Pedro Marcos Nunes Barbosa é doutor em Direito Comercial pela USP e professor da PUC-Rio.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Há dois períodos muito distintos durante um ano para um profissional que, entre outras atividades, lida com o mundo acadêmico. Assim, quando há aulas a serem lecionadas pela manhã, a rotina desta primeira parte do dia é bastante distinta do que ocorre no período de recesso da docência. Nos hiatos cronológicos das chamadas ‘férias escolares’, preciso fazer exercício físico, seguido do café da manhã e, ato contínuo, inicio o primeiro período de estudos do dia (a segunda e derradeira parte é feita pela noite, após a labuta). Lida a meta matinal e feitas as anotações pertinentes ao texto, sigo para o trabalho na advocacia que preencherá o resto do dia.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
A partir das 9h da manhã, tanto para a advocacia, quanto para a coordenação acadêmica e para a docência propriamente dita, me sinto bem apto ao labor. Em geral, se é necessário trabalhar à noite para cumprir metas de escrita para pareceres, artigos ou livros, após uma refeição noturna me sinto reanimado à labuta. No tocante aos rituais para a escrita, gosto de ter ampla leitura pretérita (pesquisa) como fonte fidedigna do que irei fazer, e aprecio a inspiração de música Barroca (como Bach) para catalisar o tempo dedicado à escrita. Para os momentos de ápice criativo, penso que a “Ode à Alegria” de Beethoven e Schiller dá ênfase ao prazer de escrever. Um mate quente caseiro, e uma temperatura amena são complementos perfeitos para a escrita.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Em trabalhos que exigem longo fôlego (como uma tese de doutorado), adotei o método de começar a escrever ainda que a pesquisa bibliográfica esteja em curso. Com um adágio bobo, mas funcional, sigo o lema de que “uma página por dia pode trazer muita alegria”. Com tal disciplina que não conheceu interstícios (sábados, domingos, feriados, todos foram preenchidos com a escrita), acabei a minuta inaugural da minha tese junto a FADUSP com seis meses de antecedência. Por óbvio, havia dias em que escrever uma página poderia demorar uma hora, e outros em que cinco a dez páginas fluíam serenas como o ‘fluxo de cachoeira’. O tempo que ganhei entre ter uma primeira minuta e a data do depósito serviu para refletir, revisar, ler mais obras, e “polir” o texto com a maturidade das ideias. A mesma meta mínima vale para textos acadêmicos escritos em outra língua, visto que sempre há uma redução do vocabulário quando escrevemos em um outro idioma.
Quando há trabalhos de menor extensão (artigos, capítulos de livro, diminutas crônicas) tento cindir a escrita para no máximo dois ou três dias, concentrando o processo de elaboração do texto.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Gosto de escrever num ambiente em que não haja circulação de pessoas nem a propagação de ruídos. Penso que há uma interessante lição numa obra do audiovisual hollywoodiano para todos aqueles que trabalham com a escrita. No filme “Encontrando Forrester” do ano de 2001, um grande autor estadunidense tem a sua personagem (William Forrester) interpretada por Sean Connery, que ‘adota’ um pupilo. Quando o mestre está transpondo sua experiência de escrita ao aprendiz, há um diálogo marcante em que a personagem sênior diz ao jovem sobre escrever antes de raciocinar: “No thinking, that comes later (…) You write your first draft with your heart. To rewrite it with your head. The first key to writing is to write, not to think”.
Penso que qualquer escritor humilde terá como premissa a insuficiência de fontes, visto que nosso débito com a ‘pilha de leitura’ é sempre crescente numa progressão geométrica e que, mesmo no ápice de nossa produtividade, o máximo que chegamos a absorver expande numa progressão aritmética. Contudo, depois de pelo menos cinco textos ou livros sobre o tema, já é possível ensaiar a escrita. Um sábio professor e ministro do Supremo costumava dizer que “devíamos ler mais e escrever menos”.
Por sua vez, com alguma bagagem cultural e bibliográfica, mesmo que a pesquisa esteja em seu curso, entendo ser importante materializá-la com o texto. Os processos de pesquisa e escrita podem ser concomitantes, desde que o autor tenha a humildade de mudar de curso quando absorve um conhecimento que afeta as premissas inaugurais (aquelas implícitas, a precompreensão, a ideologia).
