Paulo Silas Filho é advogado, professor de Processo Penal e mestrando em Direito pela UNINTER.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordo cedo. Salvo poucas exceções, levanto às 5h. Todos os dias. É um hábito que adquiri já há muito tempo – buscando mais espaço para que eu conseguisse ler, escrever, estudar, enfim, ter um tempo só meu – aquele da solidão sadia. É um período do dia bastante tranquilo. Gosto muito dessa parte. Apenas eu, o café e o texto a ser lido ou escrito. Muitos colegas dizem o mesmo sobre a madrugada. Mas eu prefiro o cedo da quase manhã. De qualquer forma, é um tempo curto – mas suficiente para que um mínimo de leitura ou escrita matinal façam parte do meu dia. No mais, a rotina sequente também se faz presente, variando a depender do dia. Família, atividades acadêmicas, trabalho – tudo geralmente segue uma ordem (quando possível). O que não pode faltar é o café.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Pela manhã cedo ou à noite. Não pelos horários propriamente, mas por geralmente serem nesses períodos em que consigo me focar mais na escrita, ou seja, em que menores são as distrações. Tento sempre evitar passar da meia-noite, pois levanto às 5h, e quando durmo menos que 5 horas, a fadiga cobra durante o dia. Diria então que trabalho melhor quando estou sozinho, seja o horário que for.
Não tenho nenhum ritual de preparação para a escrita – a não ser que a preferência pela minha sala como um bom lugar para escrever possa assim ser considerado. Se eu tiver algum ritual, ainda não me dei por conta. Isso ou ainda não aprendi sobre a eventual necessidade de se ter um. Quando sento para escrever, assim faço independente do que possa estar acontecendo a minha volta (intencionalmente ou não): meu filho correndo e brincando pela casa, a televisão da sala ligada, música rolando, colegas de trabalho conversando… Por mais que eu busque evitar a presença desses fatores, não é o fato de eu saber previamente que eles ocorrerão que me impede de sentar para escrever. Algo buscado enquanto preparação para a escrita seria o silêncio, mas se não for possível, que seja. Sento e escrevo mesmo assim.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Difícil o dia em que eu não escreva nada. Não tenho períodos concentrados de escrita, pois ela para mim é algo constante. Está sempre presente. Textos literários, resenhas, trabalhos acadêmicos, ideias que aos poucos vão sendo desenvolvidas ou qualquer outra forma de escrita que estou habituado a escrever, são escritos diariamente. Não que isso seja uma meta. Apenas me incomoda quando passa certo período sem que eu nada tenha escrito. É algo individual, que eu tenho para mim, que o meu ‘eu’ me cobra. É um tipo de necessidade, algo lá de dentro, que pede que seja posto para fora. É como se existisse um serzinho residente dentro de mim que precisa tomar o seu banho de diário de sol. Ele até que aguenta quando vez ou outra não é chamado para poder contemplar o céu. Mas clama para que esse esquecimento não seja algo constante, pois tem o receio de atrofiar os seus membros, de não mais se habituar a luz do sol. No fundo, o maior medo desse serzinho é o de morrer de fome. E ele só se alimenta de verdade na área externa. Daí o porquê isso se constitui numa espécie de necessidade. Nada pretensioso. Apenas a escrita pela necessidade de que ela seja… escrita! E isso eu faço tanto através das escritas despretensiosas (que no final acabam também tendo uma espécie de pretensão: a pretensão pela despretensiosidade), como aquelas com algum fim específico: chocar, refletir, criticar, emocionar, criar ou compartilhar algo, cumprir prazo… Sobre os prazos, alguns deles acabam auxiliando bastante no suprir dessa necessidade de escrever. Escrevo quinzenalmente para o “Artrianon”, por exemplo, onde mantenho há um bom tempo uma coluna sobre metaliteratura – ou algo próximo disso, pois escrevo sobre ler e escrever. No “Sala de Aula Criminal”, mantenho ativa minha coluna “Direito & Literatura”, onde escrevo estabelecendo intersecções entre essas áreas do saber. Esses e alguns outros são exemplos de formas de prazos que assumo intencionalmente para manter em voga o processo da escrita. Se isso for considerado algum de tipo de meta, que seja.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A pesquisa é algo constante. Um processo que está sempre em voga. Não há como parar – principalmente num meio caótico como é o Direito. Costumo fazer anotações das ideias que surgem quase sempre que de maneira espontânea. Se um tema me incomoda, e se julgo válida determinada abordagem sobre ele, registro a ideia – ainda em seu estado primevo – em qualquer lugar que esteja mais próximo e disponível. Tenho anotações em arquivos salvos no computador, que vão desde uma curta linha num bloco de notas até longos parágrafos em “Word” em que tento resumir a ideia para tentar seguir a partir dali posteriormente, em aplicativos do celular, em áudios que envio para mim mesmo no WhatsApp, em post-its, em pedaços de papel, em cartões, em folhas destacadas… Vale tudo – o que não vale é perder a ideia, mesmo que quando reanalisada num segundo momento ela não pareça mais tão interessante como quando do seu surgimento. De qualquer modo, vale sempre o registro, seja qual for o tipo de ideia para qualquer pretensão com a escrita. Dessa forma tenho sempre algumas notas registradas sobre determinados assuntos. Isso tanto para os escritos acadêmicos como aqueles que faço com outra pretensão – inclusive os que não possuem qualquer pretensão.
