Paulo Vasconcellos é professor do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordo por volta das sete da manhã, tomo café e, de quando em quando, compro o jornal (acho difícil renunciar ao jornal impresso, embora ache que a imprensa nacional tem sido pouco investigativa e o que os jornais brasileiros trazem acrescentam pouco ao que já se pode saber por outras fontes, mas é difícil deixar esse hábito de ao menos percorrer com os olhos as folhas do jornal pela manhã). Depois disso, parto para o trabalho parando para as refeições e terminando quando a mente já dá sinais de já não funcionar mais como deveria. Se não tenho de dar aulas na universidade, atender alunos ou participar de reuniões, trabalho, assim, em casa. E aí, se preciso for, não há distinção entre dia comum e fim de semana: todos os dias da semana podem ser empregados no trabalho. Muitas vezes, ao longo dos anos, alguém da família me fez algum convite para um programa de fim de semana e eu respondi: “tenho de estudar”, o que se tornou folclórico entre os familiares. É a minha resposta cômoda para não ter de precisar: “tenho de corrigir provas”, “tenho de preparar aulas”, “tenho de ler uma tese”…
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Por vezes, me sinto mais inspirado à noite (aliás, no início da carreira de professor, dei muitas aulas no período noturno e gostava muito disso), mas hoje, se trabalho muito até tarde da noite, tenho dificuldades para dormir, porque a mente fervilha e não quer descansar. Se pudesse, porém, seria mais notívago, mas durante o período letivo dou aulas e não posso dormir mal. Quando me aposentar, acho que vararei madrugadas lendo e escrevendo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não consigo ter meta diária por causa da rotina acadêmica, a não ser quando estou afastado das atividades didáticas e posso me concentrar totalmente na minha pesquisa. A escrita do professor universitário é interrompida a toda hora por causa de múltiplas tarefas que não a da escrita. Quando estou entregue só à pesquisa, a meta é o número de horas escrevendo ou pesquisando, que não pode ser menos de oito horas; o limite é o cansaço da mente ou as dores nas costas.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Primeiro, compilo notas diretamente no computador. Se estou escrevendo um livro, antes de começar a redigi-lo, já pensei nos capítulos e seções e no meu computador dividi em temas as notas e comentários, meus e de outros autores, com as devidas fontes. Na hora da escrita, fica mais fácil. Ao escrever, vou verificando citações e dados, e é comum que ao final do dia esteja cercado por uma montanha de livros e artigos. Quando trabalho em bibliotecas o dia todo, é a mesma coisa.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Evito pensar muito na recepção do que escrevo. Não gosto de reler o que escrevi no passado, pois sou sempre bastante autocrítico. Procuro dizer para mim mesmo que num dado momento é preciso colocar o ponto final e entregar a Deus, isto é, publicar. Mas já aconteceu de eu pegar para reler um artigo que acabara de ser publicado e, abrindo o texto ao acaso, topar justamente com o único erro de pontuação que deixara escapar. Já sofri muito com isso, quase um TOC. Hoje estou mais conformado com o fato de que sempre podemos deixar escapar algo, por mais atentos que estejamos à revisão.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso o mais que posso. Se escrevo texto de menor extensão, como artigos especializados, por vezes peço que algum colega leia e comente. Aliás, sempre achei que no Brasil fazemos pouco isso. Abre-se uma obra de Estudos Clássicos publicada no exterior e no prefácio o autor agradecerá a uma série de pessoas que leram e comentaram o manuscrito, ou discutiram suas ideias em congressos, etc. No Brasil, tendemos a ser mais solitários, o que é uma pena. Trabalhamos mais ensimesmados, sem muito diálogo com nossos colegas.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo diretamente no computador. Se é um livro, vou criando arquivos diferentes para cada grande área temática de que tratarei. No passado, usei muito a máquina de datilografia e corrigia os erros manualmente; o computador, nesse aspecto, é uma benção: não deixa vestígios dos tantos erros de digitação ou das hesitações do autor.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Às vezes, parece que as ideias nos tomam como um espírito que se incorpora de repente. Mas, mesmo esses momentos de intuição “direta” surgem após muita leitura e reflexão; assim, como sempre, não existe criação a partir do nada. Por vezes, percebo que é mais proveitoso, a certa altura, parar de escrever e ir caminhar; a mente relaxa e aí surgem eventualmente novas ideias, após horas de mente tensionada. A sensação é de se desintoxicar e deixar o caminho aberto para novas reflexões.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Escrevi minha tese basicamente usando o mesmo princípio que uso hoje, só que, em vez de arquivos de computador, empregava centenas de fichas preenchidas à mão. A minha tecnologia não mudou tanto assim. Na minha tese, certamente influenciado por certo tipo de latim, escrevi períodos muito longos, cheios de subordinação; quando a publiquei em livro, o que mas fiz foi cortar frases. Eu diria ao jovem que escrevia a tese para ter um estilo mais fluido, menos engessado.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Mal comecei um estudo sobre a recepção da Eneida no Brasil. Falta na bibliografia. E gostaria de um dia, com calma, longe da rotina acadêmica, traduzir sossegadamente essa epopeia.