Pedro Belo Clara é escritor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
No que toca à escrita, não. Dado que a maior parte do meu trabalho é poético, muito raramente sujeito-me a regras rígidas. Deixo apenas acontecer, isto é, assumo, a cada dia, uma postura passiva, de disponibilidade. Mesmo quando há prazos para cumprir e o tempo aperta… Pois, inevitavelmente, algo surge. Há apenas que estar atento.
Se por ventura tiver em mãos um trabalho de prosa, dos que geralmente escrevo para blogues literários, também não direi que haja uma rotina definida, apenas tenho presente a necessidade de o escrever e entregar em tal data. Assim, seja manhã ou noite o que importa é encontrar um lugar no dia para o escrever. Se o arranque mostrar-se desafiante, um bom café é sempre uma ajuda preciosa. E lembrar que o mais importante é escrever. Se é bom ou não, é uma consideração que virá depois.
Seja como for, é uma questão de sentir vontade para a construção, o que geralmente sucede quando fico disponível para o texto. Portanto, o dia tanto pode começar com uns rabiscos no bloco de notas, com a correcção de algum trabalho de véspera… Ou até com nada disto. Nunca sei, é sempre uma surpresa. (E, por isso, um divertimento quase pueril – à parte das habituais dúvidas e dores de cabeça, que também fazem parte do processo.)
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não tenho hora específica nem ritual preferido. É tudo muito natural e espontâneo, para ser sincero. Nasce da observação, da vivência, da experiência… e também do pensamento e da memória. Assim, tanto poderei escrever às onze da manhã como às onze da noite. E até já aconteceu resgatar alguns versos a uma insónia obstinada, escrevendo num completo negrume, nem sabendo bem por que linhas… Embora seja raro, devo dizê-lo.
Se tenho algo de novo para escrever, isto é, o acto de criação em si é geralmente espontâneo, mesmo que saia algo fragmentado. Afinal, é apenas o primeiro rascunho; e quase nunca o resultado final é igual ao primeiro esboço. Todo o meu esforço está no lapidar dos primeiros impulsos, sempre com o cuidado de não enublar a essência primitiva.
Se houver um texto já iniciado, talvez até acabado mas que sinta necessidade de o polir, então a única preparação para ele será a total abstração de tudo e o mergulho completo no imenso oceano de palavras e imagens que, naquela primeira vez, todos aparentam a meus olhos. E faço-o uma e outra vez, e ainda uma nova vez, as que sentir necessárias, até que o coração naufrague por inteiro naquelas linhas ou então já nem suporte ver mais um verso ou frase à minha frente. Muitas vezes é a melhor indicação de que já se encontra “pronto”.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
A escrita acontece-me quando acontece. Não interfiro nesse processo. Já o fiz, no passado, e nunca senti que desse um bom resultado. Já vagueei por parques e cafés de caneta e caderno prontos ao uso, tentando beber tudo o que me rodeasse, tentando extrair, digamos, sumo de magros caroços. Era uma tolice que exigia um esforço tremendo, ao ponto de até ser um desrespeito por aquilo que o corpo e o coração realmente pediam. Mas não renego o ensinamento que me deu.
Portanto, não tenho metas diárias nem me proponho voluntariamente para a escrita, mesmo havendo obrigações a cumprir. Fazê-lo seria restringir a criatividade. E se me sinto em grilhões de pronto abandono seja o que for. Só quando algum texto em prosa urge ser escrito é que me poderei aproximar um pouco mais da ideia de metas, mas nunca forço a escrita. No caso, o intento será escrever o máximo possível dentro da disponibilidade da ocasião e da frescura mental com que me apresente.
De modo geral, e penso que já ficou claro, escrevo quando a escrita acontece. As palavras vêm ter comigo, batem-me à porta e depois cabe-me a tarefa de dar-lhes forma no papel, arrumá-las conforme a sensibilidade do momento me ditar. Se tal não acontece, então a escrita também não nasce. Já rejeitei vários convites só por não sentir qualquer impulso para escrever sobre o assunto proposto. Principalmente, desejo sentir-me bem e feliz com o que faço. E protejo esse bem-estar como puder.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Como já disse, o meu processo é bastante espontâneo. A questão da pesquisa não se aplica tanto à poesia quanto à prosa, portanto quase nunca a faço. Somente um olhar limpo e atento – e um coração aberto ao dia. Se considerarmos o que o olhar capta e o coração sente como uma forma de pesquisa sobre o meio circundante, então que seja. Mas o processo é fluido, essa passagem da apreensão à escrita. Depois, seguir-se-á a lapidação de versos, palavras, imagens… É aí que gasto grande parte do meu tempo, como antes referi.