Sobre o processo de escrita, depende do tipo de texto que será produzido. Se for um artigo acadêmico, reúno notas, livros sobre o tema pesquisado, artigos e afins – quase todos com leituras e marcações já prévias, elaboro a estrutura pretendida do texto e dou início à coisa toda. Se for um texto menos formal, literário, por exemplo, sento em frente ao computador, abro o arquivo que receberá o texto (em continuação, do zero ou partindo de alguma anotação que registrou uma ideia surgida dias atrás – vai da inspiração do dia ou da ausência dessa), penso minimamente sobre o trajeto pretendido e dali dou início. Paulatinamente ou freneticamente. Depende sempre – e nem imagino de que. É isso, ou o caos – que no final acaba dando certo de qualquer forma (ou pelo menos assim eu penso).
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
O medo eu enfrento. Arrisco. Não tenho outra opção na maioria das vezes. Então o que me resta é escrever. O demônio da síndrome do impostor surge com frequência sussurrando no meu ouvido. “Sério que você vai publicar isso?” “Vão achar que você é um idiota”. “Desista dessa merda e siga sendo um leitor feliz”. “Se nem você está convencido, como quer que leiam isso?” Por aí. Mas para minha sorte, ele é um demoniozinho daqueles que aparecem nos filmes e nos desenhos, aqueles típicos que sussurram no ouvido enquanto estão no ombro das suas vítimas. Ele é pequeno, leve e irritante. Por que deveria deixar ele ficar falando essas coisas no meu ouvido? Dou um peteleco e faço ele voar longe. Pronto. Assim posso seguir sem aquela interferência que por algum motivo a minha cabeça insiste em criar novamente vez ou outra. Sou eu que tenho o controle, então esse incômodo acaba sendo apenas um peso leve e suportável. Faz parte, mas administro ele.
Quanto aos projetos longos, acredito que me dou bem em muitos deles. A ansiedade que surge é aquela de querer ver a coisa concluída. Mas não me afobo – pelo menos não mais ou nem sempre. Apenas anseio poder ver, assim que possível, o resultado dos trabalhos. De qualquer modo, na academia principalmente, repleta de seus prazos, metas e superações necessárias, a ansiedade é um mal que faz parte da coisa toda. Está em todos os cantos. De vez em quando ela te pega. O segredo é aprender a lidar com ela, e cada um tem o seu jeito de enfrentar a coisa.
Sobre as travas de escrita, lido com elas assim como no caso do medo. Escrevo para enfrentar as travas – por mais paradoxal que possa parecer. Se percebo que a coisa não avança, apenas não insisto naquele momento. Parto para a escrita de outra coisa ou para a leitura que pode ajudar em algo. Ou ainda para qualquer outra coisa. O amanhã é um outro dia e aquela travada na escrita não mais estará nele. Retorno para o texto que antes me impediu que eu avançasse sobre ele. O momento de antes então já foi. Passa a ser a minha vez de dar o texto por vencido – acabado, finalizado, concretizado.
A procrastinação acaba sendo algo que de tudo isso resulta. O medo, a ansiedade e as travas de escrita ensejam na procrastinação. Não há como fugir dela – pelo menos não em todo o texto que me proponho a fazer. Como sempre estou envolvido em projetos, com prazos a cumprir e com ideias em desenvolvimento, a procrastinação acaba também sendo fruto da atenção que se volta mais para uns do que para outros textos. No final, acredito que seja algo que faz parte do processo de escrita. Mais uma vez, reconhecer sua presença não significa se entregar. O que não vale é deixar que ela tome conta do todo. Até a procrastinação pode ser bem administrada.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Apenas eventualmente mostro os meus trabalhos para outros antes que sejam publicados. Textos mais pessoais e literários eu apresento para a minha esposa quando julgo precisar de algum comentário mais crítico de alguém que não eu sobre o teor do ali escrito – e ninguém melhor do que alguém bastante próximo para cumprir esse papel. Minha esposa é essa parceira que faz a leitura prévia de alguns dos meus textos literários, tecendo sugestões e fazendo apontamentos sempre válidos e proveitosos.
Já os artigos acadêmicos, de igual modo – vez ou outra peço para que alguém leia antes de ser publicado. Esse alguém se constitui por alguns poucos amigos e amigas da área que fazem o pente fino no meu trabalho antes que eu o considere como concluído em definitivo. São pessoas especiais e de confiança que apontam coisas que passam despercebidas nas minhas leituras e releituras.
