Pedro Demenech é doutor em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sim, eu tenho uma rotina matinal. De manhã, quando acordo, preparo meu café. Cumpro a série diária dos rituais matinais e, depois, vou nadar ou pedalar. É muito importante, para quem escreve, tanto como obrigação quanto como ofício, exercitar-se, porque, além de todos os benefícios, ajuda a ordenar as ideias. Mas, em determinadas épocas, minha rotina muda. Agora, por exemplo, que é verão, acabo indo nadar mais cedo, mas quando as aulas começarem terei que rever alguns horários.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Para mim, o melhor horário vai do início da tarde até o pôr do sol. Hoje, acho estranho sentar-se na cadeira por mais de quatro horas seguidas. Quanto aos rituais, posso dizer que já os tive. Agora, não mais. A escrita, para mim, tornou-se um trabalho e uma fonte de prazer em que coloco a energia, principalmente porque através dela consigo mudar algo em mim.
Antigamente, há mais ou menos dois anos atrás, escrever era uma dureza, dureza essa relacionada com a dificuldade de lidar com os sentimentos, a concentração e a produção de uma subjetividade, muitas vezes, embaralhada. Ficava muito ansioso porque queria algo pronto. Mas, quando a gente descobre que a escrita é um processo, como tantos outros, o trabalho fica mais dinâmico.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Acho legal a ideia de trabalhar com metas, mas, no caso da escrita, eu as estabeleço quando é realmente muito necessário. Por outro lado, a maneira como escrevo varia de acordo com a época. Agora, por exemplo, estou mais concentrado em preparar as aulas que devo dar este semestre e, por isso, meu foco são as leituras que serão trabalhadas em sala de aula. Aliás, acredito que o ato da leitura funda a escrita. Em relação a isso sou completamente borgiano, porque me interesso mais pelas páginas que li do que pelas que escrevi ou, ainda, vou escrever.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Essa é uma pergunta difícil a meu ver. Vou respondê-la de duas formas porque coexiste em mim um processo consciente e outro menos claro, por isso mesmo um tanto inconsciente.
O processo consciente tem a ver com a escrita da minha tese de doutorado, “Velhos e novos mundos: Ángel Rama em Diario (1974-1983)”, defendida no Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura da PUC-Rio. Por quê seria consciente essa escrita? Ora, ninguém faz uma tese, seja ela qual for, sem o mínimo de planejamento, ainda mais na história. A gente monta sumário, junta documentação, faz notas e, depois, quando tudo isso fica parecendo uma espécie de massa amorfa, a gente ainda é obrigado a construir um sentido. E construir um sentido, algo minimamente organizado, dá trabalho. Nesse caso, o difícil nem é começar, mas ter coragem para continuar e elaborar as ideias.
No meu caso particular, posso dizer que, na tese, quando fui da pesquisa para a escrita o texto foi ganhando forma. Chegou um momento em que, por várias razões, delimitei meu tema e usei o que estava à disposição. Caso não fizesse isso, continuaria perdido e destinado a perpetuar o mito de que ainda não havia lido o último livro sobre meu assunto.
Por outro lado, o processo inconsciente, mencionado mais acima, teve a ver com a análise que iniciei no doutorado. Essa escrita, num tom mais pessoal, é fruto da pesquisa que faço sobre mim, mas não é necessariamente uma autodescoberta. Escrever, aliás, é também uma forma de conhecer a si, até porque, quando sabemos nossos limites, podemos criar algum estilo na tentativa de nos superarmos. Aí, devo dizer, é uma escrita mais repetitiva, porosa e escorregadia, porque, quase sempre, permanece aberta e fragmentada.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Boa pergunta. Já disse que o lado inconsciente da minha escrita tem relação com a análise que iniciei em 2014.
No segundo ano de doutorado, quando publiquei um livro de contos e ensaios, escritos ao longo do mestrado, em paralelo à confecção da dissertação, comecei a me sentir uma espécie de fraude. Por várias razões, não conseguia dar início àquilo que pretendia começar. Foi, então, que busquei ajuda e comecei a criar uma rotina, porque sem rotina jamais podemos levar algo adiante.
