Pedro Karp Vasquez é escritor, fotógrafo e editor na Rocco, onde é responsável pela obra de Clarice Lispector.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não tenho uma rotina matinal, mas gostaria muito de ter, como já tive na época em que eu me dedicava à tradução. Contudo, quando comecei a trabalhar na Editora Rocco não tive mais possibilidade de manter o mesmo esquema visto que preciso cumprir o expediente normal de trabalho.
Tenho índole madrugadora, de modo que minha rotina de tradução ia das seis às treze horas, seguindo o sábio conselho de Raymond Chandler de reservar as manhãs exclusivamente para a escrita. Para mim o período mais produtivo é o compreendido entre seis e oito horas, quando eu fazia uma pausa para o café da manhã. Isso porque durante essas duas horas a cidade ainda está despertando e ninguém telefona para você, nem mesmo aquela turma do golpe de falso sequestro, que costuma atuar somente tarde da noite ou, preferencialmente, de madrugada.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
No meu tempo de jornalismo as redações eram muito barulhentas, não por causa do matraquear simultâneo de dezenas de máquinas de escrever, como também em virtude das conversas, das entrevistas e/ou apurações realizadas pelo telefone, da televisão sempre ligada e da sala de rádio sintonizada na frequência da polícia. Todos aqueles que aprenderam a se concentrar em meio a esse caos sonoro são capazes de escrever em qualquer lugar e em qualquer circunstância. É o meu caso, com a vantagem que não sou daqueles que se declaram incapacitados de escrever à mão, em virtude do advento dos computadores. Ao contrário, eu prefiro escrever à mão, com caneta tinteiro, que acompanha a velocidade do pensamento. Não sendo possível usar caneta, qualquer lapiseira de 0,7 mm também serve. E, tenho alimento preocupações ecológicas, costumo usar o verso de folhas A4 impressas para escrever. Uso até mesmo uma daquelas velhas pranchetas de Eucatex para acomodá-las.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
O fato de ser um trabalhador assalariado que cumpre expediente impede-me de acalentar uma meta de escrita diária. Eu escrevo de fato todos os dias, mas durante os dias úteis prioritariamente para a editora, e nos fins de semana e feriados, para mim. Hoje em dia eu sou obrigado a escrever aos trancos e barrancos, em surtos de operosidade. Todavia, caso eu pudesse me dedicar apenas à escrita eu adotaria uma rotina de trabalho metódica, porém elástica. Quando eu me dedicava à escrita de livros sobre a história da cultura (prioritariamente sobre fotografia, mas também sobre cinema, artes plásticas, cartofilia, filatelia e literatura) financiados pela chamada Lei Rouanet, eu costumava trabalhar o dia inteiro, concentrando a escrita na parte da manhã e a pesquisa no período da tarde. Eu tinha o hábito de escutar música no rádio até às 18 horas, quando entrava “A Voz do Brasil”. Então, para fazer aquela “extra mile” recomendada pelos atletas que desejam ir além do esperado expandido continuamente seus limites, eu colocava um CD e trabalhava até que a música acabasse. Na época, meus “campeões de audiência” pessoais eram “Antonio Brasileiro”, de Tom Jobim e “Unplugged”, de Eric Clapton.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Como eu atuo em ambos os campos, é preciso estabelecer uma distinção entre a escrita de livros de ficção e os de não ficção. No caso de um trabalho de pesquisa histórica a coisa é mais simples, basta acumular o maior número possível de informações sobre o tema a ser tratado e depois começar do ponto mais fácil, que muito raramente é o começo. Geralmente o ponto de partida é o meio do livro e, mais dificilmente, o final, muito embora isso possa ocorrer nos casos em que existe uma tese a defender. No caso das obras de ficção eu sou mais intuitivo e espontâneo: começo logo escrevendo a partir de uma inspiração qualquer e depois vou acumulando lembretes a respeito de certos pontos que precisam ser tratados ou melhorados.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Quando eu não sei bem o que fazer eu não faço nada… Prefiro lavar louça ou arrumar a casa, que, para mim, são formas de meditação. Mas uma boa caminhada na praia também é muito recomendável. Quando trabalho em projetos financiados, eu estou sempre aberto às críticas e sugestões, pois não estou escrevendo para mim e, portanto, preciso rever e recomeçar quantas vezes se fizer necessário e, com frequência, as pessoas envolvidas no projeto (editores, designers, fotógrafos, tradutores, revisores) oferecem sugestões valiosas. E, pelo menos no que diz respeito ao trabalho com projetos de longo prazo, eu tenho a paciência de um monge budista, inclusive com a mesma resignação e desapego quando o projeto não dá certo (tenho uma pasta no computador de “Projetos furados” com mais de uma centena de itens). O Álbum da estrada União e Indústria, que escrevi sozinho a respeito da documentação fotográfica de Revert Henry Klumb, demandou onze anos de esforços para finalmente sair. O Rio de Janeiro do fotógrafo Leuzinger, 1860-1870, que fiz em parceria com Maria Lúcia David de Sanson e Mário Aizen, demorou dezoito anos para sair… Por outro lado, quando escrevo poesia, ficção ou livros infantis, não me importo muito com as expectativas alheias pois a avaliação destes tipos de livros são sempre subjetivas e personalistas, de modo que sempre haverá quem gostará e quem detestará ou, no mínimo, desdenhará.