar um passo de cada vez, buscando alguma constância na produção e na qualidade do texto.
O medo de não corresponder às expectativas se dá mais na tradução do que na produção autoral. Como lido quase sempre com textos célebres de autores consagrados e por vezes já (bem) traduzidos, como Baudelaire e Shakespeare, há um certo medo de não entregar uma tradução digna do original. Contudo, sei que é um medo infundado: toda tradução, por pior que seja, tem algo a ensinar.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso até sentir neles uma unidade coerente e harmoniosa. Em um poema, isso significa lê-lo em voz alta repetidas vezes e em momentos diferentes do dia, com diferentes estados de espírito. É impressionante como há tantos leitores de nossa própria escrita dentro de nós mesmos… Se o poema soar bem, se sua ideia se sustentar independentemente do ânimo, ele provavelmente estará pronto.
Não costumo mostrar meus trabalhos para outras pessoas antes de publicar, exceto em se tratando de uma homenagem: se o homenageado estiver vivo, será o primeiro a ler o texto. No mais, a crítica é quase sempre feita – e acatada – após a publicação.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Minha relação com a tecnologia é amistosa: 99% do que eu escrevo têm origem num bloco de notas em meu computador. A praticidade que há em apagar poemas inteiros com dois cliques me pegou pelo pé. O celular também ajuda a registrar ideias repentinas quando não há papel e caneta à disposição, mas quase nunca o uso para escrever de fato.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Do ponto de vista técnico, isto é, de como abordo a língua, minhas ideias vêm sobretudo de quem já deu o exemplo, como Drummond e Paulo Henriques Britto, nortes do verso e da retórica; também aprendo um bocado com poetas letristas como Leonard Cohen e Bob Dylan. Do ponto de vista temático, as ideias vêm da observação constante de dentro para fora e de fora para dentro. Ver o que me cerca me ajuda a pesar o restante: o que sou e o que está ausente. Saudades e esperanças, esses demônios do agora, também são ótimos combustíveis para a escrita, ao passo que as coisas boas não precisam da redenção das palavras, então raramente as registro.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Meu processo de escrita é intrínseco a meu amadurecimento. Eu escrevo poesia faz pouquíssimo tempo… O Pedro de 2012 talvez nem soubesse diferenciar poema de prosa, senão pela quebra do texto em versos ou em linhas contínuas; quando fez seu primeiro poema, sabia que a rima era importante, só não sabia por quê; quando estudou métrica, fê-lo só para encaixar as sílabas tônicas na posição correta e, com sorte, fazer os versos rimarem no final. A preocupação era direcionada ao uso normativo da forma, sem exatamente explorar o estilo, a escolha vocabular, o que era dito e como era dito – enfim, sem explorar a poesia de fato. A pira era fazer sonetos por fazer e me achar herdeiro de Camões… Isso durou até o primeiro ano do curso de Letras, quando entendi que um bom escritor deve ser, antes de tudo, um bom leitor. Fazer confluírem a leitura crítica e a paixão pela escrita me deu maior manejo da língua enquanto matéria artística, do nível fonético ao pragmático, e tornei-me pouco mais consciente e menos submisso às convenções; e, claro, houve inegável mudança no conteúdo de meus poemas: ter saído do interior de Minas para uma graduação em Letras na capital paulista fez meu repertório cultural se expandir monumentalmente. Se antes eu só reproduzia chavões e lugares-comuns da poesia mais palpável, hoje quase identifico uma voz própria em meus escritos. Isso, a meu ver, é um baita progresso.
No entanto, se eu pudesse voltar à escrita de meus primeiros textos, eu não seria sincero comigo sob hipótese alguma. Eu diria o que todos me disseram: “Muito bem, continue assim.”
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Não tenho nenhum projeto de longa data, mas hoje ouvi falar de um romance de Nicole Brossard chamado Mauve Desert. O livro é dividido em três partes, sendo a primeira parte a história em si, a segunda uma teoria da tradução, e a terceira uma tradução para o francês da primeira parte. Nada muito curioso, exceto pelo fato de que a primeira parte já estava em francês! Ainda não cheguei a lê-lo, portanto não posso imprimir nenhum juízo de valor no resultado, porém a proposta é brilhante: leva a prática tradutológica para outro patamar de realização artística. Desde então, a ideia de escrever um livro de poemas bilíngue português-português tem me assombrado.
Eu gostaria de ler um livro de correspondências queimadas.