Por vezes, os versos não saem limpos e com uma lógica aparente. Quando tenho várias notas fragmentadas e um texto sem grande união em si, pode ser difícil começar algo ou até terminar. Tenho, por exemplo, um texto em prosa poética de parte há muitos meses por causa disso: a dificuldade em lhe encontrar unidade e encadeamento lógico entre todas as notas que recolhi. Foi um desses casos de texto que nasceu não do princípio ao fim, mas duma colecção de notas soltas que fui anotando por apreciar a melodia das palavras conforme surgiam, o seu sentido mais poético, a imagem que sugeriam. É um texto em que não volto sempre; aliás, há meses que não lhe toco. Pois, em casos assim, o melhor é deixar a solução nas mãos do tempo: um outro olhar, mais maduro, fará maravilhas.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Com a calma que na altura me for possível. Cair em desespero não ajuda em nada.
No que toca à procrastinação, entendo-a como um sinal de “dia de não-escrita”. O que num momento nos parece tão distante da sua execução num outro torna-se apelativo e sentimos um fluxo tremendo de entusiasmo e vontade. Então, a escrita acontece. Parecerá estranho, eu compreendo, mas é a verdade do que me sucede.
Sobre a questão das expectativas, há muito que não as tenho. O meu foco está apenas em produzir aquilo que de melhor sei e consigo fazer no momento. Se o leitor apreciará ou não, já não sei. Nem o sinto como um problema meu. Dou o melhor de mim, ofereço os meus melhores frutos, como muitas vezes o digo, a quem passa na estrada. Já o acto de cessar a caminhada, esticar um braço e colher o fruto não me diz respeito. Sou apenas a árvore que oferece o seu fruto. Nem sempre pensei assim, claro. Gosto de acreditar que a maturidade dos anos concedeu-me esta visão. Eu também não sou autor de mercado ou de modas, o que escrevo é o que canta em mim, e a isso sou fiel. Então, registo-o e ofereço ao mundo. Quem desejar, que escute ou leia. Ficarei feliz se assim for. Se não… também fico feliz. Pois a maior alegria, para mim, está na criação. Já viu algum pássaro cantar, e como tão sublimemente cantam certas espécies, e esperar aplauso? Não lhe importa quem escuta ou o que pensa sobre o seu canto. Apenas canta, pois outra coisa não poderia fazer. É uma felicidade transcendente: cantar pelo gosto supremo de cantar.
Por fim, os projectos mais longos. Bem, esses exigem realmente mais paciência. Corre-se várias vezes o risco de perder o entusiasmo e cair na tal procrastinação. Mas se há prazos a cumprir… Mantenho o foco e bem presente a necessidade de terminar o trabalho. Mesmo que tenha um arranque lento, mesmo que cresça de modo cuidado, mesmo que exija muita consulta e pesquisa… Haja calma, foco e paciência. E, claro, a tal boa chávena de café que nessas circunstâncias ajuda. E muito!
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Revejo-os muitas vezes, como já anteriormente dei a entender. Se tenho um texto ou poema para entregar passo vários dias com ele antes de o enviar ao editor que o requereu. Por vezes, até uma semana. Leitura após leitura, lapidação após lapidação. É aquilo que o Eugénio de Andrade muito justamente um dia chamou de “trabalho de abelha”. Claro, nem todos os autores seguem esse rumo, eu compreendo. Mas para mim é algo indissociável da minha natureza. A exigência existe, é alta e, bem utilizada, só nos auxilia a crescer como autores. Mas é difícil dizer quando sabemos que um trabalho está pronto. Apenas acontece: dá-se um clique, surge diante do olhar um brilho de pequeno fogo… E pronto. É algo muito mais intuitivo do que racional. (Essa parte só se aplica na revisão da lógica da escrita, isto é, se escrevemos tudo o que realmente queríamos dizer.)
