Pedro Marques é escritor, compositor e ensaísta, autor de “Encurralada” (2020).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meu dia começa e é tomado por tarefas corriqueiras. Tenho mais o que fazer todo dia. Lidar com alimentação, tratar de filho, consertar torneira, falar com minha parceria sobre a planta doente ou a aula de amanhã. Sou adepto da ação, do negócio criativo. Nesta roça chamada Brasil, não dá pra querer uma legião de gente tirando seu lixo, passando sua roupa, digitando seu currículo, subsidiando seu teto, sua viagem. E tem até anarquista que sonha com essas coisas. O ócio aqui é destrutivo. É menos romântico que escravista. Se marcar, um monte de gente entuba pra você fazer seu poema, seu quadro ou seu artigo que, não raro, seguirão inéditos mesmo depois de publicados.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Qualquer hora é hora. Pra mim a poesia, em verso ou prosa, é a antítese do mundo ordenado e mal pago. A escrita como resposta à rotina maquinal do trabalho e das obrigações. Entre um trampo e outro, uma colherada e outra, um verso. No intervalo das provas corrigidas, da louça lavada, do desviar da bala perdida, uma estrofe. Enquanto durmo ou caminho, vejo um filme bom ou uma notícia ruim, um poema se processa. Textos interessantes ou desprezíveis podem ecoar no banheiro ordinário ou nascer da vigília idealizada. Porque não há glamour algum, que só seria possível com muita grana e mão-de-obra a meu dispor. E, claro, inconsciência sobre essa condição sui generis. Procuro não morar na ruas dos bobos. Pra mim, um poema chega a qualquer hora pra se vingar do que vive pra evitá-lo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Minha cabeça nunca para de escrever ou de imaginar que escrevo. Mas só coloco as mãos pra dançar todos os dias quando estou enfiado num projeto de texto. Porque aí tem o prazo externo, de quem encomenda ou solicita, e a minha meta interna, ainda mais lâmina na garganta. E também não há segurança alguma de conclusão ou qualidade. O agricultor, em sua técnica tão antiga quanto andar pra frente, tem mais certeza sobre o futuro do milho na panela. O cultor de poemas, cuja arte escrita é mais recente que plantar e cantar, não garante o doce de seu fruto, via de regra um aborto depois reanimado por leitores e críticos generosos. Isso se tiver sorte, amigos, influência ou propina.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Dá de tudo na minha horta. Pesquiso e escrevo ao mesmo tempo. Escrevo um montão pra depois adubar com pesquisa. Pesquiso fortemente sobre um tema ou uma forma, pra seguir ou tirar o arado de campo. Às vezes, ainda, está tudo escrito, sustentado e amarrado como uma tese, mas sem nenhum instante cantante. Porque oralizo tudo, sobretudo quando estou escrevendo pra canção. Às vezes dá uma laranja linda de ver e travosa pra chupar. Sabe aquele professor que só escuta elogio de puxa-saco? Feliz na sua bolha encantada? Isso apodrece poema, viu? Começar é fácil. Terminar o circuito de uma canção, de um conto, de um ensaio é que são elas. Pelo menos pra mim.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Meu negócio é trabalhar com, na e pela poesia de todos os versos e prosas. Visto as roupas da poesia pra pelejar contra a ideologia que quer me tornar um consumidor animal adestrado, um trabalhador que rala apenas pra pagar sua ração. Não tenho medo de resistir a esse projeto, bem sucedido em todas as profissões, de colocar o ser humano numa rotina de granja obrigado a botar ovo pra outro comer. Esse é o anti-projeto mais longo que me move e me derrota diariamente. Os resultados podem ser mais ou menos bons, depende dos olhos de quem ouça ou leia, mas o grito existe e não trava nunca. Ah, mas o poema é belo? Bom, esse lance de beleza pura eu deixo pros legisladores travestidos de poetas, muitos que de libertários só tem a barbicha.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Gosto mais de revisar do que escrever. Demoro pra fazer. Uma eternidade pra refazer. É a parte do prazer. Garrafa que infelizmente seca. 9% pra escrever. 90% pra reler e reescrever. 1% do tempo pra divulgar. Ou seja, meu negócio de poesia está fadado ao fracasso. Devia depositar mais energia na divulgação, no cacarejar, diz o departamento de marketing. E quando penso que os leitores vão investir, com sorte, 0,5% desse tempo pra ler o que aprontei? Porque a leitura também se dobrou à doutrina do consumo, não? Escuto “intelectuais” se gabarem de terem devorado 100 livros por mês na quarentena. Puxa, apreciar um livro, me parece, demanda um outro tempo de desordem subjetiva. Não é fumar uma pedra e já descolar outra e outra… No fundo, eu que sou bobo na ilusão de fazer poemas pra serem degustados. Devorar é um verbo muito mercantil pro meu gosto.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Junto com o corpo ereto e a memória, a escrita talvez seja das tecnologias mais incríveis já criadas pelo ser humano, este tipo com um medo danado da morte. A escrita é uma eternidade virtual, das inscrições tumulares às biografias pra lembrar de quem já era. Uso o que vier, do lápis ao laptop passando pela esferográfica rolando no papel, este, aliás, outro marco tecnológico pra minha profissão.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Mantenho a disciplina de ler (em todos os sentidos) tudo com cuidado, das ruas que molham os pés aos livros que perfumam os sonhos. Procuro criar a partir de tudo, do que nem sei. E tudo passa por uma gravidez. Mas se sou criativo? Se o resultado é inventivo? Aí é com os leitores.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Talvez o que tenha mudado mais é, justamente, a relação com o tempo do fazer e do refazer. E também com a própria maneira de ler o universo dos seres e das letras. Eu diria a mim mesmo, embora talvez fosse em vão, respeite e desenvolva seu próprio tempo. E não perca tempo dublando a vida nem o estilo de ninguém, amigos ou ídolos. Aliás, cânone é negócio de igreja, e a poesia é outro samba esquema novo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Sempre quis mexer com projetos artísticos e acadêmicos que misturassem canto, leitura, crítica, jogo e rigor. Busco isso o tempo inteiro, extraio minha colheita daí, descobrindo cada vez mais galáxias nesse multiverso. Tenho que vai por aí meus desejos que ainda não conheço. Mas quem é que sabe, né? Finalmente, se o tempo não fechar demais nesta roça, quero ler dois livros que estou fazendo. Um de contos poéticos sobre a América do Sul, e outro sobre a poesia pra ler e cantar no Brasil. Quero escrever o que ainda não existe. Depois de ler, me desapontar. E escrever outro e outro.