Pedro Guerra é escritor e redator publicitário.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordo, vou para o banho, tomo café apressado e vou para o trabalho. Nada muito diferente do que qualquer brasileiro que precisa pagar as contas. Sou redator de publicidade e normalmente o mercado publicitário é muito flexível (ou bagunçado) com horários, mas sempre procuro chegar as nove. Chegando cedo aumento a minha possibilidade de sair cedo. E sair cedo aumenta minha possibilidade de escrever à noite.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Já escrevi em todos os horários, menos de madrugada. Acho que a madrugada é pra dormir, beber ou trepar. Não tenho particularmente predileção por nenhum horário. E se tivesse eu estaria em maus lençóis pois tempo pra escrever é o que eu menos tenho. Ser exigente com tão pouca oferta é um luxo que não posso me dar. Então eu encaro o que me aparece. É o jeito. Quanto a algum ritual, não tenho. Mas gosto de escrever em um ambiente de silêncio e acompanhado de vinho ou cerveja. Pra mim funciona muito bem.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu tenho a sorte de conseguir ter horários razoavelmente bem estabelecidos, mas ainda assim não posso dizer que consigo equalizar meu tempo de escrita. Minha vida se divide entre a minha casa, a casa da minha esposa e os momentos em que passo com meus dois filhos, frutos do meu primeiro casamento. Arrumar uma brecha nesse arranjo para escrever é bem difícil. Logo, falar em meta de escrita diária é algo que nem me passa pela cabeça. Acontece vez ou outra de conseguir encaixar uns três ou quatro dias em que consigo escrever à noite, e isso me deixa feliz. Ao mesmo tempo posso passar semanas sem tocar no material, o que é bastante frustrante. Quando estava escrevendo o Avenida Molotov cheguei a passar um mês sem pôr os olhos nele. O que significa que antes de começar a escrever novamente tive que reler o livro inteiro para relembrar o ritmo que dei para o romance, os personagens, as pequenas sub-tramas… Tento me adaptar à bagunça porque sei que é uma realidade que vai durar muito tempo. Acho que só quando aposentar, se conseguir (porra, Bolsonaro), vou ter alguma paz e uma rotina de escritor.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Primeiro eu tenho que gostar de uma história. Pode ser uma história que eu criei ou alguma história que eu li ou que me contaram. E assim que eu gosto eu começo a tentar estruturar o romance, como se fosse o esqueleto de um prédio. Tento pensar numa cena inicial em primeiro lugar. Nem me preocupo muito com o primeiro parágrafo embora saiba que há um certo fetiche sobre primeiros parágrafos em geral – e gosto muito do paragrafo inicial de Lolita, do Nabokov. O que me importa mesmo é a primeira cena. Daí em diante eu deixo o texto descansar e vou tomando notas, criando alguns diálogos esparsos que podem ou não podem ser incluídos no romance, tentando apreender algumas características dos personagens, criando cenas posteriores e um final. O final é essencial porque é onde quero chegar – talvez mais adiante conheça a emoção de escrever sem saber onde vou dar, mas duvido que isso um dia aconteça. Então, ponho tudo no bloquinho de notas do meu celular e vou em frente. Embora eu não tenha disciplina para de fato escrever, passo muito tempo pensando no meu livro. Quando sento diante do teclado, eu já tenho grandes passagens elaboradas, cenas importantes criadas, o que facilita. É muito raro eu sentar para escrever sem saber o que vou escrever.