Nesse sentido, acho que o que atrapalha, não só a mim, mas a outros, é a idealização que nós temos a respeito da escrita. Tratamos a escrita como algo sagrado, com uma aura quase mística, talvez porque ela seja uma forma de demarcar nossa presença através do tempo. Além do mais, ela parece ter mais valor que outros trabalhos porque é um processo intelectual. Certo, mas e o processo físico por trás da escrita?
Por exemplo, a mistificação do autor solitário, recluso num quarto ou na biblioteca, é furada. Óbvio que o trabalho de escrita, geralmente, é solitário, mas não há nada de místico nisso, nem glamouroso. Como o corpo fica após uma defesa de tese? Geralmente, as pessoas estão com dores nas costas, estressadas, tortas e com a vista cansada depois de ficar tanto tempo sentadas olhando para o ecrã e tentando acertar os últimos detalhes.
Escrever não é apenas um processo intelectual, é uma atividade física que demanda muito do corpo. Por isso, acredito na importância de manter-se bem mental e fisicamente para seguir adiante nessa função.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso meus textos mais por obrigação do que por prazer. Para mim, é uma das partes menos prazerosas da escrita. No que tange à escrita acadêmica, sim, reviso algumas vezes meu texto e, quando há algum dinheiro, contrato uma boa revisão. Aliás, a função de revisor deve ser, cada vez mais, valorizada, até porque, melhora e muito a qualidade do texto. E tem gente boa fazendo isso, mas que não é contratada porque as pessoas acham caro o serviço, só que, a meu ver, vale cada centavo. Revisão é trabalho tão minucioso quanto a escrita, pois envolve burilamento e lapidação daquilo que, de certo modo, ainda é bruto.
Já na escrita ficcional, as coisas são um pouco diferentes. Como mantenho uma espécie de fluxo de ideias, eu as publico como num flow de rap, num tempo que é própria a elas. Às vezes, porém, reviso algo ali e aqui. Esses textos, geralmente, já são publicados no meu blog.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Não tenho problemas com tecnologia, acho ótimo escrever no computador. À mão, hoje, escrevo no meu diário que, desde 2007, mantenho com algumas intermitências.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Minhas ideias geralmente vêm das minhas experiências cotidianas e das leituras que vou fazendo. Por isso, mais uma vez, vale lembrar, acredito que a leitura é tão importante quanto a escrita, afinal, sem ler jamais podemos escrever algo substancialmente bom. Ademais, a leitura mantém a mente afinada porque na absorção de outras ideias podemos criar algo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
O que mudou, acho, foi a percepção do que seria a escrita. Ela não é necessariamente sagrada, mas, sobretudo, uma forma, um meio, para se comunicar e se conectar com o mundo.
Hoje, eu escrevo, reescrevo e, se necessário, torno escrever o que estava reescrito. Foi repetindo várias vezes esse processo que pude criar o meu estilo. Estilo entendido, nesse caso, como uma fórmula que me ajuda a começar um projeto, um texto, um artigo sem necessariamente ficar paralisado pelo medo ou pela procrastinação.
Quanto à escrita da tese, se pudesse retornar para ela, diria a mim mesmo o seguinte: “Pedro, pegue leve, desacredite de qualquer ideia original e escreva o que estiver ao alcance. Caso não consiga, deixe para outro dia. A gente melhora amanhã, com a cabeça descansada”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de escrever um livro sobre a automodelagem latino-americana dos séculos XIX e XX, isto é, uma análise sobre como os principais intelectuais do continente (Andrés Bello, Sarmiento, Rubén Darío, José Martí, Pedro Henríquez Ureña, Mariano Picón-Salas, Ángel Rama) construíram a noção de pessoa ao trabalhar sua individualidade. Seria interessante, aliás, um trabalho desse tipo num continente em que toda a ação intelectual deve parecer política e engajada, além de estar regulada pela esfera pública. Essa visão, a meu ver, tem atrapalhado, e muito, o entendimento sobre um lado importante da formação desses intelectuais: a subjetividade, uma característica ligada, sobretudo, ao meio pessoal.
Para finalizar: gostaria de ler algum dos textos que Borges mencionava em seus contos, talvez a Enciclopédia Chinesa.