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A leitura de literatura não jurídica é uma grande aliada para um espaço cronológico de “trava mental”. Prazos antecipados aos limites de termo, a rotina de garantir ‘conteúdos mínimos de evolução’ diária ajudam muito a evitar os efeitos nefastos da procrastinação. O lema blasé de uma página diária reduz profundamente a ansiedade, e em poucas semanas o seu resultado traz a serenidade necessária para os longos projetos. O importante é não ceder por mais de uma semana para a tentação da inércia.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Entendo como imprudente qualquer exteriorização de um texto sem que seu autor o tenha revisto por, pelo menos, duas vezes. Mas ainda que tal tenha sido feito, gosto sempre de contar com algum revisor antes de publicizar materialmente o texto. Penso que o revisor deva ser alguém mais experiente, que seja rígido com as análises de conteúdo (e formais), de modo que um terceiro só acesse um material que perpassou diversos filtros qualitativos. Antes da publicação, elogios são sempre mais perigosos do que as críticas; depois da publicação, a apatia dos interlocutores é sempre pior do que as críticas.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tenho uma relação paradoxal com o ambiente tecnológico: de um lado escrevo toda minha produção intelectiva diretamente no processador de textos, mas, de outro, só leio livros físicos e faço anotações nos próprios exemplares que servem de pesquisa. Além disso, após o término da obra tenho todas as minhas anotações em formato “.doc” para ulterior consulta e citação. O armazenamento dos resumos e críticas das obras que li em formato eletrônico agiliza muito a produção de novos textos, a preparação de novas aulas, além da revisão de uma disciplina.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
A advocacia é – para mim – uma fonte inesgotável de inspiração. Lidar com o serviço público, vivenciar realidades peculiares com a burocracia estatal, ver o contraste entre os clientes, os colegas ex adversos, o contencioso beligerante que se vive, a consultoria estipulada com prazos curtos, tudo isto já produz muito insumo criativo. Creio que a única advocacia em que não se pulula conteúdo criativo é aquela de massa.
Tenho o hábito de consultar cerca de dez periódicos por dia – em especial ler as crônicas –, cada qual de matiz política diversa, para não circunscrever meu conhecimento sobre o que está a acontecer ao meu redor. Também gosto de, ao menos uma vez por mês, ler artigos ou reportagens em periódicos tradicionais estrangeiros, não só para manter um mínimo de vocabulário em outros idiomas, mas também para evitar ficar manietado, insular, tudo aquilo que é depreciativo à massa cinzenta e que pode vir da rotina cansativa nacional.
No período de férias tento me expor a uma maior quantidade de peças teatrais, óperas, exposições e livros; e durante a concomitância da advocacia com a docência, assisto a muitas séries, além de filmes diversos. O que não varia entre os períodos é a constante apreciação musical.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Para a elaboração de trabalhos acadêmicos mais sérios, penso que a principal alteração entre os labores inaugurais (monografia, dissertação e artigos) para aqueles feitos hoje em dia é o estilo de escrita e a relação com as obras citadas. Penso que as obras jurídicas nacionais estão – em geral – muito formalistas, com um percentual exagerado de transcrições, e com rodapés tão volumosos que podem se afastar da concatenação de ideias e conceitos objetivos. Na minha tese, diferentemente da dissertação, citei muito mais do que transcrevi, preferindo emprestar minha interpretação sobre as obras dos autores com quem estava a dialogar. Muito longe de uma simplificação iluminista, entendo que tal faz o percurso do interlocutor/leitor algo mais prazeroso. Todas as vezes que leio um livro jurídico de um autor estadunidense, noto como a linguagem mais simples, sem tanto juridiquês, o uso da “end note” ao invés do rodapé, acaba ampliando o leque de interlocutores de uma obra.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Quando terminar de escrever o volume 2 do Código da Propriedade Industrial Comentado com Jurisprudência, que comecei a escrever com meu falecido pai (professor doutor Denis Borges Barbosa), pretendo me dedicar à escrita de uma “Teoria Crítica da Propriedade Intelectual”. Como inspiração, gostaria de fazer algo com a objetividade estadunidense (ao exemplo da obra de Joseph Singer “No Freedom Without Regulation”); de extensão concentrada como os excelentes livros de Humberto Ávila (Teoria dos Princípios) e de Daniel Mitidiero (Precedentes); quiçá com a sensibilidade de Alfredo Augusto Becker (Carnaval Tributário); e com a leveza de Carlos Ari Sundfeld (Direito Administrativo para Céticos).
Dos livros existentes, aguardo ansioso para ler todos os volumes de Em Busca do Tempo Perdido (Proust); mas entre as obras que não existem, ficaria curioso em ler o livro “A Hermenêutica Jurídica Jedi em Mestre Yoda”.