Ainda não precisei de nenhuma pesquisa profunda sobre nenhum assunto, mas quando estou em dúvida sobre algo procuro amigos ou vou na rede mundial de computadores (dizem que veio pra ficar) e tento me inteirar do assunto em questão. Estou escrevendo meu segundo romance e um dia no Twitter dei de cara com uma thread sobre embalsamento e a rotina de uma funerária. Achei que era uma oportunidade formidável de enriquecer a vida de um personagem que era dono de uma floricultura: e então meu personagem passou a preferir fornecer flores e coroas de flores para funerais do que trabalhar entre cadáveres na funerária da família. E isso abriu uma série de portas para o desenvolvimento da trama e do personagem. Nem me passou pela cabeça investigar sobre isso, mas quando apareceu na minha frente, não vacilei.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
O meu medo vem travestido de preguiça. Foi um longo processo pra entender isso. E também pra diferenciar a preguiça-preguiçosa, a preguiça-raiz, que eu gosto e cultivo, da preguiça-medrosa. Como não tenho horários fixos pra escrever ficava antecipando o momento de escrever, ficava salivando, como uma criança a espera de uma guloseima. Quando finalmente ficava diante da guloseima – meu computador – aí batia uma preguiça, uma vontade de fazer outra coisa… Hoje esse mecanismo já não me aflige tanto. Principalmente porque as expectativas que eu mais tento corresponder são as minhas. Meu parâmetro sou eu e as pessoas mais próximas de mim que eu respeito e admiro como leitores. Eu escrevo primeiro pra mim, depois pra eles. E quando eu entendi isso, foi libertador.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Várias vezes. Sempre que começo a escrever, leio o capitulo anterior. Aproveito para revisar. E quando termino o livro, leio uma vez. Depois mando para a minha esposa, a Giovana Madalosso, que além de ser minha leitora de segurança calhou de ser uma baita escritora, ora vejam só. Ela lê, faz anotações, considerações. Então releio depois dela. Só aí mando para o editor. E depois da edição releio de novo. São umas três lidas no mínimo.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tudo no computador. As anotações vão no celular. Deve haver alguém que cultue o barulho da maquina de escrever e o cheiro da tinta no papel, mas para mim nada se compara ao Word. Eu nem imagino o que Dostoievski, James Joyce ou Guimarães Rosa fariam com uma tecnologia dessas. (Se bem que o David Foster Wallace tinha acesso a programas editores de texto e fez Graça Infinita.)
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
O hábito é por definição cerceador, apequenador. É uma cerca que a gente constrói ao nosso redor. E por isso é algo que a gente tem que aprender a driblar. Não é todo mundo que pode ou quer ser Hemingway e dirigir ambulância na Primeira Guerra, cobrir a Segunda Guerra, sofrer dois acidentes aéreos e no meio tempo tomar daiquiri em Havana (pra no final ainda estourar a cabeça com um tiro), mas as historias estão aí, o jornalismo fornece relatos riquíssimos e o próprio dia-a-dia está cheio de momentos inspiradores. Basta olhar para o lado. Na rua onde moro, testemunhei várias vezes, sempre aos sábados, um morador de rua lavar sua roupa na água que escoava pela sarjeta até o bueiro. Essa cena estará no meu terceiro romance. Por outro lado, o tédio também pode ser bem fértil. Thomas Mann se inspirou na ida da sua mulher a uma casa de repouso nos Alpes Suíços para escrever não sei quantas páginas sobre uma turma… numa casa de repouso nos Alpes Suíços. E parece que foi bem-sucedido.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Embora tenha tido alguns momentos de efervescência literária durante minha vida, comecei a escrever assiduamente em 2014. Ou seja, não estou tão distante do início. Se pudesse voltar e conversar comigo mesmo diria para tentar ser mais profissional e criar uma rotina dedicada a literatura – embora saiba que no meu contexto atual qualquer rotina é impraticável.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Começando pela segunda pergunta, o livro que eu gostaria de ler já existe, ou melhor, existem, e já li vários deles: A Grande Arte e Agosto, do Rubem Fonseca; Ensaio Sobre a Cegueira, Memorial do Convento e o Evangelho Segundo Jesus Cristo, do Saramago; Reparação e O Inocente, do Ian McEwan; A Pianista, da Elfriede Jelinek; A Marca Humana, do Philip Roth; Grande Sertão: Veredas, do Guimarães Rosa; A Guerra do Fim do Mundo, do Mario Vargas Llosa; Tirza, do Arnon Grunberg; Sargento Getúlio, do Ubaldo Ribeiro… E ainda tem muitos que gostaria de ler e ainda lerei. Quanto ao projeto que eu gostaria de fazer, eu tenho na minha cabeça dois romances. Ficarei feliz de concluí-los. E quando os concluir pensarei em mais outro. Estou planejando morrer só depois dos 80. Acho que ainda vai dar pra escrever bastante se tudo correr bem.