Pedro Américo de Farias é escritor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Rotina, pra mim, é método. Sanitário: urina, mão lavada, água fria no rosto. Cozinha: lavo os pratos da noite, preparo o café, que tomamos preto e sem açúcar, de preferência, acompanhado de tapioca, que gosto de fazer. O gato Junin: verifico ração, água, limpo areia e trocamos uns afagos ou brincamos de correr e assustar/emboscar um ao outro. Ele já me cobra quando esqueço. Celular: outro bichinho esquisito. Uma hora para ver as sabedorias e as bobagens. Faço umas postagens, compartilho outras, comento algumas, enfim, igual a todo mundo. Aos babacas não excluo nem respondo. Leitura: minha ocupação predileta, que posso dizer diária, inevitavelmente. Preferência: mais ficção e ensaio.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não tenho preferência de hora nem dia, mas considero a noite menos dispersiva. No entanto há os filmes, as séries e os documentários, quando não as próprias leituras, que me roubam da escrita. Isso não dá pra entender, não é? Que escritor é este, que não coloca a escrita em primeiro lugar? Voltarei a isso. Ritual? Sempre leio com grafite na mão, sublinhando, marcando no próprio livro e, de vez em quando, rabiscando digressões em cadernos. Estes rabiscos, quase sempre, constituem fragmentos de textos em andamento ou de futuros projetos.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não escrevo diariamente, nem tenho quota ou meta diária de produção de texto, embora pense, diariamente, no que estou escrevendo ou desejo escrever, refletindo sobre palavras, expressões, frases, ideias. Não trabalho nem penso mais na escrita como um escritor profissional, o que me deixa um pouco mais aliviado. Antes, por muito tempo, achava que podia vir a ser um escritor cheio de livros, viagens, palestras, contratos, roteiros de filmes e de peças de teatro. Bem, já faz muito tempo. Perdi a ilusão, perdi o interesse por essa utopia. Sou preguiçoso para correr tanto, escrever tanto, me angustiar tanto, inventar quimeras tantas… Com licença dos profissionais, quero aproveitar essa entrevista para me afirmar, precisamente, como um escritor amador, com direitos bem delimitados, enquanto tal: não preciso escrever, escrevo porque gosto e me dá prazer; não preciso publicar, mas publico, quando posso, porque gosto, sim, de ter retorno das leituras que fazem dos meus textos; posso doar meus livros de forma pouco ortodoxa, aos mais diversos tipos de pessoas, intelectuais ou não, preferindo as últimas. E ainda: posso me dar um direito bem precioso, o de não me considerar pertencente a qualquer gênero literário, seja poesia, ficção ou ensaio, porém praticante de um plurigênero, livre, solto e sacudido, que se pode inscrever em uma categoria bastante liberta chamada TEXTO. Ninguém da crítica, da teoria ou simples fã da leitura, membro da comunidade de amigos ou inimigos, precisa sentir-se na obrigacão de me incluir entre os poetas ou escritores dessa ou daquela geração, tendência, categoria, laia etc.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não sou um rabiscador viciado, igual aos que andam de papel e lápis na mão o tempo inteiro, nem tomando notas no celular, mas rabisco muito e normalmente as notas giram em torno de temas que elegi para desenvolver em trabalhos presentes ou futuros. Falei disso mais acima. A hora de começar a amarração de um trabalho costuma ser adiada muitas vezes. Essa dificuldade em começar é um sufoco. Até que chega um dia, quando me vejo nervoso, inquieto, incomodado com as leituras, sentindo raiva dos livros que estava lendo, sem aguentar pegar nenhum mais para ler, aí tenho de juntar os pedaços de papel, rever os cadernos, visitar os riscos feitos nos livros que andei lendo e procurar o lugar de cada palavra, expressão, frase, arranjar os verbos e os substantivos, as vírgulas no seu lugar e as personagens, se for o caso. Pesquisa, a rigor, só quando se trata de algum texto com ares de ciência.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Para chamar de trabalhos longos, tive uma experiência única com a ficção, um metaromance, Viagem de Joseph Língua (Ateliê Editorial, 2009), e um único ensaio histórico, Ficção em Pernambuco – breve história (com Cristhiano Aguiar, ed. dos autores, 2013). O mais foram pequenos textos ensaísticos ou poéticos, que se fazem presentes em jornais, revistas, livros e antologias.