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Em outros tempos tudo o que eu escrevia passava pelo crivo de minha mulher, que oferecia sempre boas sugestões. Hoje, infelizmente, ela não tem mais condições de me ajudar com a mesma assiduidade, porém eu continuo a consultá-la para os textos de ficção sempre que possível. No caso dos livros de pesquisa sobre história da cultura sempre é prudente mostrar os textos antes aos especialistas dos temas abordados, para evitar ao máximo a possibilidade de erros ou distorções.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Como eu também me dedico à fotografia, minha relação com a tecnologia é a melhor possível. Contudo, havendo possibilidade e disponibilidade de tempo, eu prefiro escrever à mão com caneta tinteiro, pois assim no momento em passo o texto a limpo digitando-o no computador, já vou efetuando uma primeira reescrita. Isso feito, sempre imprimo o texto produzido para ter condições de corrigi-lo no papel, já que (pelo menos em minha experiência pessoal) corrigir textos apenas na tela não funciona.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As ideias surgem de todas as partes, súbita e inopinadamente. O grande escritor italiano Antonio Tabucchi gostava de escutar as conversas de desconhecidos nos bares e nas ruas. Sem ter a mesma vocação detetivesca, eu também gosto de ser surpreendido por uma frase entreouvida na rua ou na condução. Às vezes não são nada inspirativas, mas com frequência são bastante engraçadas… No que diz respeito aos hábitos inspirativos, o primeiro deles é, evidentemente, a leitura cotidiana, mas também os filmes (eu me graduei em Cinema), e as exposições de arte, que gosto de visitar sozinho na hora do almoço para me concentrar realmente no material exposto sem ter o espírito disperso pelos comentários de eventuais acompanhantes. Como sou limitado pelo horário do almoço sou obrigado a voltar duas ou três vezes à mesma exposição para apreendê-la em sua totalidade. Mas houve o caso da retrospectiva de Henry Moore no Paço Imperial, que exigiu um total de seis visitas, pois fiz questão de assistir a todos os documentários sobre ele, todos muito interessantes. Outro hábito extremamente inspirativo (embora de natureza não cultural) é caminhar. Não apenas na praia ou em parques, como forma de exercício, mas o bom e velho hábito de flanar pela cidade, atualmente um tanto quanto em desuso em virtude do aumento da violência urbana. Contudo, quando eu dispunha de mais tempo, eu costumava fazer longos trajetos a pé pois essa é a única maneira de realmente se conhecer uma cidade e seus habitantes.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu acho que meu processo de escrita não se alterou substantivamente ao longo dos anos, apenas se adequou às novas tecnologias. Como trabalhei em jornal e revista eu gostava de escrever em laudas tabuladas, tendo assim uma noção perfeita das dimensões do texto e estando habituado a escrever textos “sob medida”. Antes o que imperava era a lauda de 30 linhas de 60 ou 70 toques, agora os textos são medidos em números de caracteres. No passado eu costumava recortar os textos para inserir as correções e os adendos nos locais desejados antes de datilografar a versão final, agora o trabalho foi facilitado, pois não é mais preciso digitar todo o texto, bastando trocar ou acrescentar os trechos desejados. Ainda assim eu costumo fazer uma impressão do texto para corrigi-lo fazendo as correções mais longas à mão no verso ou até mesmo em folhas suplementares, antes de voltar ao computador para passar tudo a limpo. Ou seja, eu não evoluí apenas me atualizei.
No que diz respeito ao conselho que eu daria a mim mesmo é simples, pois tenho sempre essa verdade em mente: todo texto pode ser melhorado. Sempre, sem dúvida alguma.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O projeto sonhado chama-se O daguerreotipista, a história de um jovem francês que vem para o Brasil em torno de 1840, vivenciando o primeiro período do reinado de Dom Pedro II, anterior à Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai, e a fase pioneira da fotografia aqui dominada pelos processos de daguerreotipia, ambrotipia e ferrotipia, que produziam imagens únicas. Minha intenção seria a de utilizar os conhecimentos amealhados para a redação dos livros de história da fotografia em uma narrativa romanesca livre dos grilhões da precisão técnica e factual. Mas esse é um projeto inexequível por enquanto, pois demandaria dedicação exclusiva, ou na hipótese mais otimista a disponibilidade de três ou quatro horas diárias de escrita.
Eu realmente não consigo conceber a imagem do livro ideal que jamais foi escrito e que eu gostaria de ler. Isso porque a lista de livros efetivamente existentes que eu gostaria de ler é demasiado longa, demandando pelo menos uns bons três anos de leitura. E, tenho certeza de que chegando ao final desse prazo, com todos os livros visados devidamente lidos, a lista de livros a serem lidos teria se expandido em virtude das sugestões decorrentes das próprias leituras realizadas.