Não costumo partilhar os meus textos antes de os enviar, mas já aconteceu. Foram sempre poemas, poemas onde, de certa forma, tinha alguma dúvida mais persistente sobre a clareza do sentido. Faz isto lembrar aquele poeta chinês que lia cada poema que escrevia à sua cozinheira analfabeta. Só que se ela não os entendia ele de pronto os rasgava. Não chego a tanto, e o tal poeta só desejava que os seus poemas fossem compreendidos por todos, gente do povo ou letrados de alto calibre. Mas pela visão alheia podemos colher benefícios e, assim, crescer. Embora só nós, como criadores, é que saibamos na verdade o real sentido de cada texto, o que nele quisemos exprimir. Nisso, o outro nunca saberá mais que eu, que o vivi, pensei ou senti, e desse modo pouco poderá auxiliar. Contudo, uma leitura exterior, por vezes, ajuda. Aconteceu poucas vezes, como já disse, e sempre que aconteceu fi-lo com outros parceiros de escrita, amigos próximos que já me conhecem, assim como o meu estilo de escrita.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Relaciono-me bem com a tecnologia, claro, mas não dispenso a folha de papel e a caneta, fiel amiga de tantas horas. Não é por mania ou qualquer pretensão, apenas um hábito. Além disso, gosto de escrever à mão; e a intimidade entre papel e caneta exala uma magia ímpar, convenhamos. Contudo, quando tenho de escrever textos mais longos, ou seja, prosa em geral, aí sim, utilizo o computador, dado ser muito mais conveniente. Se tiver notas agrupadas, decerto que essas estarão escritas à mão, mas o corpo do texto em si… é no computador que o escrevo. É, portanto, a poesia que quase sempre nasce no papel – seja no caderno habitual, no pequeno bloco de notas ou, tantas vezes, as últimas folhas dalgum livro que no momento esteja a ler.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
É um mistério insoldável, parece-me… Esse, donde surgem as primeiras ideias para um determinado trabalho. É certo que quase sempre ocorrem através dum estímulo exterior que fomenta o pensamento, que agita o coração ou aviva a memória. Mas o lugar donde as primeiras palavras vêm…? Quem o saberá dizer? Parece um imenso oceano, um vazio absoluto que é princípio e fim de tudo.
Fora esta questão, que dita assim até parece bastante metafísica, a principal inspiração vem do que me rodeia. A tal postura de estar atento e recetivo, como antes falei, é o abrir da porta ao que quiser passar. Mas talvez me explique melhor com um poema, se me permite: «Só um coração atento / descobre um poema / nas dobras do vento.» É simples e tudo diz. Será isso, portanto, apenas aquilo que cultivo, dado que por natureza não me aventuro muito na prosa – que para mim sempre tem um parto difícil. O resto… acontece por si. E tudo é solo benéfico ao irromper dum verso: uma criança que corre, o vento que sopra nas árvores floridas, uma rosa corando com os beijos do sol, uma nuvem que passa, dois amantes que se esquecem num abraço que parece eterno… Tudo. Até um livro que esteja a ler, por exemplo, pode perfeitamente instigar um poema. Daí que tenha tantas folhas finais de tantos livros rabiscadas.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Aconteceu um amadurecimento natural, eu diria. No arranjo das palavras, no aprimorar das imagens, mas também em todo o processo de construção. O vocabulário aumenta, vamos lendo novos autores que inevitavelmente nos deixam novas marcas e sugestões, experimentamos novas melodias, novos sentidos. Em termos formais, foi isto o mais marcante. Mas é importante dizer que os primeiros escritos que decidi publicar eram de teor mais meditativo, ou filosófico, se quiser, do que os actuais, de pendor mais lírico. Embora, de certa forma, ambos imbuem-se um no outro. Não creio que tenha verdadeiramente abandonado um veio para me dedicar em exclusivo ao outro. O meu último livro, por exemplo, é prova disso: o Lydia é claramente um livro de poesia lírica, embora de verso livre, com um grande apelo ao belo, à celebração do instante em que se vive, mas não deixa de oferecer as suas reflexões sobre o mundo e os amantes que protagonizam, diga-se assim, a obra. É inevitável à minha natureza: um olhar atento capta e conta, mas também reflecte.