Reviso até me cansar do texto, que é quando eu sinto que está pronto – ou assim digo por não aguentar mais vê-lo num estado de “não concluído”. Geralmente, uma única revisão após ter encerrado o texto. Dificilmente passo disso. Talvez seja mais por preguiça ou por não ter paciência para ficar lendo o meu próprio texto. Não sei. Mas uma leitura do texto pronto já me esgota o suficiente.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Minha relação com a tecnologia é mediana. Algo entre o medíocre e o básico. Utilizo o ‘Word’ para escrever, bem como para anotar ideias, fazer fichamentos e registrar qualquer coisa que julgue útil – do tipo que no futuro me servirá para alguma coisa. Isso e o bloco de notas. No celular, de igual forma – no máximo algum aplicativo de notas e o WhatsApp para registrar ideias. Salvo tudo no HD do computador – que serve mais como um backup do meu pen drive. É no pen drive que guardo os originais, carregando-os por onde quer que eu vá. Um único dispositivo de 8GB que me acompanha desde a época da faculdade. Algumas coisas tenho salvas no e-mail – mais por uma ocasião situacional do que pela intenção de ter uma cópia de segurança. Não uso o “drive” por não gostar ou por não saber usar direito. É perigoso, eu sei. Chega a ser estúpido, creio. Acho que é algo como aquele cara que reconhece que tem um vício, mas nada faz contra ele e continua voltando bêbado todas as noites para casa. Uma hora talvez eu mude os meus hábitos. Provavelmente apenas quando eu aprender da pior forma possível. Mas como a ideia é não mentir na entrevista, é assim que ajo com relação à tecnologia e escrita. Talvez eu devesse fazer como o escritor Gustavo Czekster disse certa vez: espalhar por onde for possível os próprios textos. O mesmo texto em mais de um site, talvez? Não sei. Já perdi textos assim, bons e ruins: sites que de hora para outra deixaram de existir, levando consigo um mundo de escritos. Por sorte, tenho todos salvos no meu pen drive – aquele pen drive. Há vários primeiros rascunhos, de alguma coisa que algum dia em outra se transformará, em arquivos organizados por pastas no meu pen drive, assim como possuo vários desses rascunhos que foram feitos à mão em blocos de papel na minha mesa, na minha mala, na minha gaveta ou até mesmo em lugares que provavelmente eu tenha esquecido. Mas estão lá. Escrevo-os e os deixo lá para quando for usar. Espero realmente que eu nunca os perca.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As ideias vêm do hábito constante da leitura, assim como do ato da pesquisa, das inquietações e questionamentos, dos debates com amigos, pesquisadores, professores, alunos, colegas de profissão e familiares. É do diálogo – com os outros ou comigo mesmo – que surgem as ideias. Mas a base de tudo é a leitura. Sempre. Não há como fugir disso. Quem escreve, escreve porque lê. E muito. Lembro aqui de Stephen King, quando em sua autobiografia metaliterária disse custar a acreditar que existem pessoas de pouca ou nenhuma leitura que acham possível escrever e que outras pessoas gostem daquilo que escreveram. King é bem direto quando diz que se a pessoa não tem tempo para ler (o que é uma baita de uma mentira conveniente – essa suposta falta de tempo para ler), então não tem tempo e nem ferramentas para escrever. Gosto tanto dessa passagem que a coloquei na epígrafe do meu livro “O Direito pela Literatura: algumas abordagens”. Há, claro, muita gente ingênua ou idiota o bastante para achar que é possível escrever alguma coisa minimamente digna sem possuir uma grande bagagem de leitura. A escrita é feita com boas ideias, estando o autor ciente delas ou não durante esse processo. Acredito que a leitura é o principal hábito responsável por cultivar o estímulo criativo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acredito que a mudança no processo de escrita seja algo constate. Ainda sou novo e com pouca bagagem de escrita. Mas mesmo nesse curto período digo que é possível notar várias mudanças, algumas pequenas e outras gritantes. Creio que o aperfeiçoamento é algo que está presente nessa minha ainda pequena linha do tempo. Espero que essa mudança, para melhor, seja algo que me acompanhe sempre.
Sobre o que eu diria caso voltasse à escrita dos meus primeiros textos, não creio ser possível dizer algo agora. Talvez daqui a alguns anos, com mais experiência, eu possa dizer alguma coisa. Tenho muito ainda a aprender para poder dizer algo para o meu de eu de há pouco.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Sempre estou envolvido em vários projetos. Ando no limite para evitar o “não dar conta” e o surtar. Não sei como faço para dosar isso, mas pelo menos até o momento tem dado certo esse equilíbrio. Assim, os projetos que pretendo fazer e ainda não iniciei são vários. Alguns mais sonhadores, outros mais concretos. Na medida que os projetos em andamento vão findando, abre-se espaço para colocar em prática alguns dos projetos do campo das ideias. O difícil é escolher o próximo da lista. Essas ideias envolvem projetos acadêmicos, artigos e livros a serem escritos e coisas do tipo.
O livro que eu gostaria de ler e ainda não existe é aquele que me desperta a atenção e está sendo escrito por alguém que admiro, que acompanho, que respeito, que nutro carinho, que considero, mas que ainda não está pronto. Quando, por qualquer razão, fico sabendo que alguém assim está escrevendo algo que ainda será um livro, isso passa a ser o aquele que eu quero ler e naquele momento ainda não existe.