Quando se trata de um texto poético, a escrita é prazerosa, a ‘trava’ não conta, não tem muita vez. Terá sua vez se estou escrevendo um ensaio (pequeno ou grande chamo por este nome), pois preciso elaborar com mais rigor o conceito e as referências, a estrutura dos parágrafos.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Fui revisor profissional por trinta anos, editando livros pela Fundação de Cultura do Recife ou trabalhando em edições privadas. Com isso quero dizer que eu reviso até os rabiscos. Quando estou montando um livro, o tempo todo, vou revisando cada palavra com seus caracteres, cada frase, parágrafo, página, capítulo ou parte, obsessivamente. Depois de montado, ainda duas ou três olhadas. E no entanto, nenhum está livre de erros. O meu último livro, Coisas: poemas etc, por exemplo, foi vítima de um terrível erro, provocado por excesso de confiança na memória: a autoria de uma canção de Gilberto Gil, usada como epígrafe, foi atribuída a Torquato Neto. Não mostrava a ninguém os meus escritos antes de publicá-los. Hoje os mostro a uma única pessoa, minha companheira, que também é do ramo da literatura, porque me tomou na marra o direito de lê-los. Acabei achando bom e adotei a prática, mas somente com ela. Inexplicável zelo, ou paranoia, justifica isso. Meus grilos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tenho dificuldades com as novas tecnologias, mas não resistência. Escrevo à mão ou diretamente no computador, dependendo das circunstâncias. Confesso que me ocorre um sensorial prazer na escrita à mão e gosto muito da minha letra, desenho e alinhamento, até venho pensando em fazer um livro todo em manuscritos, de capa a capa. No entanto, nada se compara à facilidade de digitação e correção, montagem e diagramação que um computador oferece, com sua rapidez de movimento, bem mais próximo da velocidade do pensar.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
O mundo das ideias é muito vasto e se encontra à disposição de toda a humanidade. Cabe a cada artista, selecionar, para o seu trabalho, ideias relevantes à construção do seu produto estético. Enquanto escritor não deixo de ser cidadão, portanto busco aprofundar minha cosmovisão, ao mesmo tempo em que tento organizar da melhor forma a relação entre as palavras, considerando os elementos linguístico-semânticos, tentanto alcançar os melhores efeitos rítmico-sonoros. Quanto aos hábitos que garantem a criatividade considero o da leitura crítica, que difere da leitura-passatempo (nada contra esta), que traga, não apenas a experiência de boa produção literária ficcional e poética, mas igualmente a de caráter ensaístico sobre teoria e crítica literária. Não se deve desprezar também a leitura, sempre crítica, da imprensa, no que diz respeito ao mundo da cultura artística e política. Para mim, o escritor não deve ser politicamente alienado (não me refiro a partido), nem, no plano geral, desinformado.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
No começo eu copiava, mal, os bons autores lidos. Com o tempo fui aprendendo que se você não descobre a própria voz é como se falasse com a língua de outra pessoa, como se pisasse com os pés alheios, ou seja: a voz não é sua, o caminho não lhe pertence. Hoje posso dizer que tenho minha voz, que piso com os próprios pés. O texto pode não ser bom, mas tem uma marca de singularidade. Raul Pompéia tinha uma expressão bem irônica e concreta para isso: “Mau mas meu”. Por isso, se padecesse o suplício de voltar à escrita dos meus primeiros textos, meu alter ego me diria, alto e bom som: “Parceiro, vá devagar com o andor, que o santo é de barro”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Um projeto que gostaria de desenvolver, tenho reunido elementos para isso, mas não comecei e tenho dúvidas se vou conseguir realizar: um romance que trate da migração de galegos (da Galícia espanhola) para o Nordeste do Brasil, durante o século XVIII. Quanto ao livro que gostaria de ler e ainda não existe poderia ser um romance que trate da migração de galegos (da Galícia espanhola) para o Nordeste do Brasil, durante o século XVIII.