Olhando para trás, a única coisa que gostaria de mudar, no fundo, é a imaturidade que agora vejo que tinha. É claro que na época não me considerava supremo em nada, mas tinha um modo muito inocente de encarar tudo que então me passava despercebido. E, de certa forma, talvez fosse mais livre. Mas isto que digo é uma tolice, no fundo, pois temos invariavelmente de partir dum lugar de maior inexperiência para começar o caminho. Talvez não editasse o que editei, mas na altura sentia-me capaz e desejei fazê-lo. Surgiu a oportunidade e aceitei. Foram anos de muita luta e frustração, devo dizê-lo, mas ajudou a moldar a minha visão sobre tudo, que agora é muito mais relaxada, livre e despretensiosa. Em suma, fez-me crescer e tornou-me livre. Por isso, apesar de todas as vicissitudes que agora poderei apontar, foi o ponto de partida que me guiou até aqui, até este momento. E como nada tenho contra o lugar onde hoje estou, logo não tenho com que me queixar. Portanto, nada mudaria.
Se tivesse de dizer algo àquele jovem inocente e bem-intencionado seria apenas isto: continua o teu rumo, segue o coração e sê feliz no que fazes. Na verdade, foi o que fiz. Mas se então me tivessem dito isto é certo que as dúvidas e as angústias teriam sido bem menores. No entanto, voltamos ao mesmo: quem me diz que não foram importantes para o meu crescimento?
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Não sei. Não conheço todos os livros do mundo, logo como saber se por ventura um que gostaria de ler não tenha já sido escrito? Provavelmente foi, só que ainda não fomos apresentados. Como diria o Almada Negreiros (e muitas vezes me lembro disto): já foi tudo inventado. Talvez a frase seja debatível, eu aceito.
Sou muito selectivo nas minhas leituras. Simplesmente já não tenho paciência para ler um livro só porque sim, porque é considerado o topo do topo, anda nas bocas dos sábios da literatura, venceu um Nobel por larga margem ou é indispensável em qualquer biblioteca que se preze. Nada disso me importa. Se a história não me interessa, ou o estilo ou género, simplesmente nem lhe pego. Nem sempre foi assim, especialmente nos primeiros tempos. Também não digo que cheguei agora a um nível de maturação tal que não necessito mais de explorar outras coisas. Nada disso. É apenas uma questão de manter o foco no gosto pessoal, no ler pelo simples prazer em ler. Ainda assim, muitas vezes me engano… Entusiasmo-mo na compra de um livro (e estou sempre a comprá-los, estou sempre a ler cinco ou seis ao mesmo tempo) e muitas vezes saio frustrado. Comecei, por isso, a fazer algo que nunca julguei que fizesse: devolvê-lo à estante mesmo sem o terminar. Mas ler com prazer acaba, do ponto de vista prático e daquilo que um autor pode recolher para si das suas leituras, por definir uma linha de estilo e temáticas que nos são próximas ao coração, e assim, dentro desse modo de expressão, também nos auxilia a crescer como autores.
Sobre os projectos. Bem, gostaria ainda de editar um ou dois livros de contos. Tenho imensas notas soltas arrumadas a um canto e outras tantas ainda na memória. No tempo certo, e ainda não sei que tempo será esse, gostaria de desenvolvê-las a preceito. Além disto, também não escondo que gostaria de escrever um romance, um dia. Um apenas, bastaria. Um que, talvez, dissesse tudo o que sinto ser importante dizer, mesmo que parecesse que nada diria. Também tenho algumas notas de parte. A prosa tem em mim um parto difícil, como já disse. Porquê, não sei. É assim. Questão de natureza, talvez, muito mais dada para a poesia. Mas também um enorme respeito pelo género. Tão grande ao ponto de me fazer questionar se uma incursão minha por tão vasto universo seria de todo relevante. Pois se sentir que não o é… então é certo que nada farei. Claro que este respeito também se aplica à poesia, mas ela é mais fluida em mim, muito mais natural – como cantar é para um pássaro, se me permite resgatar a mesma ideia de há pouco.